POEMA QUE PESSOA NUNCA PÔS NA ARCA
De Álvaro sei como sei
desse latim do Ricardo
do pensamento de Alberto
luz incerta em gato pardo
sei de algum outro tão bem
como ele sabe de mim
e de quantos sei ainda
metidos na arca sem fim
e de Bernardo esquisito
como espelho em mim cravado
se quebra me quebro eu
mas sangue só de meu lado
sei com todo o pormenor
de tu do o que me nasceu
sei de toda a criação
só não sei o que sou eu.
in Do Agostinho em torno do Pessoa, Ed. Ulmeiro, 1990.
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece, De balas trespassado- – Duas, de lado a lado –, Jaz morto, e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue. De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos. Tão jovem! Que jovem era! (agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: “O menino de sua mãe”. Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve. Dera-lhe a mãe. Está inteira E boa a cigarreira. Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo, A brancura embainhada De um lenço… deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. Lá longe, em casa, há a prece: “Que volte cedo, e bem!” (Malhas que o Império tece!) Jaz morto e apodrece O menino da sua mãe
Fernando Pessoa
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No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece De varas trespassado — Duas, de cada lado — Jaz exposto e arreféce. Raia-lhe a farda o sangue Da quádrupla função. Nórdico mouro exangue Fita com olhar langue O que ainda tem na mão. Que varonil quimera! Agora, que vara tem? Filho único, a mãe lhe dera Um nome, e o mantivera: O menino de sua mãe. Caiu-lhe da algibeira A lapiseira breve. Dera-lhe o pai. Está inteira E boa a lapiseira, Ele é que já não escreve. De outra algibeira, alada Espuma de porto covo, A brancura manchada De um lenço... Foi a criada Quando êle era mais novo. Lá longe — na Casa do Conto — há prece: «Que morra cêdo, e bem!» Malhas que o Império tece! Ainda vive e parece O menino de sua mãe.
Mário Cesariny Vasconcelos
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989
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O
SOLDADO MORTO
Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há de beijar ninguém.
Tem as duas mãos côncavas ainda
De possessão de impulso de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa.
E a luz as horas as colinas
São como pranto, em volta do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.
Sophia
de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões p'ra cantar que a vida. Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente 'stá pensando. Derrama no meu coração A tua incerteza voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai!
Fernando Pessoa, 1914
in Athena, nº 3, 1921
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ele dorme, pobre ceifeiro, quando
a goiva e o formão lhe encontraram o corpo circunscrito sob o lenho supérfluo. desbastando-o a mão obediente seguia o intelecto ao talhar-lhe outro reino que é da serenidade deste mundo, pátria às vezes sensível, melhorável. dorme no seu anonimato, não vai enlevado para parte nenhuma. seu corpo se fez sono e deus, ou seja, a palavra poética ao fim de tudo, é uma questão de técnica e de melancolia.
Vasco Graça Moura,
in Poesia 1963-1995 Ed. Círculo de Leitores |
e pensar enquanto sinto
origina um labirinto
onde me perco e convenço
de que tudo é indistinto,
do que o mundo se organiza
desorganizadamente
nos recônditos da mente
como uma ideia imprecisa
que quando se pensa, sente
e quando se sente, pensa,
numa confusão total,
num processo irracional
em que se esfuma a diferença
entre o que é ou não real.
Dos meandros disso tudo
nasce apenas um desejo:
distinguir o que não vejo
e é talvez o conteúdo
deste infinito bocejo
a caminho não sei de onde,
à espera não sei do quê.
Quem me ouve? Quem me vê?
A vida não me responde
e, afinal, ninguém me lê.
in A Escada de Jacob, Assírio & Alvim, 1993
PARA FERNANDO PESSOA
Acendo um cigarro e esquecido a olhar
entredentes me alheio sem querer
Sobeja de mim o que não sou
Para além disso tudo é demais
(De resto só pensamentos são
o que o pensar apenas alcança)
Cansa a companhia do querer
ao que no pensar está
como o incómodo breve duma agitação
d’alma que logo a si regressa
Sossega ó eternidade
que te seja leve a agrura do tempo
o malquerer dos dias
a fadiga de sonhar caminhos
Apaga-se-me o cigarro entrededos
e estranho de mim extingo-me
como coisa de quase nada
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração
Fernando Pessoa
in Presença, Abril de 1932 |
O POETA É UM FINGIDOR
Entreteço palavras na malha áspera destes versos e a tessitura triste que faço mais esmorece no azul baço do papel. Entristeço então a alma numa renda miúda e apertada de ponto incerto e complicado. Estabeleço assim dois mundos convergentes: A textura entristecida dos versos e a tristeza entretecida da alma. E logo esqueço onde tudo isto teve começo: Se de entristecer palavras, se de entretecer sentimentos, se de constranger a alma, se de contristar palavras: se me contristei constrangendo, se me constrangi contristando. Sei que me contristo entretecendo E me entreteço de tristeza.
Rui Knopfli,
in Mangas Verdes Com Sal (1969)
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Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais...
Fernando Pessoa descendo o Chiado (Lisboa) com Augusto Ferreira Gomes.
Cinco fotografias instantâneas transformadas em cinco fotogramas - a única filmagem conhecida de Fernando Pessoa.
c. 1925
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- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha
de Poesia, 17-05-2018.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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