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Miguel Yeco, O Teatro Íntimo do Ser, 1896 |
Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças.
Bernardo Soares
“O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual […]”
Fernando Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro
Lisboa, 13 de Janeiro de 1935
Ora, se Pessoa pouco nos diz desta sua "personalidade literária", dele ficamos a conhecer, pela leitura do Livro, a condição de ajudante de guarda-livros, vivendo e trabalhando na Baixa lisboeta, contactando com o universo cinzento da paisagem que o rodeia, a citadina e a humana, a dos cafés que frequenta, a do escritório da Rua dos Douradores, com o patrão Vasques, o Moreira ou o moço de fretes.Vivia num quarto alugado e conversava sobre literatura com Fernando Pessoa, tendo mostrado apreço pela revista Orpheu. Ter-lhe-ia confessado mesmo que, “não tendo para onde ir, nem amigos que visitasse, soia gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também”. Da sua escrita resultaram os fragmentos do que viria a ser oLivro do Desassossego.
Jorge de Sena, um dos primeiros a estudar o Livro do Desassossego, afirma que Soares representaria um heterónimo mais próximo de Pessoa do que os outros, por “assumir a meditação dispersa e fragmentária de uma sociedade de heterónimos na disponibilidade. O livro dele era uma espécie de refugo de tudo o que não chegava a ser de ninguém dos outros; e uma espécie de depósito da fragmentária tristeza de Pessoa, que, até certo ponto, para que ele existisse, sofria a suspensão existencial deles.” E acrescenta: “Se nem todos os trechos são de igual valor, alguns serão da mais bela prosa da língua portuguesa. Neles perpassam os temas, às vezes mesmo fantasmas de estrutura, dos poemas de todos os heterónimos e ortónimos. Tudo o que a poesia plenamente realizada, ou a diversificada prosa, deles todos foi - está presente nestes fragmentos feitos da análise espectral das vivências que pululavam dentro do homem Fernando Pessoa, acotovelando-se e atropelando-se para serem, ou, pouco a pouco, desvanecendo-se nas trevas inferiores, como espíritos que se cansam de comparecer à mesa de pé de galo a que os convocaram demasiadamente. O racionalismo transcendental de Fernando Pessoa; o misticismo irónico e frio de outro Fernando Pessoa; a meditação existencial de Álvaro de Campos; o empiriocriticismo de Alberto Caeiro; a consciência cansadamente hedonística da fugacidade de tudo, que era de Ricardo Reis; o neo-positivismo espiritualista do autor dos 35 Sonnets; a lascívia reprimida do autor de Antinous; o anarquismo paradoxal do Banqueiro , etc., etc.- e, sob tudo isto, como uma maldição, de que todos são filhos, como um pecado original a que todos devem o ser, a terrível incapacidade de amar, a medonha demonstração de que o homem existe pelos seus actos e não é outro senão eles, e que não existe, senão como ficção, quando, em lugar de aceitar ir sendo, escolhe fixar-se na pedagogia monstruosa de ser por conta alheia, de perder-se na floresta do alheamento.”
INTERTEXTUALIDADE COM OS OUTRO(S) PESSOA(S)
- O MESMO E O OUTRO
Ao lermos o Livro do Desassossego somos sensíveis à presença no Eu/escrita de Soares os outros Pessoas já nossos conhecidos.
Por exemplo, Fernando Pessoa ortónimo:
“Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.”[f.154] - cf.este poema com, por ex.:”Entre o sono e o sonho”
“E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.” - cf. com "Há no firmamento”
“Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?” [f.21]
“[...] E num delírio intersticiado de certezas, leve, breve, suave, o murmúrio das águas de todos os parques nasce, emoção, do fundo da minha consciência de mim.” [f.98] - cf. com “Leve, breve, suave”
Ou Ricardo Reis:
“Nada pesa tanto como o afecto alheio - nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afecto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprimem; ambos nos buscam e procuram, não nos deixam sós” [f.382]- cf. com “Não só quem nos odeia ou nos inveja”.
“Nunca amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma é a nós mesmos - que amamos” [f.416] - cf. com “Ninguém a outro ama, senão que ama”.
“O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente” [f.418] - cf. com “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo” e com “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”.
...Alberto Caeiro:
“Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável [?] o sol que vê todos, a lua que a malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.” [f.16] - cf. com qualquer poema de “O Guardador de Rebanhos”.
“Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade - a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma - pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.” [f.67] - idem, especialmente com o poema II.
“Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo - contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independente de se lhe chamar varina, e de se saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente como revelação do Mistério, mas directamente como floração da Realidade.” [f.87] - idem, especialmente com poema XXIV.
...Álvaro de Campos:
“Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e táctica, naturalizar-se diferente e com todos os documentos; em suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que de aqui estou vendo com as latas pequenas de graxa da nova marca”. [f.30] - cf. com “A melhor maneira de viajar é sentir” e “Passagem das Horas”
“Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamento a história inútil de uma firma obscura; e, ao mesmo tempo, o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há.” [f.118] - cf. com “Ode Marítima”
“Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos dispersos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! [...] Quantos Césares fui, mas não dos reais. [...] Quantos Césares fui, aqui mesmo na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação[...] Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto.” [...] - [f. 132] - cf. com “Tabacaria” e “Pecado original” - versos 16, 21 a 23: "Quantos Césares fui!"
“Estou hoje lúcido como se não existisse.” [f. 416] - cf. com “Tabacaria”.
“Doem-me a cabeça e o universo.” [f.430] - cf. com “Tenho uma grande constipação” - último verso: "Preciso de verdade e de uma aspirina."
De certo modo, Soares vem-se-nos revelar como alguém que está por detrás de todos os outros Pessoa(s), que existe com todos e em todos, como todos existem em si- o que, necessariamente, vem colocar a questão da heteronímia em moldes diferentes, vem dizer-nos que somos todos o mesmo e o outro - nesse sentido poderão entender-se as palavras, atrás referidas, de Eduardo Lourenço sobre o Livro do Desassossego como texto-rasura e como textosuicida, texto do ser/não ser que permanentemente se descobre como impossibilidade.
ALGUNS DOS TEMAS ABORDADOS NO LIVRO DO DESASSOSSEGO:
Amor
Arte literária
Consciência/Inconsciência
Decadência
Eu vário e múltiplo
Indiferença/abdicação
Inércia/acção
Leituras
Língua-linguagem
Lisboa - cidade; Lisboa - ciclos do dia; Figuras da cidade; Quotidiano da cidade;
Morte
Noite
O Eu de Bernardo Soares
Paisagem
Passado-infância
Relação Eu/outros
Sensacionismo
Sensações
Ser e (des)conhecer-se
Sonho /realidade
Tédio
Trovoadas
Viagem-viagens
Viagens
AMÉLIA PINTO PAIS
in Para Compreender Fernando Pessoa, Porto, Areal Editores, 1996
LIVRO DO DESASSOSSEGO - temas e motivos poéticos:
O imaginário urbano.
O quotidiano.
Deambulação e sonho: o observador acidental.
Perceção e transfiguração poética do real.
Linguagem, estilo e estrutura: a natureza fragmentária da obra.
a presença de Bernardo Soares
nos escritores contemporâneos:
BOA NOITE, SENHOR SOARES
Declarariam depois que o senhor Soares se não distinguia de qualquer outro sujeito, mas a verdade é que ele dera sempre mostras de ser um bocadinho esquisito. Espiávamo-lo no seu posto com uma ruga na testa, a tentar traduzir nas cartas que redigia aquelas designações antigas, e aqueles números que era indispensável reduzir a jardas, a polegadas e pés. Nos dias em que se achava menos aborrecido o senhor Soares gostava de falar com os rapazes sobre certos tecidos que eram a seda, originária de Samarcanda, ou os brocados, provenientes de Isphaham, e ficava, muito pensativo, a fumar os seus cigarros de onça que lhe crestavam os dedos. Ele olhava para nós com toda a atenção, fixando a vista no senhor Moreira, no senhor Borges, nos caixeiros, no moço, e até mesmo no gato Aladino, com uma espécie de ternura que nos assustava, e acendia outro cigarro, e voltava à sua escrita. Não faltava quem lhe fizesse notar que como tradutor andava a ser explorado, pagando-lhe o patrão Vasques muito menos do que aquilo que ele se recusava a que me trocassem por um novo, e mergulhava nele a pena com o maior dos vagares enquanto ia pensando em coisas que não deveriam ser deste Mundo. Perto do sítio onde o senhor Soares trabalhava, e por cima do lugar onde costumava sentar-se o Alves, um maluquinho que tivera alta do Miguel Bombarda, e a quem por esmola consentíamos que nos dobrasse as folhas de papel pardo, e enrolasse os retroses das encomendas que recebíamos, estava um calendário de 1931 que ninguém quisera tirar da parede. O senhor Soares punha-se a fitá-lo com grande concentração, e acabava por sorrir para aquela gravura da rapariga de lábios vermelhos, de fita rosa nos negros cabelos, de blusa de decote aberto, e a abraçar um molho de papoulas. Surpreendíamo-lo noutras ocasiões, a examinar com minúcia o mata-borrão, e percebíamos que o senhor Soares se sentia fascinado pelos rabiscos que tinham sido mal absorvidos, todos negros porque ele só usava tinta dessa cor, e salpicados de borrões que se assemelhavam a ilhas no meio do nevoeiro. Cheio de curiosidade, atrevi-me a ir verificar uma vez o que lá se encontrava estampado, e descobri a assinatura dele, do senhor Soares, às avessas, e ao invés, mas fui-me logo embora com a ideia de que tinha cometido urna indiscrição que não se desculpava. A minha maior surpresa aconteceu porém numa tarde em que estávamos apenas os dois no escritório, e o senhor Soares saiu sem uma palavra, deixando-me sobre a secretária um barquinho de almaço pautado, e com este nome no casco, desenhado a lápis, António. Nunca o meu pai construíra para mim fosse o que fosse que a isso se comparasse, e eu guardei o barquinho durante longo tempo na gaveta onde tinha o fio de oiro que me oferecera a minha mãe, e o terço branco da comunhão solene. Mas havia momentos mais raros em que o senhor Soares nos causava bastante sobressalto, atirando de repente com a caneta para a secretária, e divertindo-se a vê-la rolar pelo declive do tampo. Foi isso o que sucedeu na manhã em que descortinou na borda do tinteiro uma mosca-varejeira nojenta, e em tons de verde e azul-escuro. O senhor Soares levantou-se do banco, e dirigiu-se à porta das escadas sem se virar para o espelho como se o espelho pudesse assassiná-lo. Tirou o chapéu do cabide, e nem sequer se despedindo como era seu hábito, fui eu quem disse muito em surdina, «Boa noite, senhor Soares.»
Mário Cláudio,
in Boa Noite, Senhor Soares, Publ. Dom Quixote, 2008
O MODO FUNCIONÁRIO DE VIVER
(à memória de Bernardo Soares)
O mundo dos pequenos funcionários
lembra-nos no fervor o patrão Vasques
e traz aos nossos actos mais diários
a poesia do mundo sem disfarces.
Quando longe do jogo das intrigas
(deram aos nossos dias emoção),
lembramos em agendas mais antigas
o que ficou aquém da ilusão.
Este mundo é perfeito como um ovo
de si suficiente e não merece
poder ser corrompido pelo novo.
Aqui em bom rigor nada acontece.
E vemos flutuar à nossa volta
um rumor sem um eco de revolta.
Luís Filipe de Castro Mendes,
in O Jogo de Fazer Versos, Quetzal Ed., 1994
NATUREZA MORTA COM BERNARDO SOARES
Esta mesa de mármore
mó absorvente onde
as folhas espadanam,
põe-me na rota dessoutro
bojo calipígio onde o poeta
ele-mesmo copiava a escrita.
Vagueia a paisagem, irradiando-me;
embaciado sol me localiza,
sou eu, é minha a mesa,
meu o sossego, e mói.
Sobre o ringue sem patinadores,
cisterna seca à minha frente,
poluídas tílias em flor.
Ousarei invocar outro terreiro,
o sol-a-sol do só, a poluída vida,
os duplicados que o poeta fez?
Plagiadas arcadas:
e o meu olhar margina
as águas, pródigas águas
que redemoinham após a seca.
Luiza Neto Jorge,
in A Lume, Assírio & Alvim, 1989
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/12/31/soares.aspx]