domingo, 16 de fevereiro de 2014

SOMBRA (Antero de Quental)


 
        
          
SOMBRA
(A Raimundo de Bulhão Pato)
         
Quando Cristo sentiu que a sua hora 
Enfim era chegada, grave e calmo, 
Sereno se acercou dos que o buscavam. 
A turba vinha em armas. Mas, de tantos, 
Nem um só se atreveu a dar um passo, 
A pôr a mão no Filho do Homem.    ‑ Todos 
De olhos no chão, as armas encobriam 
Ante Jesus inerme. 
                                   Então aquele 
Que o tinha de entregar, aproximando-se, 
O tomou nos seus braços, murmurando: 
Que Deus te salve. Mestre! e, sobre a face 
O beijou, como fora contratado: 
Então os mais, chegando-se, o prenderam. 
Mas Jesus, sem os ver, lhes perdoava: 
De olhos no céu, seguia-os sereno. 
Era duro o caminho. Sobre um monte 
Iam e, dos dois lados, lá em baixo, 
Cobria a treva a terra toda. 
                                                Quando, 
Porém, sobre o mais alto desse monte 
Foram enfim chegados, de repente 
Viu-se-lhe uma das faces alumiar-se 
De uma luz doce e branda, mas imensa! 
E quanta terra, desde o monte ao oceano, 
Lhe ficava ao lado aonde virada 
Lhe estava aquela face, refletindo-a, 
Tudo se esclarecia ‑ vale e serra 
E a metade do céu ‑ aparecendo 
Como em puro luar, ou qual se fosse 
Vir nascendo uma aurora desse lado. 
E essa face radiante era a que Judas 
Não chegara a tocar.
                                     Porém a outra, 
Que ele beijara, conservou-se escura 
Como se o crime dele ali guardasse... 
Nem dava luz; e o espaço, dessa banda 
Onde virava, era uma noite imensa, 
Coberto o horizonte de nevoeiro... 
Partido o mundo em dois, essa metade 
Era a que se ficara envolta em sombras. 
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Foi dessas sombras que se fez a Igreja!
Antero de Quental, 1865
              
            
Antero, enquanto poeta-profeta dum mundo melhor, é, logicamente, iconoclasta. Não admira pois que o autor das Odes Modernas veja muitas vezes na História da Humanidade a história da servidão humana. Não espanta que, perante um Crucifixo, tenha escrito em 1862: «Agora, como então, na mesma terra erma, / A mesma humanidade é sempre a mesma enferma», rematando o soneto com a interrogação desiludida «[...] de que serviu o sangue / Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário?» (Só doze anos depois, como é sabido, Antero viria a reconhecer que «... entre nossos avós se conta Cristo.») Esta reabilitação do Mártir do Calvário, este reconhecimento de que Jesus Cristo lutou pela transformação do mundo, significa uma simples alteração no entendimento da missão de Cristo, à face da terra, entendimento que absolve Cristo, não propriamente da inutilidade do seu sacrifício (inutilidade apregoada pelo soneto de 1862), mas do carácter maléfico que num poema ficcional, Antero atribui à crucificação de Cristo. Eis o poema: “Sombra” […]
É claro que o alvo primordial desta ode, ou, melhor dizendo, deste poema narrativo, é a Igreja Católica. Trata-se mais duma atitude anticlerical que duma contestação de Cristo. O anticlericalismo, cujas raízes são velhas, em Portugal como em outros países, é um fenómeno de cariz essencialmente social, não necessariamente antirreligioso ou ateu. Diminuir ‑ ou mesmo destruir ‑ a importância social e a influência política da classe (ou da casta) sacerdotal constitui um fenómeno que muitas civilizações conheceram, em circunstâncias anteriores ao Cristianismo, ou à margem dele. O que se me afigura intrigante neste poema narrativo não é o seu declarado anticlericalismo ‑ os nossos revolucionários oitocentistas, e muito especialmente os intelectuais da «geração de 70», tinham herdado das «Luzes» e da Revolução Francesa a ideia da supressão concomitante do Trono e do Altar-, mas sim a incapacidade, aí notória, de Cristo perante o Mal.
Ao nível mais profundo da sua sinceridade, o que aflige o jovem Antero é o milenar problema de se determinar por que razão um Deus todo Bondade, Criador do visível e do invisível, permitiu a existência do Mal. Não estou minimamente habilitado a tratar de tão melindroso assunto ‑ graças a Deus! Direi somente que este Cristo de Antero, esta personagem de ficção no âmbito do poema «Sombra», nos é apresentado como um ser sem mácula antes de receber o beijo de Judas. A transferência do velho mistério (Luz/Treva/Bem/Mal ‑ Ormuz/Ariman), que Zaratustra só pôde explicar por génese dualista, que o heresiarca Basilides, já na era cristã, pensou resolver por coabitação do Bem e do Mal no seio dum só Abraxas, a transferência, dizia, desse velho mistério para Cristo-personagem constitui, no poema «Sombra», uma tentativa de explicação para o facto paradoxal de, tendo sido Cristo um apóstolo do Bem, o seu martírio ter originado, não uma fonte de bondade para os homens, mas a vitória (até que surja a Revolução, ou a praxis do Evangelho segundo Santo Antero) da «Sombra», que o mesmo é, para Antero, dizer Treva ou Mal ou Igreja. E tudo porquê?... Porque o beijo de Judas venceu a Luz transportada por Cristo. E pergunta-se: ‑ Então era assim tão débil a Luz em Cristo para que o beijo do traidor a destruísse em metade do rosto e em metade do Mundo?
O poema «Sombra» exemplifica o modo como Antero, filósofo da «nova aurora», utiliza traços ficcionais com vista a exprimir a sua visão do mundo, visão marcada, neste caso, por imagens que veiculam a dicotomia luz/treva. Antero, no entanto, está longe de nos transmitir, ao longo da sua obra poética, apenas uma doutrina, ou apenas o lado filosófico do seu espírito. Há neste poeta ímpetos de lirismo, momentos em que o «eu» prevalece e a subjetividade se impõe ao objeto do seu discurso, e até momentos em que o poeta, mergulhando no mais profundo do seu ser, se sente à beira da dissolução da personalidade. O seguinte soneto constituirá um exemplo desta última atitude: “No turbilhão”.
      
Ler mais: "As «ficções» de Antero de Quental", José Martins Garcia. Congresso Anteriano Internacional – Actas [14-18 outubro 1991]. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993.


 angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.

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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).


"Enterrar Jesus", crónica de Frederico Lourenço no  Blog da Cotovia, em 2015-04-06 e republicado na página pessoal do Facebook, 2016-03-26:
Páscoa
O grande problema da celebração da Páscoa para não crentes é a terceira das suas três etapas (sendo elas: crucificação; deposição no túmulo; ressurreição). Para quem prefere manter uma posição céptica e distanciada relativamente ao modo como o Novo Testamento narra a biografia de Jesus, custa aceitar a ideia de que o homem a quem injustamente torturaram e mataram supera milagrosamente o horror do que lhe aconteceu ressuscitando ao terceiro dia. O horror da última sexta-feira da sua vida é crível: é 100% consentâneo com o horror da realidade humana. O sentimento (de perda, de exaustão emocional e de infinita tristeza) vivido pela mãe do defunto e pelos seus amigos é compreensível, necessário e intensamente humano. O que acontece de sábado para domingo – o inexplicável regresso à vida depois da morte – obriga a um salto de raciocínio que a Razão trava à partida. Só podemos aceitar a ideia de que à morte se segue a vida (ainda para mais eterna) se aceitarmos que isso só pode fazer sentido num plano irracional.
Mas permaneçamos no terreno do racional. O Evangelho de Mateus (29: 57) conta como um homem de Arimateia chamado José se dirigiu a Pilatos e obteve dele a permissão para enterrar o corpo de Jesus. “José tomou o corpo” (escreve o evangelista) “envolveu-o num lençol limpo e depositou-o num túmulo novo, que tinha mandado talhar na rocha”. O laconismo discreto das palavras de Mateus não deixa espaço para a consideração do estado emocional de José; das duas mulheres (ambas de nome Maria) que o evangelista inclui neste episódio diz-se apenas que ficaram sentadas em frente do sepulcro. Mas facilmente conseguimos imaginar o estado de espírito com que permaneceram ali sentadas: esse estado de choque, decorrente do luto profundo, foi descrito por um poeta em Roma mais ou menos na altura em que Jesus teria 8 anos de idade. A mulher enlutada descrita por esse poeta queda-se, imóvel, com o rosto pálido e sem pinga de sangue, com os olhos parados e a língua congelada dentro da boca (Ovídio, Metamorfoses 6, 303-6). O horror daquilo a que as duas Marias tinham assistido no lugar chamado Gólgota outra coisa decerto não permitiria.
Quanto às emoções de José de Arimateia, essas só 1700 anos depois é que encontrariam quem as soubesse intuir e descrever. Não apenas por palavras, mas acima de tudo por música. “Quero ser eu a enterrar Jesus” canta o solista da última das quatro árias para Baixo da “Paixão Segundo São Mateus” de Johann Sebastian Bach. “Faz-te puro, meu coração”.
Que sentido tem esse “quero ser eu a enterrar Jesus?” De que serviu declarar isto numa igreja em Leipzig mais de 1700 anos após o acontecimento? E de que servirá hoje, quase 2000 anos depois, a um ex-católico não-crente como eu a ideia de que continua válido o sentimento de responsabilidade individual experimentado por José de Arimateia no enterro de Jesus? Quero ser eu a enterrar Jesus porquê? Que significado tem para mim esse gesto?
Para o não-crente, a acção de José de Arimateia – o Enterro de Jesus – é justamente o momento da história pascal que mais apela à sua participação. Se eu tenho dúvidas que Jesus tenha sido filho de Deus, se eu tenho dúvidas de que exista Deus, claramente não me faz sentido a “forte união ao sacrifício de Cristo na cruz” (que, já agora, um padre católico me recomendou em tempos como “cura” para a homossexualidade). Muito menos me fará sentido a ressurreição. Enterrar Jesus é outra coisa. É um gesto de desvelo, de homenagem a este homem que poderá (ou não) ter caminhado sobre a água, que terá conseguido (ou não) restituir a visão aos cegos e que terá feito (ou não) a multiplicação de pães. Foi um homem que morreu traído por um amigo e renegado por outro; foi um homem que teve a coragem de criticar fariseus, de escorraçar vendilhões e que afirmou “em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no Reino do Céu” (Mateus 19: 23). Pregou o amor ao próximo, chamou “filhos de Deus” aos que promovem a paz e prometeu o “Reino do Céu” aos que sofrem perseguição por causa da justiça.
Dar, como José de Arimateia, enterro condigno a este homem é – independentemente da religião que se formou em seu nome – homenagear o melhor que existe na natureza humana. Ao mesmo tempo, é voltar ao minuto zero, ao pré-Cristianismo, antes de Jesus ter (ou não) ressuscitado dos mortos: é voltarmos atrás na História, ao último momento em que nos podemos concentrar apenas nele – na sua vida e na sua morte. Antes da sua ressurreição. Antes de outros se terem interposto entre ele e nós e antes da fixação da igreja na figura mediadora de Maria. Pois este momento da deposição no túmulo permite-nos esquecer tanto São Paulo como todos os protagonistas vindouros das lutas assassinas entre seitas cristãs; permite-nos esquecer Constantino, Justiniano, os Reis Católicos, Luís XIV, D. João V, Pinochet e todos os outros autócratas e plutócratas a quem a acomodatícia igreja de Cristo sancionou o devaneio de que professavam uma religião inspirada na vida de Jesus; permite-nos esquecer papas e inquisidores, católicos e luteranos, ortodoxos e calvinistas. Permite-nos esquecer dogmas e concílios, teólogos e missionários, conversões forçadas e autos-de-fé, Fátima e outras árvores-das-patacas similares.
Estarmos, uma vez por ano, ao lado de José de Arimateia a enterrar Jesus (e a sentir o luto intenso pela sua morte tão injusta) é homenagearmos a vida dele. E homenagearmos a vida de Jesus é o primeiro passo na percepção de que, em última análise, somos nós que podemos (por meio da forma como vivemos a nossa própria vida) assegurar que a vida admirável deste admirável defunto não tenha sido vivida em vão.



(“Deposição de Cristo” por Adriaen van der Werff)


Domingo de Páscoa

A ressurreição deverá ser entendida enquanto algo de quase imaterial, como a imaginou o pintor italiano Fra Angelico? Ou como uma realidade imanente e formidável, como num célebre quadro de Piero della Francesca? Já agora: não poderá ser entendida de mais nenhuma maneira?
Que logo nos alvores do Cristianismo a ideia da ressurreição levantou dúvidas aos próprios cristãos é-nos documentado por uma passagem de São Paulo, quando pergunta aos cristãos de Corinto “como é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos mortos?” (1 Coríntios 15: 12). São Paulo prossegue “argumentando” (sempre daquela forma circular e tautológica que lhe é própria) a favor da ressurreição de Cristo e da consequente ressurreição daqueles que “morreram em Cristo”. Não existindo a ressurreição dos mortos (diz o apóstolo), os cristãos seriam os mais miseráveis de todos os homens (15: 19). Numa nota involuntariamente espirituosa a este passo, o comentador da Bíblia dos Capuchinhos explica que, se não houvesse ressurreição, os cristãos seriam de facto “os mais miseráveis de todos os homens, porque, tendo renunciado às alegrias deste mundo, não teríamos assegurado as eternas”.
A noção de que professar a fé cristã implica renunciar às alegrias deste mundo em prol das que virão post mortem é, compreensivelmente, uma das muitas razões que fundamentam a não-crença dos não-crentes. E se não há vida depois da morte? E se o destino ulterior de São Francisco de Assis e de Adolf Hitler foi precisamente o mesmo: terminaram em definitivo a sua vida no momento em que morreram, sem recompensa no paraíso para Francisco e sem castigo no inferno para Hitler? O facto de uma vida dedicada ao Bem (como foi a de Francisco) não ter recompensa depois da morte torna indiferente que se opte então por uma vida dedicada ao Mal? O facto de uma vida dedicada ao Bem não ter recompensa depois da morte invalida o testemunho da vida de Jesus? Eu acho que não. Mesmo que a vida na Terra não seja a etapa preliminar para uma nova vida no Céu, mesmo assim faz pleno sentido o cerne da mensagem de Jesus: “que vos ameis uns aos outros” (João 15: 12).
No entanto, São Paulo afirma que a mensagem do Cristianismo (o κήρυγμα, o “anúncio”, na expressão por ele utilizada) é oca se Cristo não ressuscitou. Diz ainda que, não tendo Cristo ressuscitado, também a fé é vazia (1 Coríntios 15: 14). Será assim? Ou não será o κήρυγμα constituído pela vida de Jesus um valor em si mesmo, independentemente do problema de acreditarmos ou não na ressurreição? 
Por outro lado: quem sabe? Quem sabe se mesmo um não-crente não pode aceitar a ideia de que constitui ressurreição suficiente o facto de, neste mundo onde Jesus morreu, se poder afirmar em grande medida que, bem vistas as coisas, Jesus afinal não morreu. Se ele ressuscitou (ou não) não sei; mas que aqui, no mundo em que morreu, ele venceu a morte, disso tenho a certeza: porque tanto crentes como não-crentes andaremos às voltas com Jesus nas nossas cabeças enquanto houver seres humanas na Terra. Eis, pois, a extraordinária premonição do presente contínuo que encontramos nas palavras de Jesus: ἐγὼ ζῶ (“eu vivo”, João 14: 19).


   SUGESTÃO DE LEITURA:

à Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/16/sombra.aspx] 

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