terça-feira, 25 de abril de 2023

fatalidade, liberdade e libertação

José Pedro Serra, Professor e pesquisador português que se dedica aos estudos clássicos, destaca dois aspetos do mito de Édipo que o tornam relevante para a reflexão filosófica: a oposição entre a fatalidade e a liberdade, e o equívoco ou o erro de juízo.

 

Édipo e a Esfinge (480-470 a.C.) Museu Gregoriano Etrusco

Sobre a oposição entre a fatalidade (o constrangimento) e a liberdade, José Pedro Serra, afirma o seguinte: «Sei bem que hoje somos todos muito orgulhosos e muito imprudentemente confiantes na nossa liberdade.

O século XIX, ao dizer ‘quando se abre uma escola, fecha-se uma prisão’, manifestava, inocentemente e ingenuamente também, toda a importância do meio social.

A psicanálise, ao contrário, descentrou o Homem de si próprio, isto é, fez com que a sua consciência seja já o resultado de pulsões inconscientes que a determinam.

E sabemos lá hoje quantas determinações genéticas, hereditárias, ainda modulam a nossa liberdade.

Por mim, não proclamo tão orgulhosamente essa via da liberdade, quanto muito a ela prefiro a via progressiva da libertação, o que é bem diferente.

 

O segundo aspeto tem a ver já não tanto com este aspeto da liberdade, mas com uma outra coisa que é o equívoco, isto é, o erro de juízo.

Foi ao errar no juízo que Édipo determinou a sua própria sorte.

Ora, o erro de juízo é a fatalidade do nosso ser finito, uma vez que é a nossa finitude que, em última análise, nos faz sempre ter um conhecimento precário de qualquer coisa que nos rodeia. Na verdade, nós sabemos sempre muito pouco acerca de tudo (para não dizer que, em última análise, não sabemos nada).

E é essa tragédia do vagabundear como fantasmas, decidindo coisas que, em última análise, se mostram exatamente contrárias a tudo o que nós pensámos e nós deliberámos, é isso mesmo que se ergue também na tragédia de Édipo (O rei Édipo, de Sófocles).»

(Texto transcrito a partir do episódio “O Mito de Édipo”, in MYTHOS, temporada 1, episódio 22, RTP2, 24-04-2023. Disponível em https://www.rtp.pt/play/p10954/e687125/mythos).

 

José Pedro Serra, MYTHOS

 

Na exposição acima transcrita, o Professor José Pedro Serra questiona a confiança excessiva na liberdade humana, que pode ser limitada e condicionada por fatores sociais, pulsões inconscientes e determinações genéticas.

Este pesquisador também propõe uma distinção entre liberdade e libertação. Segundo ele, a liberdade seria um estado absoluto e ideal, que não leva em conta as circunstâncias históricas e individuais de cada pessoa. Já a libertação seria um processo gradual e relativo, que implica a superaração das opressões e dos constrangimentos que impedem o desenvolvimento humano.

Assim, a afirmação de que a "via progressiva da libertação" é preferível à "via da liberdade" deve ser entendida como um apelo para que a luta pela liberdade esteja sempre conectada à luta pela libertação, e que a liberdade individual só será significativa se estiver enraizada num compromisso mais amplo com a justiça social.

Nesse sentido, a ideia de "via progressiva da libertação" pode ser uma abordagem mais realista e útil para lidar com as questões de liberdade e opressão. Essa abordagem enfatiza a importância de lutar contra as limitações que restringem a liberdade humana, em vez de simplesmente afirmar a existência de uma liberdade total e incondicional.

 

Ele também aponta para a tragédia da finitude humana, que nos impede de ter um conhecimento pleno da realidade e nos faz agir muitas vezes contra os nossos próprios interesses.

Neste sentido, Serra discute a questão do equívoco ou erro de juízo, que é uma forma de fatalidade que nos pode levar a determinar o nosso próprio destino. Por isso, o Professor faz referência ao mito de Édipo, que é uma história clássica sobre a tragédia que pode ocorrer quando tomamos decisões com base em informações limitadas ou equivocadas.

Em última análise, o texto explora a tensão entre a nossa capacidade de escolha e as limitações impostas pela nossa condição humana.

  

https://www.parlamento.pt/Paginas/2023/abril/25-de-Abril-2023.aspx


 


CARREIRO, José. “fatalidade, liberdade e libertação”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 25-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/fatalidade-liberdade-e-libertacao.html


domingo, 23 de abril de 2023

Aos amigos, Herberto Helder


 

AOS AMIGOS

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

 

Herberto Helder, Lugar (1961-1962)

 

No poema-dedicatória “Aos amigos”, que serve de pórtico de abertura ao livro Lugar (1961-1962), de Herberto Helder, o sujeito poético dirige-se aos seus amigos, que “são os escritores aos quais ele se vincula e dos quais se coloca como herdeiro, aqueles que não é preciso chamar, pois estão sempre presentes e próximos, por isso ele não se esquiva de considerá-los amigos. Em Edoi Lelia Doura, ‘antologia de teor e amor, unívoca na multiplicidade vocal, e ferozmente parcialíssima’ (HELDER, 1985, p. 8), o autor usa o termo ‘vozes comunicantes’ para apontar os poetas e os poemas que constroem tanto a sua poética quanto a si próprio:

‘Quando lemos lado a lado, todos estes poetas e poemas, sabemos estarem eles entregues ao serviço de uma inspiração comum, a uma comum arte do fogo e da noite, ao mesmo tempo patrocínio constelar. O que varia é a política das formas, maneira de guerra e hipnotismo das pessoas e dos tempos. Nunca o estilo de alimento, de morte, de mudança’ (HELDER, 1985, p. 8)”1.

Assim, o poema é uma homenagem aos seus mestres e companheiros de escrita, que partilham com ele um talento doloroso e obscuro, uma arte do fogo, uma paixão pelo silêncio e pela palavra.

O sujeito poético começa por apresentar a ideia de que o amor pelos amigos é algo que acontece devagar, como se fosse um gesto de cuidado e de compaixão. Essa expressão sugere que a amizade é algo que se desenvolve lentamente e que pode ser profundamente sentido.

O poema começa com a imagem dos amigos tristes, que têm "cinco dedos de cada lado", uma descrição estranha que sugere a humanidade universal desses amigos. Esta é uma possível interpretação da expressão, mas não é a única. Outra forma de interpretar o verso é considerar que os cinco dedos de cada lado se referem ao sujeito poético: Amo devagar, com cinco dedos de cada lado, os amigos que são tristes. Isto é, ele ama com as mãos, no sentido de que o seu amor é criativo, artístico, expressivo. Ele usa as suas mãos para escrever, para tocar, para comunicar o seu amor pelos amigos. Ou será, ainda, que ele usa a imagem dos dedos para contar os seus amigos, sugerindo que eles são poucos e frágeis?

“O poema em questão, texto que parece reivindicar uma aliança entre não só amigos, mas amigos poetas, indica, por meio de uma série de imagens que nos remete ao universo do ofício da escrita (os dedos, os livros, o talento), alguns dos topoi da poética herbertiana que mais de perto aqui nos interessa. A loucura (“Os amigos que enlouquecem e estão sentados”), primeiro desses topoi que gostaria de assinalar, marca da desrazão dionisíaca que rege esta poesia, surge em simultâneo com a condição sentada dos amigos, condição que simbolicamente aponta para a situação criativa, como é possível notar em outros passos da obra de Herberto. Sendo assim, loucura e criação são tópicos correlativos, de modo que podemos inferir ser a criação uma espécie de loucura, ou um gesto por ela movido, o que faz do poema (o objeto criado) uma obra que resguarda sentidos à margem da lógica racional – organizadora do mundo profano do trabalho e da produtividade.”2

A marca de identidade (compromisso estético) que possibilita a comunicabilidade entre esse grupo de amigos que compartilham uma paixão comum pela arte é representada pela imagem dos livros que estão atrás deles a arder para toda a eternidade. Essa paixão é tão intensa que constrói um lugar de silêncio, um lugar onde os amigos podem comunicar entre si apenas por meio da poesia, por meio das suas "vozes comunicantes".

Outra imagem recorrente na poesia de Herberto Helder é a do fogo, que exprime a sua visão do mundo e da arte como um processo de transformação constante, de busca incessante, de entrega total e de risco permanente. O fogo é, assim, o elemento que une os amigos no mesmo lugar de silêncio e de paixão.

O poema de Herberto Helder tem uma dimensão sublime que transcende a realidade e que toca o leitor pela sua força expressiva e pela sua capacidade de comunicar uma experiência única e profunda, nomeadamente a sua visão peculiar sobre a amizade e sobre a comunicação entre os escritores. Através da poesia, os amigos são capazes de estabelecer uma comunicação profunda e intensa que transcende as palavras e que é baseada numa paixão comum pela arte. Por isso, o título sugere uma dedicatória aos amigos do poeta, que partilham com ele uma condição de tristeza, loucura e paixão.

____________

1 Entre a ruptura e o contínuo: a poética da fragmentação em Photomaton & Vox, de Herberto Helder, Beatriz Lima. Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2013

2 “Os sentidos da revelação: Sophia e Herberto”, Paulo Sousa. Revista do CESP, Belo Horizonte, v. 38, n. 60, p. 97-116, 2018. eISSN: 2358-9787. DOI: 10.17851/2358-9787.38.60.97-116

 

 


CARREIRO, José. “Aos amigos, Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 23-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/aos-amigos-herberto-helder.html


 

sábado, 22 de abril de 2023

Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio - crónica de José Saramago

 



Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio

Estou deitado na margem. Dois barcos, presos a um tronco de salgueiro cortado em remotos tempos, oscilam ao jeito do vento, não da corrente, que é macia, vagarosa, quase invisível. A paisagem em frente, conheço-a. Por uma aberta entre as árvores, vejo as terras lisas da lezíria, ao fundo uma franja de vegetação verde-escura, e depois, inevitavelmente, o céu onde boiam nuvens que só não são brancas porque a tarde chega ao fim e há o tom de pérola que é o dia que se extingue. Entretanto, o rio corre. Mais propriamente se diria: anda, arrasta-se - mas não é costume.

Três metros acima da minha cabeça estão presos nos ramos rolos de palha, canolhos de milho, aglomerados de lodo seco. São os vestígios da cheia. À esquerda, na outra margem, alinham-se os freixos que, a esta distância, por obra do vento que lhes estremece as folhas numa vibração interminável, me fazem lembrar o interior de uma colmeia. É o mesmo fervilhar, numa espécie de zumbido vegetal, uma palpitação (é o que penso agora), como se dez mil aves tivessem brotado dos ramos numa ansiedade de asas que não podem perder voo.

Entretanto, enquanto vou pensando, o rio continua a passar, em silêncio. Vem agora no vento, da aldeia que não está longe, um lamentoso toque de sinos: alguém morreu, sei quem foi, mas de que serve dizê-lo? Muito alto, duas garças brancas (ou talvez não sejam garças, não importa) desenham um bailado sem princípio nem fim: vieram inscrever-se no meu tempo, irão depois continuar o seu, sem mim.

Olho agora o rio que conheço tão bem. A cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas (também chamadas tira-olhos) pousam a extremidade das pequenas garras – este rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre. Naveguei nele, aprendi nele a nadar, conheço-lhe os fundões e as locas onde os barbos pairam imóveis. É mais do que um rio, é talvez um segredo.

E, contudo, estas águas já não são as minhas águas. O tempo flui nelas, arrasta-as e vai arrastando na corrente líquida, devagar, à velocidade (aqui, na terra) de sessenta segundos por minuto. Quantos minutos passaram já desde que me deitei na margem, sobre o feno seco e doirado? Quantos metros andou aquele tronco apodrecido que flutua? O sino ainda toca, a tarde teve agora um arrepio, as garças onde estão? Devagar, levanto-me, sacudo as palhas agarradas à roupa, calço-me. Apanho uma pedra, um seixo redondo e denso, lanço-o pelo ar, num gesto do passado. Cai no meio do rio, mergulha (não vejo, mas sei), atravessa as águas opacas, assenta no lodo do fundo, enterra-se um pouco. Mudou de sítio, talvez o inverno arraste para mais longe, o restitua à margem donde o tirei. Talvez ali fique para sempre.

Desço até à água, mergulho nela as mãos, e não as reconheço. Vêm-me da memória outras mãos mergulhadas noutro rio. As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que já se perderam no mar. Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos. Então uma ave cor de fogo passa como um relâmpago. O sino cala-se. E eu sacudo as mãos molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora.

 

SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro. Crónicas. Lisboa: Caminho, 1985

 

I – Questionário sobre a crónica de José Saramago

1. O excerto abaixo que melhor justifica o título do texto é o seguinte:

A) “... o céu onde boiam nuvens que só não são brancas porque a tarde chega ao fim e há o tom de pérola que é o dia que se extingue.”

B) “À esquerda, na outra margem, alinham-se os freixos que, a esta distância, por obra do vento...”

C) “E, contudo, estas águas já não são as minhas águas. O tempo flui nelas, arrasta-as...”

D) “Cai no meio do rio, mergulha (não vejo, mas sei) atravessa as águas opacas,...”

E) “Desço até a água, mergulho nela as mãos, e não as reconheço.”

2. Analise as afirmações sobre as reflexões do narrador do texto e assinale a alternativa incorreta.

A) O narrador compara o correr do rio ao passar do tempo. Assim como a água passa e não volta, sempre fluindo na mesma direção, o tempo passa e não volta.

B) Como o tempo passa rapidamente, as águas também fluem e mudam. Portanto, são as mesmas águas de quando ele ali adormeceu.

C) O narrador tenta reter com suas mãos, no presente, “a vida e a verdade” daquela hora. Ele sabe que tudo vai passar, pois o tempo é efémero.

D) A “ave cor de fogo”, que passa como um relâmpago, representa o despertar do narrador que, depois de ver o passado a esvair-se e o sino calando-se, volta à realidade, ao presente.

3. Após a leitura do texto, observa-se que se trata de:

A) Uma descrição objetiva em que o observador apresenta o tema-núcleo de maneira impessoal.

B) Uma narração, pois o seu conteúdo está vinculado às ações ou acontecimentos contados por um narrador.

C) Uma fábula, em que o espaço é simplificado, não há variações de ambiente; as personagens são animais personificados.

D) Uma descrição subjetiva em que o observador apresenta o tema-núcleo de maneira pessoal, externando as suas impressões pessoais.

E) Um conto, apresenta um único conflito, tornado já próximo do seu desfecho.

4. Selecione a alternativa incorreta:

A) A narrativa é narrada em primeira pessoa, instaurando o narrador personagem, que é o responsável pelas reflexões no desenrolar da história, estas carregadas de sentimentalismo.

B) A personagem encontra-se no presente relembrando o passado, todavia, não se tem uma localização temporal exata, ao contrário do espaço, que é claramente definido, pois a história desenvolve-se nas margens de um rio.

C) Com a afirmação “Estou deitado na margem” o narrador indica que observa o rio e o tempo como se estivesse do lado de dentro, e não imerso no tempo.

D) À medida que o narrador contempla o cenário à margem do rio, as águas continuam a correr lentamente.

5. Observe os seguintes excertos: “Entretanto, o rio corre.”; “Vejo passar o tempo.” Considerando os excertos destacados no contexto apresentado, pode afirmar-se que:

     A) O tempo é comparado a um rio diante das observações do narrador.

B) O tempo passa rapidamente.

C) Todos nós temos um “rio” interior.

D) “O coração não sente o quê os olhos não veem.”

E) “Os olhos são o espelho da alma.”

6. Através de qual dos excertos abaixo, é possível perceber que há uma forte ligação entre o narrador e o rio?

A) “Entretanto, enquanto vou pensando, o rio continua a passar, em silêncio.”

B) “Entretanto, o rio corre.”

C) “Este rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre.”

D) “Cai no meio do rio, mergulha (não vejo, mas sei), atravessa as águas opacas,...”

E) “... o rio atingido de águas que já se perderam no mar.”

7. No 3.º parágrafo, o narrador-participante refere a inutilidade de anunciar quem havia morrido, embora o soubesse. A leitura que se faz deste episódio aponta:

A) Na verdade, o narrador não sabia quem havia morrido, é apenas uma simulação.

B) Para o narrador a morte não importa, o que importa é o rio.

C) Diante da sua preocupação com o rio, o narrador mostra-se egoísta e soberbo.

D) Alguém superficial, que não dá atenção ao que realmente importa.

E) A brevidade da vida, não o que fazer diante da morte.

8. Assinale a alternativa em que há uma associação entre o pronome e a palavra que ele substitui no texto:

A) “A paisagem em frente, conheço-a”. – corrente –

B) “... por obra do vento que lhes estremece...” – freixos –

C) “... mas de que serve dizê-lo?” – toque de sinos –

D) “... conheço-lhe os fundões e as locas...” – locas –

E) “... arrasta-as e vai arrastando na corrente...” – minhas –

9. Assinale a afirmação falsa:

A) À languidez destas águas, que mansamente vão andando porque o excesso, o vestígio, não lhes permite o curso natural, opõe-se um cenário fervente, uma ânsia de algo por acontecer.

B) O sujeito, que começa por nos informar estar deitado, ou seja, estar ali, no presente deste lugar, apenas se apreendeu dele para memorizar, já que é num agora que o pensa, que o vê.

C) Talvez por isso, estremecer, fervilhar, oscilar, boiar, arrastar, brotar, zumbir, palpitar, vibrar, verbos ricos de movimento e de ruído, necessitem coincidir com a posição do sujeito e com a sua atividade silenciosa: pensar.

D) Este cronista, esta testemunha, precisou suspender um tempo para trazer outro à sua atualidade.

10. Assinale as duas afirmações verdadeiras:

A) Existe uma ténue ligação entre o narrador e o rio, comprovada quando o observador relata o seu profundo conhecimento sobre o rio, as suas características e a paisagem que o cerca.

B) Dentro do imaginário vivido pelo narrador, somando-se à passagem descrita, há o sino que toca, anunciando a morte de alguém, e o bailado de garças que também se vão. Nessa passagem, o que se percebe é o trabalho de Saramago em sugerir que com o tempo superamos tudo.

C) A vida é efémera ou passageira, assim como as águas do rio que passam rápida ou lentamente, ou ainda como as garças que continuarão sua trajetória com o narrador.

D) Assim como as águas do passado fluíram para o mar e não são mais as mesmas, o narrador percebe que o tempo se foi e que ele se modificou.

E) Percebemos na expressão “e eu sacudo as mãos molhadas de tempo” que o narrador sacudindo as mãos, metaforicamente, sacode a água e o tempo guardados ou contidos até aquele momento.

 

Chave de correção:

1-C;

2-B (Correção: Como o tempo passa rapidamente, as águas também fluem e mudam. Portanto, não são as mesmas águas de quando ele ali adormeceu.)

3-D;

4-C (Correção: Com a afirmação “Estou deitado na margem” o narrador indica que observa o rio e o tempo como se estivesse do lado de fora, e não imerso no tempo.)

5-A;

6-C;

7-E;

8-B;

9-C (Correção: Talvez por isso, estremecer, fervilhar, oscilar, boiar, arrastar, brotar, zumbir, palpitar, vibrar, verbos ricos de movimento e de ruído, necessitem contrastar com a posição do sujeito e com a sua atividade silenciosa: pensar.

10-D, E

(Correção das afirmações falsas:

A - Existe uma forte ligação entre o narrador e o rio, comprovada quando o observador relata o seu profundo conhecimento sobre o rio, as suas características e a paisagem que o cerca.

B - Dentro do imaginário vivido pelo narrador, somando-se à passagem descrita, há o sino que toca, anunciando a morte de alguém, e o bailado de garças que também se vão. Nessa passagem, o que se percebe é o trabalho de Saramago em sugerir que o tempo consome tudo.

C - A vida é efémera ou passageira, assim como as águas do rio que passam rápida ou lentamente, ou ainda como as garças que continuarão sua trajetória sem o narrador.)

(Adaptado de: “A Fugacidade do Tempo e a Efemeridade das Coisas em José Saramago e Mia Couto” - Santos & Silva (2016). Saramago: Escrever, Interromper. Narrativas breves de José Saramago: problemáticas de um lugar discursivo. – Maria Roque (2016). https://www.questoesestrategicas.com.br/simulados/resolver/58336d5513fa8-if-ro-professor-superior. https://www.cin.ufpe.br/~wsr/PORTUGUES.pdf)

 

II - Textos de apoio

Notas nas margens de uma crónica de José Saramago

Se a natureza híbrida da crónica a remete, por vezes injustamente, para a margem da paraliteratura, em Saramago, ela capta o tempo dos homens nos seus dias comuns e responde, na sua concisão, à necessidade de deriva ou de ficcionalidade que o olhar sobre o mundo (real ou seu alternativo) potencia. Excluo desta minha reflexão as crónicas políticas e de atualidade histórica e penso em Deste Mundo e do Outro (1971) e A Bagagem do Viajante (1973) que reúnem anotações de instantes, depoimentos reflexivos, pequenas histórias filtradas por uma primeira pessoa imersa no mundo. Com elas vêm também ecos literários e artísticos que fazem a malha do texto; vêm gestos de memória ancorada na paisagem, onde estão marcadas as suas idades e a presença dos seus habitantes.

Sigo, em parte, a sugestão de José Saramago, apenas enunciando (não mais do que isso) numa crónica o rasto de um ou outro dos muitos rumos que, entretanto, os seus romances tomaram. Elejo, assim, um texto único de Deste Mundo e do Outro em que o devir temporal vai preenchendo os movimentos espiralados da escrita, numa lógica de caixas chinesas: sobre uma nota de paisagem constrói-se um autorretrato íntimo, povoado de memória pessoal e literária, que fundamenta ilações sobre o homem como ser de tempo. Em «Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio», o apontamento descritivo ganha a dimensão de uma pequena história, de uma experiência existencial e, simultaneamente, um significado alegórico sobre o tempo humano no fluxo do mundo, tópico aliás transversal à recolha de crónicas de que esta é extraída.

Neste texto, acompanharei, como um percurso exploratório, a construção da paisagem e as principais figuras de retórica que a suportam, organizadas em torno da metáfora condutora do conhecimento, o olhar. Não se trata, portanto, de um cenário mas de um espaço semantizado pelos traços naturais e humanos, cuja aliança se estreita até chegar à fusão plena na metáfora da historicidade humana, as «mãos molhadas de tempo». Domina, por outro lado, a noção de caminho percorrido no esforço de dar por palavras a noção de uma experiência, de desvelar o que está para lá da epiderme do espaço físico e de pensar cada um desses atos, a partir da frase inaugural «Estou deitado na margem.»:

«Estou deitado na margem. Dois barcos, presos a um tronco de salgueiro cortado em remotos tempos, oscilam ao jeito do vento, não da corrente, que é macia, vagarosa, quase invisível. A paisagem em frente, conheço-a. Por uma aberta entre as árvores, vejo as terras lisas da lezíria, ao fundo uma franja de vegetação verde-escura, e depois, inevitavelmente, o céu onde boiam nuvens que só não são brancas porque a tarde chega ao fim e há o tom de pérola que é o dia que se extingue. Entretanto, o rio corre. Mais propriamente se diria: anda, arrasta-se - mas não é costume.»

Pode dizer-se que a crónica escolhida, como muitas outras do seu autor, tem uma estrutura dual o que, em termos estritamente narrativos, se traduz na passagem da imobilidade contemplativa do narrador-personagem para o seu movimento de descida até às águas do rio, que ativa o registo narrativo. Veremos, todavia, que a orgânica textual é mais rica do que esta evolução bipolar.

Paremos, estrategicamente, no incipit. Retenho, em primeiro lugar, a ideia de que a multiplicidade do real é ordenada por um sujeito imóvel, mas cujo olhar desliza e, aos poucos, vai combinando os dados parcelares que o rodeiam. Aí se materializa o quadro da paisagem: os barcos, o tronco de salgueiro, as árvores, a lezíria, a vegetação e o céu são modelados num conjunto homogéneo, determinado em profundidade, na perspetiva do plano mais próximo para o mais afastado.

O princípio básico da descrição do lugar fluvial vem, portanto, da metonímia pois é ela que combina sintaticamente os elementos subsidiários e lhes dá contiguidade, sempre na dependência de um olhar explicitado («vejo») que reivindica o valor acrescentado de autoridade («conheço-a»). Funciona neste ato metonímico, de combinar dados, a natureza constatativa, a perceção e designação referencial do mundo, numa continuidade que a própria linha da prosa favorece pelo seu ritmo semântico, pela reiteração e remodelação lexical, e pela sua frase melódica.

Convém precisar que, neste caso, não se optou pela estratégia realista da janela como lugar limítrofe e sobranceiro, donde uma personagem observadora toma verosímil a extensão de pormenores sobre a paisagem (cf. Hamon, 1981: 205). Ao contrário, o somatório de pormenores é arrumado a fim de recortar a presença de um corpo sensualizado na paisagem e que, portanto, é fundado e fundador dela mesma. Em termos retóricos, a articulação de conteúdos distintos circunscreve a moldura do continente (a paisagem), dando-lhe uma noção de profundidade de campo, ao ser apreendido de dentro. Nessa medida, não há planos segregados mas um campo abrangente, uma rede de elementos investidos por um corpo que revela a sua experiência do espaço, passível de reajustes consoante a estratégia de representação adaptada. Gradualmente, no avançar do texto, vai-se tomando nítida «uma conceção do exterior como forma de interior (isto é, um espaço de vivência e não apenas de espetáculo)» (Buescu, 1990: 106).

Concretizado pela enumeração, o trabalho metonímico discrimina e processa o alargamento das sensações do eu, da margem do rio até à aldeia, onde soam os sinos fúnebres, e do rio ao céu, o que poderia constituir um exercício de objetivação do real. Só que, em paralelo, o crescendo de pormenores é investido por marcas da perceção do narrador, do seu lugar, do seu saber e dos seus afetos, sendo o remate ou abertura de parágrafo pontuados pela referência insistente ao rio: numa espécie de regresso instável, o rio é um motivo sucessivamente remodelado, sublinhando com maior nitidez o movimento mental em curso que está a tentar dar conta da paisagem pela palavra:

«Entretanto, o rio corre. Mais propriamente se diria: anda, arrasta-se (...)».

«Entretanto, enquanto vou pensando, o rio continua a passar, em silêncio.»

«Olho agora o rio que conheço tão bem.»

O exercício de racionalizar e passar a texto o espaço exige asserções justapostas, cortadas por derivas, hesitações e autocorreções nos termos usados. Na primeira citação transcrita, sobressai, desde logo, o esforço clarificador da emenda (cf. sublinhado meu). A ele se segue o recurso concretizante e recriador da metáfora que funde elementos de posição espacial distinta - há um transvase ascendente na metáfora verbal «O céu onde boiam nuvens» - e que animiza o rio («anda, arrasta-se»). Com tal medida, o fio da escrita parece estar a encontrar pontos de contaminação e a responder a uma linha semântica de extinção (do dia e de vários sinais de vida), segundo as reações e afetos da personagem narradora.

Escolho outro exemplo em que as folhas dos freixos são tomadas pelo efeito transfigurador do olhar, em claro benefício do visualismo descritivo. Sucessivamente aproximadas por comparação, a insetos e pássaros, as folhas são contaminadas na sua natureza em frases justapostas que se corrigem umas às outras, com a estratégia da aproximação e semelhança (cf. sublinhados meus):

«(...) as folhas numa vibração interminável, (...) fazem[-me] lembrar o interior de uma colmeia. É o mesmo fervilhar, uma espécie de zumbido vegetal, uma palpitação (é o que penso agora), como se dez mil aves tivessem brotado dos ramos numa ansiedade de asas que não podem erguer voo.»

O investimento retórico que assinalamos nesta espécie de quadro acústico confere à experiência sensorial uma força recriativa do imaginário, particularmente conseguida também pela inclusão de metáforas, ramificadas a partir do termo primeiro, «vibração» («fervilhar», «palpitação», «ansiedade de asas»), cada vez mais expandidas na sintaxe e na colagem personificadora aos afetos humanos. E, ao mesmo tempo, a linguagem ultrapassa a designação referencial do espaço, mostrando, com o parênteses, um eu-que-está-a-pensar, num trabalho em progresso, realizado ao longo da sua própria escrita.

Torna-se mais intenso o enraizamento e corporalização deste sujeito no território que, como disse, tem um ponto de apoio reiterado no rio, pelo que, de seguida, há uma focagem intensa sobre o lugar fluvial com uma lente mais poderosa: de um tal gesto de concentração resulta a enumeração meticulosa, quase microscópica, das águas, plantas e seres minúsculos do seu caudal. E aqui o rio deixa de ser um mero elemento da paisagem, contíguo em relação ao observador, e passa a estar preso, ele é interiorizado no seu corpo, correndo-lhe nas veias. A metáfora faz do rio uma parte intrínseca do eu que o coloniza afetivamente, a ponto de este elemento espacial vir a perder os seus contornos iniciais, estritamente físicos: «É mais do que um rio, é talvez um segredo.». Ainda modalizado pela dúvida, o rio sofre uma transferência na sua significação, para lá da lógica do mundo que a metonímia assegurou até aqui. Ele passa a estar no lugar do íntimo do sujeito e materializa visualmente o tempo e a sedimentação de esquecimentos e memórias que constroem esse ser humano.

A tarefa de escrever o espaço exige, deste modo, que a mera ligação de elementos contíguos fuja para o impulso da metáfora. Já que mostra explicitamente o dizer na sua feitura, a descrição da paisagem é um caminho de tentativas insatisfeitas que insistem em desvelar os ritmos subterrâneos do panorama de que o observador afinal não se pode separar, porque está nele. Mas insistem também em mostrar o curso do pensar passado a escrito que é acompanhado, passo a passo, num efeito de presentificação. Nas palavras de Maria Lúcia Lepecki:

«Escrever começa, então, no próprio momento em que entramos no perguntar daquilo que está além do óbvio, no momento em que ficamos a saber que não apenas as coisas são, mas que elas são por uma razão qualquer que não se vê ao primeiro olhar. Ou seja, a escrita começa quando a nossa inteligência dá início ao processo de desvelamento: o óbvio não conduz à feitura de quaisquer textos. Toda a textualidade se faz sobre o oculto, mesmo que este seja uma reconversão – evidentemente de natureza filosófica – daquilo que se nos apresentou como adquirido, o natural, o consabido, o não problemático.» (1998: 12)

Uma vez que a palavra consubstancia o modo de percecionar, pensar e construir o mundo, modelizando-o, neste texto o rio potencia o contínuo trabalho metonímico, na sua tentativa incansável de nomear e conhecer o real, o que depois cabe à metáfora concretizar e enriquecer. Ao ser explorado na narrativa, é o discurso metafórico que permitirá desvelar, com propriedade, o tempo inscrito na paisagem líquida, até revelar, no epílogo, a irrupção intensa da memória infantil no corpo que aí aprendeu a nadar, nas marcas físicas deixadas nas mãos que, trinta anos antes, lançavam seixos às águas:

«Desço até à água, mergulho nela as mãos, e não as reconheço. Vêm-me da memória outras mãos mergulhadas noutro rio. As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que já se perderam no mar. Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos. Então uma ave cor de fogo passa como um relâmpago. O sino cala-se. E eu sacudo as mãos molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora.»

Daí que o narrador dê conta e verbalize o seu confronto existencial com o passado e escolha a metáfora para concretizar a transferência semântica, para que veja passar o tempo nas águas e reconheça as suas «mãos molhadas de tempo».

O rio estimula, sem dúvida, uma espécie de gesto narcísico do eu que encontra o outro de si, da infância passada. Aí afina a medida individual do tempo que, na linha da escrita, se vai ela própria corrigindo por camadas, sucessivamente desveladas para lá do óbvio. Por isso, a metáfora tópica do rio, anunciada no motivo heraclitiano que dá título à crónica, é também ela reformulada, no seu remate.

Num primeiro momento, surge a imagem das águas, sem retomo, perdidas no mar, e que, devastadoramente, fazem do ser humano alguém que se senta desistente na margem a ver-se passar: por isso, o eu surge contemplativo, deliberadamente isolado do mundo e do «lamentoso toque de sinos», vindo da aldeia ao fundo, e longe das garças no seu «bailado sem princípio nem fim». Essa atitude não anda longe da do latinista Ricardo Reis que, no romance saramaguiano, contempla o seu rio e se alheia das chamas das várias Addis-Abebas da história sua contemporânea, que desesperada mas inutilmente tenta apagar.

Só que, no último parágrafo, a metáfora-base do rio, como fluxo imparável do tempo, é intersectada e enriquecida por outra metáfora em afirmação, a do aluvião: «Vejo passar o tempo. Tem a cor da água e vai carregado de detritos, de pétalas arrancadas de flores, de um toque vagaroso de sinos». As águas arrastam consigo sedimentos de destruição que, mais tarde, ao transbordarem, poderão ser depositadas em jazigo mineral precioso, numa margem qualquer. Sublinho que, uma vez rasurada a palavra «rio» no resto do texto, só o comparante, o tempo, está marcado no discurso e, assim, prenuncia a evolução para uma metáfora in absentia que espacializa o tempo.

De qualquer modo, o rio constitui um polo irradiador de significação simbólica: por ele temos a «inscrição de um tempo que encontra no seu espaço material a medida tangível da sua apreensão» (Seixo, 1984: 73). Por ele se orienta um olhar singular que sabota a imagem do continuum temporal e gradualmente desvela as marcas contraditórias e simultâneas que a História ritmou, imprimiu e recalcou na paisagem, com arrumação caótica. Pelo rio se evolui, então, da ideia de um tempo linear e homogéneo para as durações múltiplas de cada momento histórico.

Toda a paisagem fluvial ganha corpo ao ser sucessivamente percorrida e investida por uma apreensão e, portanto, desde o incipit, vibra em múltiplos sinais sobrepostos, logo naquele «tronco de salgueiro cortado em remotos tempos» ou nos «aglomerados de lodo seco» que indiciam «Vestígios da cheia». Afinal, o olhar vai assinalando, vai levantando do chão as suas sinuosidades, aparentemente invisíveis, as virtualidades simultâneas que o tempo pacientemente acumulou: nesse sentido, este lugar lembra imenso as cores do tempo impressas na planície alentejana que é o mapa da história esquecida dos camponeses, em Levantado do Chão; lembra ainda a parede da cidade moura, na História do Cerco de Lisboa; ou, mesmo, o ficheiro de inscrição do registo civil de Todos os Nomes.

A nomeação do mundo é acompanhada a par e passo e segundo o ângulo singular de um observador que aí inscreve sentidos e aí é recortado na sua constituição e evolução. Insisto em dizer que esta paisagem não é um espetáculo marginal, contíguo, mas é a vivência de um corpo com sensações visuais e auditivas que se vão mesclando, quase até assumir a sinestesia. Além disso, nomear aqui o real, no seu fluxo contraditório, é dá-lo em texto, consciente de cada um dos procedimentos e materiais necessários à escrita e, inclusive, do tempo de representação desse mesmo lugar. Não esqueçamos que, no epílogo, o tempo-rio arrasta detritos dos materiais usados na (composição da) paisagem, entre eles «um toque vagaroso de sinos». Este lugar fluvial consegue, inegavelmente, identificar o contorno de quem o constrói, na medida em que ele é «a forma de o sujeito se posicionar dentro de um mundo, de se pensar dentro dele e em relação a ele» (Buescu, 1990: 110), até como seu construtor textual, acrescentaria eu.

«Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio» mantém uma vigilância constante sobre a sua escrita, obrigando-a a uma incansável reformulação, o que se comprova no gesto de aperfeiçoar a metáfora do conhecimento, o olhar, que busca os sentidos na paisagem, com uma sua substituta, as mãos. No plano simbólico, as duas metáforas equivalem-se, já que ambas permitem fazer coisas, criar artefactos, moldados pelas marcas idiossincráticas e contingentes do seu autor. Só que as mãos implicam uma sensorialidade acrescida, mais intensa, do sujeito, na proximidade do tato e, claro, uma intervenção decidida, festiva e mais visivelmente criadora:

«E eu sacudo as mãos molhadas de tempo, levando-as até aos olhos – as minhas mãos de hoje, com que prendo a vida e a verdade desta hora.».

Se a palavra é fundadora do lugar e do eu que no seu seio o escreve, é graças a esta nova e derradeira metáfora («as mãos molhadas de tempo») que se proporciona uma cena de sagração da historicidade. Ao sentido trágico, impotente, de perda, no curso linear e imparável das águas, sucede a ressurreição, como um batismo, porque a água impregna e integra a personagem no corpo da paisagem, temporalizado em todas as suas manifestações, da dimensão cósmica até à escala mais reduzida das «plataformas de limos » deslizantes, que é o chão das rãs e libélulas. Sem conseguir reter o tempo, o eu não se fica como espectador passivo: adere e inscreve o seu corpo num real vibrante de tempo( s) e a que foi conferindo sentido(s ), sempre inacabado(s), sempre sujeito( s) a um trabalho de emenda e apuro. A paisagem e o discurso sobre ela estão, com efeito, irremediavelmente contaminados pela historicidade.

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Ler mais em: “Notas nas margens de uma crónica de José Saramago”, Carina Infante do Carmo. In: Vértice n.º 91, julho-agosto de 1999. Disponível em: http://hdl.handle.net/10400.1/5831





“Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, de José Saramago: utopia à “vida e a verdade” daquela hora

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Tendo em vista a analogia entre as águas do rio e o tempo, podemos fazer a seguinte indagação: como o narrador recorda a passagem do rio? O narrador faz esse resgate à memória através da cor e da consistência da água, que faz o observador lembrar o tempo passado. O rio está cheio de detritos e de lembranças, como a do sino a soar. Por se tratar de uma crónica lírica, o emprego de muitos termos com significado figurado é frequente, assim podem ser notados, também, o emprego de algumas figuras de linguagem pelo autor.

Ao decorrer da narrativa, o narrador tenta reter com suas mãos, no presente, “a vida e a verdade” daquela hora, nesta passagem há um belo trabalho de Saramago com o emprego da metáfora, na verdade o que o narrador pretende nos dizer é que ele sabe que tudo vai passar, pois o tempo é efémero.

A metáfora quando bem utilizada dá o realce ao texto de não servir apenas como um significado figurado, mas sim, a partir dela criar certas expectativas no leitor, como se percebe na citação a seguir, “Então uma ave cor de fogo passa como um relâmpago”. A simbolização aqui empregada por Saramago é o despertar do narrador – que, depois de ver o passado se esvaindo e o sino calando-se, volta à realidade, ao presente.

Saramago utiliza muito em sua crónica palavras em sentido figurado, desse modo, faremos, neste momento, um recorte de algumas passagens da narrativa e tentaremos mostrar o verdadeiro significado que essas palavras assumem no texto. “(...) vejo as terras lisas da lezíria, ao fundo uma franja da vegetação (...)”, o termo figurado “lezíria”, significa nesse contexto em que está empregado, “margem de rio”, são as terras lisas da margem do rio que são vistas; “(...) as espadanas verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs (...)”, os termos figurados “espadanas” e “limos”, significam nesse contexto, respetivamente, “ervas aquáticas” e “lodo”; “ (...) alinham-se os freixos que, a esta distância, por obra do vento (...)”, o termo figurado “freixos”, significa nesse contexto “plantas”, são as plantas que se aliam; “(...) conheço-lhe os fundões e as locas onde os barbos pairam imóveis”, os termos figurados “locas” e “barbos”, significam no contexto em que estão empregados, respetivamente, “grutas pequenas” e “peixes”.

O trabalho de Saramago nessas expressões figuradas é riquíssimo e dar uma sonoridade e uma poetização a linguagem do texto. Esse recurso utilizado pelo o autor é possível ser percebido durante toda a narrativa, como, também, no exemplo a seguir: “Apanho uma pedra, um seixo redondo e denso (...)”, a expressão “seixo”, é empregada na crónica com o sentido de “cascalho (ou pedra pequena e arredondada)”.

O escritor português não fica apenas no sentido figurado de algumas palavras e nem tão pouco no emprego de algumas metáforas, ele, magistralmente, vai além. Nota-se, também, o emprego de mais duas figuras de linguagem: a hipérbole e a prosopopeia. Vejamos essas figuras nos seguintes exemplos, a seguir.

É o mesmo fervilhar, numa espécie de zumbido vegetal, uma palpitação (é o que penso agora), como se dez mil aves tivessem brotado dos ramos numa ansiedade de asas que não podem erguer voo. Entretanto, enquanto vou pensando, o rio continua a passar, em silêncio.

Muito alto, duas garças brancas (ou talvez não sejam garças, não importa) desenham um bailado sem princípio nem fim: vieram inscrever-se no meu tempo, irão depois continuar o seu, sem mim. Olho agora o rio que conheço tão bem.

A expressão “dez mil aves,” foi empregada no sentido figurado, portanto, há um exagero de linguagem, levando à figura de linguagem denominada hipérbole. A prosopopeia, que é a atribuição de características humanas a seres inanimados, é apresentada no seguinte exemplo: “O sino ainda toca, a tarde teve agora um arrepio (...)”, a tarde reage, nesse exemplo, como um ser vivo ao arrepiar-se. No segundo exemplo exposto, percebemos mais uma vez a figura de linguagem denominada de prosopopeia empregada pelo autor. Saramago atribui características humanas as garças pelo fato, de desenharem um bailado, características que, se não pelo efeito poético, e criativo do escritor, seria impossível de acontecer. Segundo foi verificado, o escritor utilizou muito dos recursos linguísticos, retóricos e expressivos em sua crónica; ele foi audacioso e muito original em ‘brincar’ com a denotação e a conotação das palavras.

Quando o emissor ou locutor busca objetividade ao transmitir a mensagem, temos a linguagem denotativa através da função referencial. As palavras são empregadas em sua significação real, usual e literal. A conotação é o emprego de uma palavra através de um sentido incomum, figurado, circunstancial, que depende sempre do contexto. Muitas vezes é um sentido poético, fazendo comparações, como já foi demonstrado neste trabalho.

A discussão aqui proposta se assenta na conceção de que em Saramago, é nítido o trabalho de poetização da linguagem e de alerta para os problemas da sociedade. Foi pensando nessa e em outras questões que nos propomos a fazer um estudo desse género textual - a crónica -, que por vez se encontra muito atual e nos faz, enquanto seres humanos, refletir muitas questões, que às vezes se encontram em meio a esse cenário caótico e destoante, muito obsoletas.

Por se referir a um género textual em que sua materialidade linguística e seu propósito comunicativo é típico de factos do quotidiano, o autor apresenta um jeito próprio de escrever, ora são apresentados parágrafos longos sem nenhuma pontuação, a não ser a vírgula; ora são apresentados parágrafos curtos, mas que dizem muito em questão de significados e em harmonia literária.

Saramago, também apresenta em sua crónica com bastante maestria e audácia, a confusão e/ou paralelismo entre o que ele caracteriza como personagem e narrador. Por vezes, ficamos em dúvida se o que está sendo relatado é uma visão/fala do narrador ou se é do personagem. Saramago é um dos poucos escritores que nos fazem refletir. Ler o autor é saber ler também o que está nas entrelinhas.

Além disso, o ser social é caracterizado no enredo. Ao nascer o indivíduo possui determinados traços sanguíneos que o fazem pertencer a alguma família, estas possuem condições diferenciadas, então é como se já nascêssemos com um destino pré-meditado, cabendo ao indivíduo mudar ou permanecer inerte a determinadas situações sociais. Contudo, os traços culturais de seu povo em seu sangue são para sempre.

A cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas (também chamadas tira-olhos) pousam a extremidade das pequenas garras – este rio é qualquer coisa que me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre.

A crónica em estudo ainda pode ser comparada a outras também escritas pelo autor, como é o caso das que são dedicadas aos seus antepassados, “Carta a Josefa, minha avó” e “O meu avô também,” tanto na crónica quanto nessas cartas, o eu-lírico, reflete sobre vários aspetos quotidianos: o tempo, a infância, a água, a saudade, a vida e até a morte. Esses aspetos/Essas temáticas são temas recorrentes em crónicas Saramaguianas.

E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem saber?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca.

O clímax da crónica é atingido quando o presente se cruza com o passado, o velho com o novo, numa profunda reflexão sobre a existência humana. O trabalho com a efemeridade do tempo e a transitoriedade da vida são temas muito subjetivos que, na sociedade pós-moderna, acabam passando cada vez mais rápido. O tempo é um tema recorrente, que chama a atenção da humanidade desde os primeiros filósofos, como é o caso de Heráclito com sua teoria “tudo flui” ou “tudo passa”, onde ele defendia que “O mesmo homem não pode atravessar o mesmo rio duas vezes, porque o homem de ontem não é o mesmo homem de hoje, nem o rio de ontem é o mesmo de hoje”.

[…]

Ler mais em: “A fugacidade do tempo e a efemeridade das coisas em José Saramago e Mia Couto: Diálogos com a transitoriedade da vida”, Deividy Santos e Edvania Silva. In: Revista Diálogos , n.° 15 – mar. / abr. – 2016 – issn: 2236 1499 95.

 

 


CARREIRO, José. “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio - crónica de José Saramago”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 22-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/ninguem-se-banha-duas-vezes-no-mesmo.html