domingo, 21 de janeiro de 2024

A escrita, por Afonso Cruz

Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras

 

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.

Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas. Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura. Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.

A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este papel”:

A subscrição foi submetida com sucesso!
Parte inferior do formulário
A mão ao assinar este papel arrasou    [uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
 [taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e    [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um    [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer    [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas    [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu    [domínio
sobre o homem por ter escrito um    [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas    [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem    [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como    [outras o céu;
 mas nenhuma delas tem lágrimas para    [derramar.

 

O ato de escrever solidifica o pensamento, e este, muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito, para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu o seguinte em 1910:

“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”

Voltando às ruínas:

O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.

A certa altura, durante a colonização inglesa da Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra, para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada, corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da História, capazes de coisas bem piores.

Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura e a própria noção de humanidade.

 

Afonso Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/

 

***

 

Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.

O autor revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade mais bela e significativa.

 


segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Receitas de Ano Novo e uma definição de Poeta

 


Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

 

Carlos Drummond de Andrade, Discursos de Primavera e Algumas Sombras. São Paulo, Companhia das Letras, 1977

 

"Receita de Ano Novo" - ilustração de Sónia Oliveira (in Letras & Companhia 9, 2013)


Pode causar estranheza ao leitor porque a receita é um texto de caráter utilitário, normalmente utilizado para orientação de quem cozinha, e o título em causa pertence a um poema, que é um texto literário. Além disso, indica como se pode obter algo imaterial – um bom Ano Novo.

De acordo com o sujeito poético, quatro ingredientes um Ano Novo terá de ter para ser “belíssimo”: ter a cor do arco-íris ou a cor da sua paz; ser incomparável com outros anos mal vividos ou sem sentido; ser novo nas sementinhas e no coração, espontâneo; ser tão perfeito no dia a dia que passe despercebido.

O poeta dirige-se a quem pretende “ganhar um Ano Novo”, referindo, por exemplo, que não valerá a pena beber champanhe, enviar ou receber mensagens ou acreditar que, a partir de janeiro, as coisas mudam.

O interlocutor, para o conseguir, terá de lutar por ele, de merecê-lo e de procurá-lo dentro de si. 

Carla Marques e Inês Silva, Letras & Companhia - Português 9.º Ano. Lisboa, Edições Asa, 2013



Download do vídeo disponível aqui.

***


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:




Boas saídas e entradas

Ainda ontem

Tentei fazer uma crítica do que me aconteceu em 2023 como se estivesse a avaliar um telemóvel. De um lado do caderno listei os prós e, do outro, os contras.

Os prós esgotaram-se num instante e amaldiçoei a estrutura binária que dei à minha avaliação, levando ao desperdício da primeira metade do caderno, quase todo vazio.

E logo ali aprendi uma primeira lição. Esta mania dos prós e contras, de dividir tudo em dois, como se os positivos e negativos se equilibrassem e, pior ainda, como se fossem importantes, esta mania só mostra uma coisa: que já estamos a ditar a resposta que queremos (que é aquela que nos dá jeito, que dá pouco trabalho, e se compreende facilmente), mesmo antes de fazermos a pergunta.

Schopenhauer, condenado a ser lido quando estamos mais próximos dos vinte anos do que qualquer ser humano merece estar, fazia questão de dizer que o prazer, num mundo cheio de sofrimento, é apenas a ausência de sofrimento.

Mas que ausência! Que gloriosa ausência, a demonstrar a ironia daquele “apenas”!

Quando comecei a pôr nos “prós” os dias em que não acordei com dores, os dias em que não pus em causa o sentido da vida, e as manhãs e tardes em que nenhuma enxaqueca me visitou, o caderno encolheu de um momento para o outro.

É sempre bom ler os pessimistas. Mas há um género de pessoa que abomino: aquele que lê os pessimistas só para se sentir melhor. É o equivalente filosófico de começar a ler o jornal pela necrologia e pelas tragédias.

Essas pessoas não aguentam que haja quem seja menos miserável do que elas. Tendo os pessimistas por companhia exclusiva, asseguram-se que são os pintainhos menos deprimidos do curral.

Schopenhauer era um grande escritor, cheio de ideias, que falava de tudo e de alguma coisa, e que não tinha medo nenhum de se pronunciar sobre as grandes questões da vida. Foi condenado a ser julgado sem ser lido: uma tragédia (para os não-leitores) que nem o próprio Schopenhauer teria apreciado.

Boas entradas!

 

Crónica de Miguel Esteves Cardoso, jornal Público, 31-12-2023


***



Antes de acabar o ano gostaria de deixar uma definição de poeta que pode ajudar a enfrentar as agruras do próximo ano.

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura cómica.

Obviamente haverá outras definições e também serão boas. Conheço muita rapaziada para quem poeta é quem está macambúzio, ou a vomitar as entranhas, de preferência à beira de uma sarjeta no Bairro Alto. Feitios.

E obviamente que ser poeta não nos protege de um tiro, uma conta da água, uma perna partida, uma expulsão do apartamento, uma perda de emprego, uma doença má tipo gripe, cancro ou joanetes.

Ainda assim, não desajuda. E com uma depressão é um pequeno mecanismo mental (traduzo para os mainovos: uma app) que pode fazer milagres, com a vantagem de não vir em comprimido. E o lado bom é que, com o treino, vicia.

Repito, até porque a repetição faz parte da poesia:

Poeta: pessoa que consegue tornar o dia, por mais chato que este seja, numa aventura. De preferência, cómica.

Rui Zink, https://www.facebook.com/rui.zink.7/posts/10160374955862968, 30-12-2023



segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natal (José Manuel R Barroso)


 

NATAL

 

Porque multiplicaste os pães e os peixes

nas nossas mãos nuas?

Porque deixaste sementes tão fundas

nos nossos corações?

Porque nos deixaste a autoridade tão grande

da Palavra, se somos o homem

que olha o rio e nele não se reconhece?

 

Poema e fotografia de José Manuel R Barroso, disponíveis em https://www.facebook.com/josemanuel.reis.908, 25-12-2023


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Poética (Manuel Bandeira)


 

Poética

 

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem-comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e

[manifestações de apreço ao sr. diretor

 

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho

[vernáculo de um vocábulo

 

Abaixo os puristas

 

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

 

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

 

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com

[cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de

[agradar às mulheres, etc.

 

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

 

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

 

BANDEIRA, Manuel, Melhores poemas, 17.ª ed. – São Paulo: Global, 2015, p.64

 



 

Manuel Bandeira e a Metapoesia

Ao longo de sua carreira, Manuel Bandeira escreveu vários poemas que podem ser considerados “poéticas”, ou seja, eles tratam do “fazer poesia”, ora dizendo para quê a poesia serve, ora dizendo como ela deve ser. Este trabalho apresenta um estudo sobre seis destes poemas, procurando verificar as diferenças e semelhanças entre eles e, ainda, se o que o poeta preconiza é o que ele faz nos próprios poemas. […]

“Poética” integra o quarto livro de poemas de Manuel Bandeira, intitulado Libertinagem e publicado em 1930. Podemos perceber que nele o autor expressa como deveria ou não deveria ser a poesia, de acordo com a sua perspectiva, paralela aos preceitos modernistas. Dentre os poemas de Bandeira que podem ser considerados uma ars poética, talvez este seja o mais conhecido e aclamado. Quanto a isto, citamos o crítico Ivan Junqueira, quando afirma que «‘Poética’ não é apenas um dos melhores poemas do autor, mas também um dos mais importantes que escreveu, talvez o mais significativo no que se refere ao discurso metalingüístico e à síntese de seus procedimentos líricos» (2003, p.107).

Quanto ao poema estar de acordo com os preceitos modernistas, vale ressaltar que isto é o que ocorre em todo o livro em que se insere, já que os poemas de Libertinagem foram escritos entre 1924 e 1930, período de muita força do movimento. O próprio Bandeira admite, no Itinerário de Pasárgada, que esses foram « os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo» (1984, p.91).

De acordo com “Poética”, a poesia deve ser “livre”. Livre das formas preestabelecidas, das palavras empertigadas, dos modelos tradicionais. Livre para falar de qualquer tema. Desta forma, “Poética”, assim como “Os sapos”, soa como um grito de libertação. Grito que, na verdade, perpassa todo o livro Libertinagem, desde seu título, pois libertinagem aqui não tem o significado associado à “prática do libertino”, mas sim, a uma “irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos” (Dicionário Houaiss), uma vez que o próprio Bandeira, ao comentar o seu livro anterior (O ritmo dissoluto), afirma que nele alcançou uma “completa liberdade de movimentos” e complementa: “liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem” (1984, p.75). Ou, como disse Ribeiro Couto, “libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade” (apud JUNQUEIRA, 2003, p.89). Ao comentar Libertinagem na sua História concisa da literatura brasileira, Alfredo Bosi afirma que o livro apresenta “um fortíssimo anseio de liberdade vital e estética” (2006, p.363).

Observamos que há um enunciado no qual um sujeito estava em conjunção com um objeto de valor não desejável (o lirismo comedido, bem-comportado, namorador, etc.) e em disjunção com o objeto de valor desejável (o lirismo dos loucos, dos bêbados, etc.). Os valores não desejados são aqueles que estão de acordo com a “poesia tradicional”. Ao dizer que está farto de determinado tipo de lirismo, o sujeito rompe com o contrato antes estabelecido com tal poesia e passa a querer estar sob o signo da “poesia modernista”. Em termos passionais, temos, numa primeira fase, um sujeito da liberalidade ou do desprendimento, uma vez que ele quer-não-estar em conjunção com o objeto de valor (neste caso, o lirismo comedido), e um sujeito da revolta, ou seja, um sujeito que se volta contra os valores de seu destinador (a poesia “tradicional”). Em seguida, o que figura é um sujeito do desejo, ou seja, aquele que quer-estar em conjunção com o objeto (ou seja, o “lirismo livre”). Assim como em “Os sapos”, o sujeito, ao propor uma ruptura com os valores preestabelecidos e acolher, logo sem seguida, novos valores, está afirmando a descontinuidade. Tal ruptura vai ao encontro de um dos ideais no movimento modernista que, nas palavras de Mário de Andrade, era uma estética renovadora. Segundo ele, «o modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional (...)» (2002, p.258).

Constatamos que o tema principal deste texto é, obviamente, o “fazer poesia”, o que fica evidente desde o seu título, dado que poética é “o estudo da criação poética em si mesma” (ARISTÓTELES apud KOSHIYAMA, 1996, p.83). Ao longo do texto o narrador enumera características disfóricas ou eufóricas para a poesia, representada aqui pelo lexema lirismo, que aparece doze vezes. As características disfóricas são introduzidas por expressões como estou farto, abaixo e de resto não é, que “acentuam o caráter contestatório do poema” (BRANDÃO, 1987, p.22). O poema pode ser dividido em blocos, sendo que em cada um deles determinadas figuras se agrupam formando um percurso figurativo. Desta forma, o primeiro percurso figurativo observado é aquele composto por comedido, bem-comportado, funcionário público, livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Este é o percurso figurativo do “ajustado e rotineiro” (Cf. BRANDÃO, 1992, p.124). Já as figuras dicionário, puristas, barbarismos universais, sintaxes de exceção e ritmos inumeráveis compõem o percurso figurativo do purismo de linguagem. No bloco que se inicia com o verso “Estou farto do lirismo namorador”, os termos namorador, político, raquítico e sifilítico formam o percurso figurativo do lirismo interesseiro. Por fim, o último bloco com características disfóricas é aquele que contém as figuras contabilidade, tabela de co-senos, secretário do amante exemplar, modelos de cartas, que compõem o percurso figurativo da mecanização ou do excesso de rigidez formal, no sentido da utilização de moldes preestabelecidos. Observamos, ainda, que neste último bloco são expandidas tanto a série do “lirismo rotineiro”, quanto a do “lirismo interesseiro”. O poema sugere que há, na poesia disforizada, uma poderosa conexão com a tradição, o que não permite a experimentação de novas formas artísticas.

Os quatro percursos figurativos apontados estão, na verdade, interligados, remetendo a um único tema que é o da opressão. Todas as figuras remetem, de alguma forma, a um tipo de aprisionamento. O lirismo associado a tais figuras é um lirismo oprimido, preso a comportamentos, formas, modelos, convenções, etc. De acordo com Brandão (1987, p.23), este poema “recusa as manifestações líricas que se caracterizam seja pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço exclusivo de interesses outros”. Por outro lado, na penúltima estrofe, as figuras loucos, bêbedos e clowns de Shakespeare formam o percurso figurativo da liberdade – corroborado pelo último verso: Não quero mais saber do lirismo que não é libertação –, uma vez que estes papéis não estão presos às convenções sociais. Basta lembrar que os bêbados e loucos usufruem de certa licença para fazer qualquer coisa sem censura. Temos, pois, dois percursos figurativos em oposição, dados que eles recobrem dois temas antagônicos: a opressão e a liberdade do “fazer poético”.

Diante do que foi exposto até aqui, percebemos que o poema euforiza um lirismo livre, uma poesia “livre das amarras” e propõe uma ruptura (conforme comentamos quando da análise do nível narrativo) com a poesia dita tradicional. A crítica de “Poética” se dirige mais especificamente à poesia parnasiana e pós-parnasiana (cujos preceitos principais eram o purismo, a supervalorização das formas, a perfeição) e à poesia romântica, visto que «o lirismo namorador / raquítico / sifilítico compõe um conjunto que tem sua referência na temática romântica. O poeta questiona aqui alguns dos motivos mais utilizados por nossos românticos, o amor inconseqüente, o patriotismo, o estado doentio» (BRANDÃO, 1987, p.24).

Com relação ao plano da expressão, salta aos olhos que o poema é composto com uma “liberdade de formas”, isto é, com divisão entre estrofes irregular, versos livres, ritmo irregular, versos “muito longos”, etc.

 

Dayane Celestino de Almeida, Revista Eutomia Ano I – Nº 01 (215-247) 227. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1984

 




Questionário sobre “Poética”, de Manuel Bandeira

1. Com base na leitura do poema, podemos afirmar corretamente que o poeta:

A) Critica o lirismo louco do movimento modernista.

B) Critica todo e qualquer lirismo na literatura.

C) Propõe o retorno ao lirismo do movimento clássico.

D) Propõe o retorno do movimento romântico.

E) Propõe a criação de um novo lirismo.

 

Resposta: Alínea E.

Ao nos atermos aos pressupostos ideológicos que demarcaram a estética modernista, todas as proposições, exceto a letra “E”, consideram-se como incoerentes, uma vez que um dos posicionamentos de Manuel Bandeira era de extrair poesia das coisas mais banais da realidade, renegando assim o sentimentalismo exacerbado dos românticos (por isso, ele não retoma ao movimento), bem como repudiando quaisquer traços formais em termos de estética, razão pela qual se pautava, sobretudo, pelo uso do verso livre (por isso, não retomou ao movimento clássico).

Dessa forma, o porquê de a letra “E” ser considerada correta deve-se ao fato de que a nova proposta não era a de abominar a poesia, tanto é que, como expresso anteriormente, a temática por ele explorada se originava das coisas corriqueiras da vida.

(ENEM. Disponível em: https://exercicios.brasilescola.uol.com.br/exercicios-literatura/exercicios-sobre-modernismo-no-brasil.htm)

 

2. Assinale a alternativa incorreta em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema intitulado “Poética”.

A) No poema, o poeta faz uso do verso livre e de uma pontuação não tão usual na língua culta, estas características associam o poema a correntes de vanguarda.

B) Nos versos “Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais” (8) e “Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção” (9) o poeta faz uso da função metalinguística, embora haja no poema a predominância da função poética.

C) No poema, o autor ressalta como temas a precariedade de sentimentos, a transitoriedade de afetos, revelando um eu–lírico desiludido, destituído de sentimentos.

D) A leitura dos versos da quinta estrofe, reforçados pelo uso de adjetivos, leva o leitor a inferir que o poeta Manuel Bandeira, ironicamente, faz crítica aos aspetos abordados pelos poetas românticos.

E) No poema, Manuel Bandeira faz uso do verso livre, não utiliza as regras convencionais tanto na escrita quanto na métrica – versificação – caracterizando o versilibrismo, deixando à mostra a rutura com a poética e com a língua tradicionais, caracterizando um poema pertencente à estética Moderna.

Resposta: alínea C.

 

3. Analise as proposições em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema acima transcrito, e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa.

(   ) A leitura da estrofe sete leva o leitor a inferir que o poeta dá preferência ao lirismo mais autêntico, dos loucos, dos bêbedos e dos clowns, não preso a valores sociais, em detrimento de um lirismo tradicional.

(   ) Nos versos “Quero antes o lirismo dos loucos” (20) e “O lirismo difícil e pungente dos bêbedos” (22) se os vocábulos destacados forem substituídos por pelos, não há prejuízo quanto ao sentido original do texto e quanto à regência.

(   ) Nos versos “Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com” (17) e “cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de” (18) os vocábulos assinalados, embora possuam classificação gramatical diferente, não se flexionam para indicar o gênero masculino ou feminino, sendo que a indicação de gênero ocorre por meio de modificadores.

(   ) O sinal gráfico ( [ ) nos versos 4, 6, 18 e 19, usado para intercalar as estruturas poéticas – versos, assume uma outra função, a de reforçar o descomprometimento com as regras gramaticais, conferindo à nova forma de escrever também um novo valor poético e literário.

(   ) No verso “Quero antes o lirismo dos loucos” (20) o verbo, quanto à transitividade, é bitransitivo, pois tem como complementos verbais objeto direto – lirismo, e objeto indireto dos loucos.

 

Assinale a alternativa correta, de cima para baixo.

A) F – F – F – V – F

B) V – V – V – F – F

C) V – V – F – V – F

D) V – F – V – V – F

E) F – F – V – F – F

Resposta: alínea D.

(Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. Questões 38 e 39 do vestibular 2018.1, de 26 de novembro, disponível em https://www.udesc.br/arquivos/udesc/id_cpmenu/5978/CADERNO_MANH__COM_GABARITO_15117379179292_5978.pdf; gabarito disponível em https://arquivos.qconcursos.com/prova/arquivo_gabarito/58486/udesc-2017-udesc-vestibular-primeiro-semestre-manha-gabarito.pdf?_ga=2.69263824.1987684596.1702589541-1009661154.1702589541)





Proposta de escrita criativa

Já estudamos a construção e o objetivo de um manifesto. A proposta de produção será: vamos reescrever o “Poema-manifesto” de Manuel Bandeira. Sabemos que o poeta, quando escreveu o poema, estava farto das propostas que representam o pensamento estético predominante na época. E, hoje, o que nos deixam fartos, quais situações de nossa época estamos condenando. Considere a estrutura do poema, a nossa realidade, faça as suas críticas e adaptações no poema.

 

Poética ou ____________

Estou farto ____________

Do(da) ____________

Do (da) ____________

Estou ____________

Abaixo os(as) ____________

[...]

Quero ____________

O(a) ____________

O(a) ____________

O (a) ____________

- Não quero mais saber do(da) ____________

 

(Josely Cristiane Telles, Formação continuada – SEEDUC. Disponível em https://canal.cecierj.edu.br/012016/47e2af0d48886eb3d1feff02a52356e8.pdf)

 



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Problema de expressão (Clã)


Problema de expressão

Só pra dizer que te Amo,
Nem sempre encontro o melhor termo,
Nem sempre escolho o melhor modo.

Devia ser como no cinema,
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

Só pra dizer que te Amo
Não sei porquê este embaraço
Que mais parece que só te estimo.

E até nos momentos em que digo que não quero
E o que sinto por ti são coisas confusas
E até parece que estou a mentir,
As palavras custam a sair,
Não digo o que estou a sentir,
Digo o contrário do que estou a sentir.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

E é tão difícil dizer amor,
É bem melhor dizê-lo a cantar.
Por isso esta noite, fiz esta canção,
Para resolver o meu problema de expressão,
Pra ficar mais perto, bem mais de perto.
Ficar mais perto, bem mais de perto.

 

Clã, Kazoo, 1997

Composição: Hélder Gonçalves / Carlos Tê

 

Clã na foto da capa do álbum Kazoo, de 1997

 

Problema de expressão

Os Clã não escreveram só canções. Escreveram-nos canções. Para cantarmos de olhos fechados uma letra (de Carlos Tê) que revolvia a nossa timidez na hora de dizer ‘Amo-te’. Na língua inglesa, qualquer patetice fica mesmo sempre bem; em português, qualquer exteriorização de intimidade assume-se como extravagante (afinal, todas as cartas de amor são mesmo ridículas). A Carlos Tê reconhece-se o dom para simplificar conceitos complexos e para complexificar conceitos simples. Mas a Carlos Tê reconhece-se sobretudo o mérito de as suas letras nos fazerem vibrar como cordas. E foi ‘O Problema de Expressão’, do álbum “Kazoo”, que nos fez começar a vibrar como cordas com os Clã. É uma canção intimista, envolvente, delicada e viciante, fazendo-nos sentir parte do elenco em que foi composta. Há vizinhança entre a letra de ‘Problema de Expressão’ e a nossa sensibilidade.

“101 canções que marcaram Portugal #83: ‘O Problema de Expressão’, pelos Clã (1997)”. Ler mais: https://expresso.pt/blitz/2022-03-06-101-cancoes-que-marcaram-portugal-83-o-problema-de-expressao-pelos-cla--1997-

***

Depois de se descobrir o amor, nem sempre é fácil dizer ao outro que o amamos.

O sujeito de enunciação afirma ter um problema de expressão para dizer que ama alguém, porque não encontra o melhor termo ou modo.

Não entende o embaraço que o leva a achar que só tem estima por ele. Em muitos momentos, sente coisas confusas, não dizendo o que sente, mas sim o contrário.

Como é muito difícil dizer “amor”, e, uma vez que é bem melhor dizê-lo a cantar, o sujeito poético fez uma canção. Desta forma, resolveu o problema de expressão e conseguiu ficar mais perto, bem mais perto…

Contos & Recontos 7, Carla Marques e Inês Silva. Lisboa, ASA2013, p. 152

 


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Havia muito sol do outro lado (Crónica de José Eduardo Agualusa)

https://pixabay.com/


     Havia muito sol do outro lado

Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.

– E se fosse para mim?

Os amigos faziam troça:

– No consultório do teu dentista?

Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

– É claro que não vou atender – disse alto. – Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.

O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.

– Está?

Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.

– Posso falar com o Gustavo?

A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem fosse).

– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi parar a uma cabina telefónica.

Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como beber sol pelos ouvidos.

– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…

Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:

– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.

Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:

– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?


Pulau Penang


Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.

– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero que Deus me dê a alegria de morrer no mar.

Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:

– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se chama.

Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.

Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones.

José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp. 53-54

 ***


Escreve um pequeno comentário, entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.

(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, em Contos & Recontos 7. Lisboa, ASA2013, p. 152)

 

       Sugestão de resposta:

O sentido global do texto é mostrar como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e maravilhosa.

Ruben é uma personagem solitária, que tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que lhe fale.

As atitudes perante o telefonema de Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se apaixonar e casar com ela.

O destino é a força que une as duas personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.

O texto é uma celebração do amor e da magia do acaso.