sexta-feira, 24 de março de 2023

A fermosura desta fresca serra, Camões

 








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A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara Natureza
Com tanta variedade nos oferece,
Me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando,
Nas mores alegrias, mor tristeza.

Luís de Camões, Líricas, Lisboa, Sá da Costa, 1981

 

Elabore um comentário o poema de Camões que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- partes lógicas constitutivas do texto;

- processos usados na descrição da natureza;

- relação entre a representação da paisagem e o estado emocional do sujeito;

- marcas da estética renascentista.

 

Explicitação de cenários de resposta:

Partes lógicas constitutivas do texto

O poema divide-se em duas partes, correspondendo a primeira às quadras e a segunda aos tercetos. O elo entre ambas é o advérbio “enfim” usado com valor conclusivo.

A primeira parte é constituída por uma descrição dos elementos da natureza, a que se opõe a descrição do estado emocional do sujeito, assinalada na segunda parte pela introdução do eu lírico (“me está, se não te vejo, magoando”). A enumeração analítica dos elementos paisagísticos, desenvolvida nas quadras, dá lugar, no primeiro terceto, à síntese (“tudo”, “Natureza”), seguida, no segundo terceto, pela conclusão que desvaloriza a beleza do cenário na ausência da mulher amada (“Sem ti, tudo me enoja e me aborrece”).

 

Processos usados na descrição da natureza

O processo de descrição da paisagem consiste essencialmente na enumeração dos elementos que a compõem (“serra”, “castanheiros”, “ribeiros”, “mar”, “ sol”, “ outeiros”, “gados”, “nuvens”), justapostos por acumulação assindética (exceto no verso 2) em frases do tipo nominal (“o manso caminhar destes ribeiros”, “o esconder do sol pelos outeiros”…). A harmonia do cenário resulta quer da beleza cada um dos seus elementos - caracterizados por adjetivos (“fresca”, “manso”, “branda”…) ou por nomes (“fermosura”, “sombra”…) -, quer da sua profusão (“variedade”) e da excelência do conjunto (“rara Natureza”). Após a enumeração realizada nas quadras, surge a síntese operada no primeiro terceto, que contém, resumindo-os (“tudo”), os elementos antes especificados.

 

Relação entre a representação da paisagem e o estado emocional do sujeito

A natureza é descrita como locus amoenus, um ambiente bucólico em que todos os elementos se combinam harmoniosamente de modo a criar um cenário propício ao deleite. Mas a euforia da paisagem, “donde toda a tristeza se desterra”, opõe-se a disforia do sujeito, expressa pelo paradoxo final: “estou passando, / nas mores alegrias, mor tristeza”. Em consequência dos efeitos criados por esse contraste, a representação da paisagem, viva e alegre, confere maior intensidade ao estado emocional do sujeito, triste e magoado pela privação da mulher amada, cuja ausência (sublinhada pela anáfora “Sem ti”, “sem ti”) transforma as dádivas da natureza em fonte de dor. Daí a predominância, nos últimos versos, de vocábulos relacionados com sentimentos e a conotação negativa de todos eles (“magoando”, “enoja”, “tristeza”…).

 

Marcas da estética renascentista

Temáticas

- locus amoenus

- idealização da mulher

- …

Formais

- soneto

- medida nova (decassílabo)

-  personificação dos elementos da natureza

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 637. Curso Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de Português (Índole Literária). Portugal, 1998, 1.ª Fase, 1.ª Chamada

 

 


CARREIRO, José. “A fermosura desta fresca serra, Camões”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 24-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/a-fermosura-desta-fresca-serra-camoes.html


quinta-feira, 23 de março de 2023

O céu, a terra, o vento sossegado… (Camões)

 








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O céu, a terra, o vento sossegado…
As ondas, que se estendem pela areia…
Os peixes, que no mar o sono enfreia1
O noturno silêncio repousado…

O pescador Aónio, que, deitado
onde co vento a água se meneia2,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:

– Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
tornai-me3 a minha Ninfa4, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate,
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

 

Luís de Camões, Rimas, edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 169

 

_________
1 enfreia (verso 3) – domina; subjuga.
2 se meneia (verso 6) – se move; se agita.
3 tornai-me (verso 10) – trazei-me de volta.
4 Ninfa (verso 10) – neste contexto, termo usado para designar a amada; mulher jovem e formosa; divindade que habita o campo, os bosques e as águas.

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Caracterize o espaço físico representado na primeira quadra e a atmosfera nele predominante.

2. Descreva o estado de espírito do pescador Aónio, com base na segunda e na terceira estrofes.

3. Refira um dos efeitos expressivos da aliteração presente no último verso do poema.

4. Interprete a reação da natureza ao apelo do pescador.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O espaço físico representado na primeira quadra corresponde ao de uma noturna paisagem marinha («As ondas, que se estendem pela areia…» – v. 2). Predomina uma atmosfera de tranquilidade, de quietude e de silêncio («O céu, a terra, o vento sossegado...», «Os peixes, que no mar o sono enfreia…», «O noturno silêncio repousado...» – vv. 1, 3 e 4).

2. O pescador Aónio está dominado por um sentimento de profunda tristeza devido à morte da amada. Num estado de desalento, patente na atitude de abandono em que se encontra («deitado / onde co vento a água se meneia» – vv. 5-6), exprime o seu desespero chorando, clamando pelo «nome amado» (v. 7) e suplicando às «Ondas» (v. 9) a graça do retorno à vida da sua «Ninfa» (v. 10).

3. Entre outros, destacam-se os seguintes efeitos expressivos da aliteração (predominância do som <v>) presente no último verso do poema:

− confere uma tonalidade musical harmoniosa;

− cria um efeito que sugere o som do vento;

− marca o ritmo sincopado do verso;

− acentua a importância da relação simbólica entre voz e vento.

4. A reação da natureza sugere indiferença relativamente ao pescador Aónio, pois aquela não responde à sua súplica. Assim, à completa ausência de resposta, segue-se a indiferença do mar («de longe bate» – v. 12), o movimento brando do «arvoredo» (v. 13) e do «vento» (v. 14) que, soprando, torna inaudível a «voz» (v. 14) da figura central.

 

Fonte: Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734. Prova Escrita de Literatura Portuguesa. 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Governo de Portugal – Ministério da Educação e Ciência / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2014, 1.ª Fase

 

II - Outro questionário sobre o poema “O céu, a terra, o vento sossegado…”

1. A partir da leitura deste soneto, identifique o seu tema, indicando as linhas segundo as quais é desenvolvido.

2. Na descrição inicial do texto apresenta-se a natureza.

2.1. Explicite a impressão que essa natureza sugere ao leitor.

2.1.1. Refira os processos utilizados para obter esse efeito.

3. A imagem da natureza contrasta com o sentimento experimentado pelo pescador.

3.1. Caracterize a personagem, recolhendo do soneto todas as expressões que concorrem para a definição do seu perfil.

3.2. Aponte a causa motivadora do estado emocional da personagem.

4. Mencione os recursos estilísticos relevantes do poema.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 537. Cursos Complementares Nocturnos - Liceal e Técnicos. Prova Escrita de Português (Índole Científica). Portugal, 1997, 1.ª fase, 2.ª Chamada

 

Proposta de resolução

1. O tema do soneto é o sofrimento amoroso do pescador Aónio, que perdeu a sua amada Ninfa e chora a sua ausência na praia. O tema é desenvolvido segundo as seguintes linhas:

Nas quadras (versos 1 a 8), apresenta-se uma descrição da natureza tranquila e silenciosa, que contrasta com a dor do pescador;

Nos tercetos (versos 9 a 14), apresenta-se o lamento do pescador, que pede às ondas que lhe devolvam a sua Ninfa, mas não obtém resposta.

2.1. A natureza é descrita como sossegada e repousada, sugerindo uma sensação de calma e tranquilidade ao leitor.

2.1.1. Os processos utilizados para obter esse efeito são:

A enumeração de elementos naturais (o céu, a terra, o vento, as ondas, os peixes);

O uso de adjetivos que sugerem tranquilidade, qualificando esses elementos como sossegados ou repousados;

O uso dos verbos estendem, enfreia, meneia que indicam movimentos suaves ou lentos.

Além disso, a natureza é descrita de maneira personificada, como se fosse uma entidade que pode ouvir e responder ao pescador. Esse efeito é obtido através do uso de verbos como "sossegado", "estendem", "move-se" e "leva", que conferem a sensação de que a natureza está viva e atenta.

3.1. A personagem é caracterizada como um pescador triste e solitário, que chora pela sua amada perdida e que não encontra consolo na natureza nem nos homens. As expressões que concorrem para a definição do seu perfil são:

- “chorando” (verso 6);

- “o nome amado em vão nomeia” (verso 7);

- “que não pode ser mais que nomeado” (verso 8);

- “antes que Amor me mate” (verso 10);

- “me fizestes à morte estar sujeita” (verso 12);

- “Ninguém lhe fala” (verso 13).

3.2. A causa motivadora do estado emocional da personagem é a perda da sua amada Ninfa, que morreu.

4. O soneto "O céu, a terra, o vento sossegado" de Camões apresenta uma variedade de recursos estilísticos, que contribuem para a sua expressividade poética. Alguns dos principais recursos estilísticos presentes no poema são:

- Aliteração: repetição de sons consonânticos para criar um efeito sonoro. Exemplo: “O céu, a terra, o vento sossegado” (verso 1), onde se repete o som /s/ para sugerir a calma e o silêncio da natureza.

- O uso da aliteração em /v/ no último verso acentua o alheamento da Natureza perante as palavras de Aónio e intensifica a sua solidão;

- O uso da apóstrofe para se dirigir às ondas como interlocutoras;

- A personificação da natureza, por exemplo, no último verso da primeira quadra (“O noturno silêncio repousado”), reforça a ideia de uma natureza amena, calma e equilibrada;

- A utilização de adjetivos que evocam tranquilidade: “sossegado” (verso 1), “manso” (verso 2), “quieto” (verso 3) e “sereno” (verso 4);

- O contraste entre a calma da natureza e o sofrimento do pescador.

 

Poderá também gostar de:

Lição sobre "O céu, a terra, o vento sossegado..." apresentada no Projeto de parceria entre o Ministério da Educação e a RTP #ESTUDOEMCASA, aula 32 de Português – 10.º ano, sobre o tema do amor na lírica de Camões: "Como quando do mar tempestuoso" e "O céu, a terra, o vento sossegado...", 2021-03-17. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7884/e530880/portugues-10-ano (inicia no minuto 15’55’’)


 


CARREIRO, José. “O céu, a terra, o vento sossegado… (Camões)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 23-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/o-ceu-terra-o-vento-sossegado-camoes.html


quarta-feira, 22 de março de 2023

Mia irmana fremosa, treides comigo (Cantiga de Amigo)


 






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Mia irmana fremosa, treides1 comigo
a la igreja de Vig’2, u3 é o mar salido4:
       E miraremos las ondas!

Mia irmana fremosa, treides de grado5
a la igreja de Vig’, u é o mar levado6:
       E miraremos las ondas!

A la igreja de Vig’, u é o mar salido,
e verra i7, mia madre, o meu amigo:
       E miraremos las ondas!

A la igreja de Vig’, u é o mar levado,
e verra i, mia madre, o meu amado:
       E miraremos las ondas!

Martim Codax (B 1280/V 886/PV 3)

A Lírica Galego-Portuguesa, edição de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1985, p. 262.

_________
1 treides – vinde.
2 Vig’ – Vigo.
3 u – onde.
4 salido – agitado.
5 de grado – de vontade; com gosto.
6 levado – agitado.
7 verra i – virá aí.

Nesta cantiga de Martim Codax “a donzela incita a sua irmã formosa a irem ao santuário de Vigo, onde o mar é bravo, para olharem as ondas. Na verdade, como compreendemos nas duas últimas estrofes, essa ida é um pretexto para estar com o seu amigo, que também lá irá (como confessa, dirigindo-se agora à mãe). Note-se, de resto, como o refrão, mantendo-se inalterado, ganha, nestas estrofes finais, um outro (ambíguo) sentido”.

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2023-03-21] Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1310&pv=sim




 

Paráfrase da cantiga

Minha irmã formosa, vinde comigo
à igreja de Vigo, que fica no meio do mar:
       E miraremos as ondas!

Minha irmã formosa, vinde com vontade
À igreja de Vigo, onde o mar é levantado:
       E miraremos as ondas!

À igreja de Vigo, que fica no meio do mar,
e virá aí, minha mãe, o meu amigo:
       E miraremos as ondas!

À igreja de Vigo, onde o mar é levantado,
e virá aí, minha mãe, o meu amado:
       E miraremos as ondas!



 

Questionário sobre a cantiga de Martim Codax

1. Refira dois dos sentimentos que motivam o sujeito de enunciação desta cantiga a ir a Vigo. Apresente, para cada um desses sentimentos, uma transcrição pertinente.

2. Explicite o papel da natureza nesta cantiga, bem como o valor simbólico que assume.

3. Complete as afirmações seguintes, selecionando a opção adequada a cada espaço.

Na folha de respostas, registe apenas as letras – a), b) e c) – e, para cada uma delas, o número que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.

Do ponto de vista formal, esta cantiga classifica-se como paralelística. Uma evidência dessa estrutura formal é a).

Quanto ao desenvolvimento temático, é de assinalar, por um lado, o facto de, em todas as estrofes, o sujeito poético se dirigir a um interlocutor; a partir da terceira estrofe, esse interlocutor passa a ser b).

Por outro lado, constata-se que, nas duas últimas estrofes, o sentido do verso «E miraremos las ondas!» evolui, podendo, mais claramente, ser associado c).

a)

b)

c)

1. o facto de todos os dísticos terem o mesmo número de sílabas métricas

2. a existência de quatro estrofes, todas elas constituídas por tercetos

3. a repetição dos versos da primeira estrofe na segunda estrofe e da terceira estrofe na quarta estrofe,

com variação das palavras em

posição de rima

1. o mar revolto

2. a mãe

3. a irmã

1. à ideia de proximidade entre a donzela e o seu amado

2. à permanente vigilância que familiares exercem sobre a donzela

3. à preocupação da donzela com o estado do mar

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o amor, patente, por exemplo, em «o meu amigo» (v. 8) ou «o meu amado» (v. 11);

a esperança de ver o seu «amigo», patente, por exemplo, em «e verra i, mia madre, o meu amigo» (v. 8) ou «E miraremos las ondas!» (refrão).

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o espaço físico constitui o cenário natural para o encontro entre a donzela e o amigo;

o mar agitado espelha, simbolicamente, o estado de alma da donzela, que espera com ansiedade encontrar o seu amigo.

3. Chave de correção: a-3; b.2; c-1.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2020, 2.ª Fase

 


     Poderá também gostar de:

 “Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html


 


CARREIRO, José. “Mia irmana fremosa, treides comigo (Cantiga de Amigo)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 22-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/mia-irmana-fremosa-treides-comigo.html