quinta-feira, 17 de novembro de 2011

REVOLTA DOS INDIGNADOS

Manifestação Nacional dos Professores, Lisboa, 11-02-2023

                                    
QUE FORÇA É ESSA
            
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
construir as cidades pr'ós outros
carregar pedras, desperdiçar
muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro

Que força é essa 
[bis]

que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo 
[bis]
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo 
[bis 3]

Não me digas que não me compr'endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr'endes

(Que força...)

(Vi-te a trabalhar...)

Que força é essa 
[bis]
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo 
[bis]
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo 
[bis 10]
     
In Sobreviventes; 1971
           
        

           
            
                                  
AGITAÇÃO POLÍTICA
            
[…] Ao consciencializar as pessoas acerca de, por exemplo, crimes cometidos pela PIDE, uma canção agita igualmente os ouvintes no sentido de entrar em ação contra a PIDE. Por isso também é impossível dissociar canções que só consciencializam de canções que só agitam. Todavia, na obra de ambos os cantores [Zeca Afonso e Sérgio Godinho] encontramos exemplos que são claramente usados para agitar as pessoas. São versos em que o cantor ameaça e critica o regime, esperando que os ouvintes sigam o seu exemplo. “Cantar Alentejano” trata do assassínio de Catarina Eufémia. Na quarta estrofe desta canção lê-se: “Acalma o furor campina / Que o teu pranto não findou / Quem viu morrer Catarina / Não perdoa a quem matou”. O último verso faz alusões à vingança, dizendo que não se pode perdoar os assassinos.
            Sentimentos de vingança encontram-se também em duas canções que tratam das vítimas da PIDE. Nas primeiras duas estrofes de “Coro da Primavera”: “Cobre-te canalha / Na mortalha / Hoje o rei vai nu // Os velhos tiranos / De há mil anos / Morrem como tu”, o cantor ameaça os líderes do regime, a quem chama “canalha”, dizendo-lhes que têm de se cobrir “na mortalha”. Por outras palavras, o que fazem é já em si um suicídio, porque a mortalha é uma cobertura que envolve o cadáver a ser sepultado. Em “A morte saiu à rua” o cantor também ameaça os assassinos, fazendo uma referência à expressão bíblica “Olho por olho e dente por dente”, o que significa que cada crime deverá ser vingado da mesma maneira.
            No entanto, os cantores usam também outras maneiras menos diretas para agitar os ouvintes, como através da crítica, sugerindo que são passivos. Assim, a canção funciona como um espelho que reflete a passividade do ouvinte, com o objetivo de o levar a consciencializar-se da sua passividade e a tomar iniciativa contra ela. Encontramos um bom exemplo na canção “Eu vou ser como a toupeira1. Nesta canção o cantor faz uma comparação com animais, através da qual mostra que é preciso uma atitude mais ativa para mudar algo. Na primeira estrofe diz que o próprio gostava de ser como a toupeira e a jiboia2. Uma jiboia é por excelência um animal que ataca, estrangulando e engolindo a sua presa. À primeira vista, uma toupeira não parece ser um animal ataque outros animais, no entanto no Dicionário da Língua Portuguesa encontra-se também o seguinte significado: “pessoa que conspira às ocultas para subverter as instituições”3. Oposta à toupeira e à jiboia está a hidra, que aceita silenciosamente a sua situação4. A hidra, que depende de água para sobreviver, diz que é preciso pensar nos próprios pecados quando a água falta, em vez de procurar a culpa noutras pessoas. Por outras palavras, na canção a hidra é a imagem de alguém que aceita silenciosamente a sua situação de oprimido, tal como “as pessoas sentadas à espera” na canção “Que bom que é”, de Sérgio Godinho. No entanto, o cantor conta na última estrofe que prefere viver uma vida miserável, mas livre, a ser como a hidra, que é passiva e dependente de quem lhe é superior5.
            Sérgio Godinho usou também o método de criticar o ouvinte passivo. Na canção “Que força é essa6, o cantor abre com uma observação de alguém que trabalha muito6. A seguir ele pergunta ao trabalhador donde lhe vem a força para trabalhar quando são outros que se aproveitam dos lucros8. Então, depois de ter explicado a situação miserável do trabalhador, começa a tentar agitá-lo na última estrofe9, apelando à raiva que ele deve sentir por trabalhar sem aproveitar. Algo de semelhante encontramos na canção: “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos10. Nesta canção ouvimos uma mãe contar a história dos seus filhos, que partiram em direções opostas11. Sabemos nesta estrofe que os seus filhos foram em direções opostas e que são ao mesmo tempo ricos e pobres. O cantor serve-se aqui dum jogo de palavras em que o adjetivo “rico” no verso “Ai o meu rico filho que pobre que é” deve ser interpretada como “querido”. A riqueza do segundo filho tem a ver com dinheiro real, mas a mãe caracteriza-o como pobre, no sentido em que ele comete um erro muito grave, isto é, a exploração do irmão. Mais adiante a mãe explica melhor a situação12. Como na canção anterior, o cantor conta uma história de injustiça com a intenção de agitar os ouvintes, apelando à vingança13: a mãe, fisicamente incapaz (“Sei que estou velha e doente”) de lutar contra a situação de exploração é, nesta estrofe, exemplo e incentiva para o povo oprimido lutar e vingar-se da injustiça, apesar das dificuldades14.
          
                  
               


Afonso, J., “Eu vou ser como a toupeira”, Eu vou ser como a toupeira, Orfeu STAT 012, 1972.
“Eu vou ser como a toupeira / Que esburaca / ...  / Eu vou ser como a jiboia / Que atormenta”
Engelmayer, E., op. cit. pág.: 78.
“Penitência, diz a hidra / Quando há seca”
“Quero-me à minha vontade / Não à tua / Ó hidra, diz-me a verdade / Nua e crua / Mais vale dar numa sarjeta / Que na mão / De quem nos inveja a vida / E tira o pão”
6 Godinho, S., “Que força é essa”, Os sobreviventes, 1971.
“Vi-te a trabalhar o dia inteiro / Construir as cidades pr´ós outros / Carregar pedras, desperdiçar / Muita força pra pouco dinheiro / Vi-te a trabalhar o dia inteiro / Muita força pra pouco dinheiro”
8 “Que força é essa / Que força é essa / Que trazes nos braços / Que só te serve para obedecer / Que só te manda obedecer / Que força é essa, amigo / Que força é essa, amigo / Que te põe de bem com outros / E de mal contigo”
“Não me digas que não me compreendes / Quando os dias se tornam azedos / Não me digas que nunca sentiste / Uma força a crescer-te nos dedos / E uma raiva a nascer-te nos dentes”
10 Godinho, S., “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos”, Os sobreviventes, 1971.
11 “Ai o meu pobre filho, que rico que é / Ai o meu rico filho, que pobre que é / Nascidos do mesmo ventre / Um vive de joelhos pr´ó outro passar à frente / E esta velha mãe pr´áqui já no sol poente”
12 “Um voltou-se pra trás, disse adeus que me vou embora / Voltaremos trazendo connosco a vitória // De que vitória falas, disse eu então / Da que faz um escravo do teu irmão?” e: “Depois vieram novas que o que vivia / da miséria do outro, se enriquecia”
13 “Às vezes rogo pragas de os ver assim / Sinto assim uma faca dentro de mim / Sei que estou velha e doente / Mas para ver o mundo girar dum modo diferente / ´Inda sei gritar, e arreganhar o dente // Estou quase a ir embora, mas deixo aqui / Duas palavras pra um filho que perdi / Não quero dar-te conselhos / Mas s´é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos / Doa a quem doer, faz o que tens a fazer”
14 “Não quero dar-te conselhos / Mas s´é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos / Doa a quem doer, faz o que tens a fazer”
               

              
Sinto uma força a crescer-me nos dedos e uma raiva a nascer-me nos dentes, como diria o Sérgio Godinho
           
Nicolau Santos, www.expresso, 2011-10-17
               
             
              
       
             


OS INDIGNADOS DO INÍCIO DO SÉCULO XXI
          
Agora, no início do século XXI, a população, mais ou menos esclarecida, sentindo no seu bolso as mãos do Estado e da banca, tem-se manifestado contra os abusos de poder. Embora a sociedade civil esteja alerta contra este tipo de barbárie, acontece que, até à data, de pouco ou nada tem servido a revelação da podridão e corrupção que grassa por entre os altos cargos da nação. De que tem servido, então, o apontar o dedo a benefícios estatutários que os próprios interessados fabricam e aprovam entre si? Como podem as massas vampirizadas pôr freio a estes “bárbaros reais” se os instrumentos democráticos utilizados não têm surtido efeito?
              

              
     


 
                    
              
Cartaz “AS FORMIGAS NO CARREIRO ACORDARAM!”
Manifestação de professores no Rossio, Lisboa, 2013-01-26.
      
            
            
Pode também gostar de ler:
          
“Mas cuidado, mylady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
           
E um dia, ó flor de Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!”
             
in "Deslumbramentos",  Cesário Verde
                  
          
“Lisboa, no princípio de 1908, era uma cidade agitada, onde os boatos se multiplicavam e as incertezas cresciam. O povo passava fome, andava no ar uma grande tensão. Vários são os escritores que se manifestam contra a Monarquia. Entre outros, há a salientar Guerra Junqueiro, Gomes Leal, panfletário, Aquilino Ribeiro, que teve de se evadir, e Cesário Verde, que, além de expressar o seu «Sentimento de um Ocidental», pinta em verso, por palavras e sinais, o fim da Monarquia: «Que hão-de acabar os bárbaros reais; /E os povos humilhados, pela noite,/Para a vingança aguçam os punhais.»”  (Margarida Mouta, “A literatura na I República”, in República – Liberdade em ação)
           
              
Os camponeses (e demais povo), em épocas recuadas, viviam com medo de serem saqueados ou escravizados por bárbaros reais. Assim foi, grosso modo, a ascensão da nobreza pela barbárie. Assim tem acontecido, protestam os indignados, a subida ao poder, ao longo dos tempos, através da força, da trapaça, da vileza e do engano.

              

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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/17/INDIGNADOS.aspx]

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