Foram matar mouros nossos lidadores
Com cantares de amigo chamamos as barcas
Que à lide levaram os nossos amores.
Vão e vêm as ondas. Pelas mesmas águas
Discorrem idades. Não mudam as dores.
Com velhos cantares que por estas matas
Fizemos quando eles inda eram pastores,
Chamemos as naus, pois que ora são nautas
Que à Índia levaram os nossos amores.
Mudadas em naus as lenhas das matas
Mudaram o mundo. Não mudam as dores.
Neste cais de prantos de onde eles em armas
Foram matar pretos pelos seus senhores
Com cantares chamemos as frotas iradas
Que à guerra levaram os nossos amores.
Vêm os soldados e foram-se as Áfricas,
São outras as guerras. Não mudam as dores.
Com cantares que cheguem às nuvens mais altas
De onde lançam bombas os aviadores
Chamemos as barcas que ganhando asas
Pró inferno levam os nossos amores.
Mudaram-se as armas que em ímpias fornalhas
Mudam as cidades. Não mudam as dores.
Pelo mar que também quis,
Pela linha da poesia
Sou neta de D. Dinis.
Aquilo que nunca fiz
É a minha bastardia.
in Natália Correia 10 anos depois, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003
Com
relação a “Nesta praia, amigas, de onde p’rás cruzadas”, justamente o
primeiro da série das Cantigas de amigo, convém que o analisemos
minuciosamente, dado que exerce uma função equiparada ao do prelúdio musical.
O
poema acima nos apresenta o gênero longínquo recriado: a cantiga de amigo. Na
primeira estrofe, encontramos uma voz poética feminina que se dirige às
“amigas”, solidárias na idêntica situação aflitiva: a ausência “dos lidadores”,
dos seus “amores” que partiram da “praia” lusitana rumo à “lide” contra os
“mouros” por conta das “cruzadas” – ocorridas entre os séculos XI e XIII. Este
dado nos remete aos primórdios da história do reino de Portugal, lembrando-nos
das investidas militares portuguesas – sublinhemos, com o auxílio dos cruzados
que se dirigiam à Terra Santa – contra os mouros que dominavam a Península
Ibérica havia séculos, contribuindo assim para a retomada gradativa dos
territórios perdidos – eis aqui o movimento ibérico cristão de expulsão dos muçulmanos
conhecido como Reconquista. Como percebemos, a estrofe inicial do poema evoca o
imaginário das cruzadas a fim de conectá-lo aos acontecimentos históricos
concernentes ao surgimento de Portugal. Note-se também que a guerra se encontra
presente.
Não
só a guerra, mas o cenário marítimo se manifesta nas três das quatro estrofes
da cantiga, remetendo-nos às barcarolas ou marinhas. Averiguemos
algumas de suas características:
[...]
são cantigas de criação nacional, sem correspondentes nas outras literaturas. O
galego e o português, criados à beira-mar, não admira que os atrativos da vida
marítima participassem do seu temário poético; daí o encanto com que muitas
vezes as sugestões do mar invadem os estados de alma da donzela saudosa, que
vai admirar o movimento calmo das ondas, conversar com elas, pedir-lhes
notícias do amado, ou ainda esperar por elas as barcas em que partiu o amigo em
alguma expedição guerreira [...] a partida do amigo nem sempre era por via
terrestre. (SPINA, 1972, p. 386-387)
Encontramos
justamente uma voz feminina que incita as amigas a chamarem as “barcas” que
levaram os seus respetivos amores para a guerra contra os mouros, para um
contexto demarcado pela violência. Reparemos na presença de estruturas
reiteradas ao longo do poema de Natália Correia, o que remonta ao paralelismo
recorrente nas cantigas de amigo dos cancioneiros. Destaquemos o refrão “Não
mudam as dores”, estrutura que encerra as quatro estrofes do poema, ecoando na
forma de sentença o ceticismo da voz feminina quanto aos caminhos adotados pela
humanidade, já que “Discorrem idades./ Não mudam as dores”.
Na
estrofe seguinte, insiste-se nos cantares de amigo. Com eles, os amores
ausentes são chamados de volta, e agora não são mais as barcas, mas as “naus”
que os levaram ao mar. Deste modo, salta-se do contexto histórico das cruzadas
para o das grandes navegações em direção às Índias, transita-se aproximadamente
do século XII ou XIII para o final do XV. Há uma justaposição temporal
promovida no dístico “Mudaram em naus as lenhas das matas/ Mudaram o mundo. Não
mudam as dores” que, por seu turno, remata esta segunda estrofe, já que as
“lenhas das matas” que serviram à construção das “naus” que conduziram os
portugueses às Índias foram supostamente cultivadas durante o reinado de D.
Dinis (1261-1325), o rei trovador-lavrador. Com isso, o tempo histórico em que
floresceram as cantigas medievais fornece a matéria-prima para a fabricação das
embarcações que “mudaram o mundo”. Frise-se, no entanto, que “não mudam as
dores”.
Quando
lemos a terceira estrofe, encontramos mais um grande salto temporal: das
grandes navegações às guerras coloniais (1961-1974) na África. Na ocasião em
que era governado pelo ditador Salazar, Portugal mantinha Angola, Moçambique e
Guiné-Bissau como colônias ultramarinas, explorando-as. Para que estas regiões
africanas alcançassem sua independência política foi necessário o uso da luta
armada contra os portugueses. Em decorrência disso, surgem os versos “Neste
cais de prantos de onde eles em armas/ Foram matar pretos pelos seus senhores/
Com cantares chamemos as frotas iradas/ Que à guerra levaram os nossos amores”.
A estrofe menciona termos como “armas”, “matar pretos”, “frotas iradas”,
“guerra”, “soldados” e “Áfricas” para que a referência a estas guerras
coloniais travadas entre portugueses e africanos fique mais do que explicitada.
Mas se, por um lado, “são outras as guerras”, por outro, “não mudam as dores”,
ou seja, o sofrimento humano permanece o mesmo quando comparado ao de séculos
anteriores.
Na
quarta e última estrofe, deparamo-nos novamente com a esperança de que os
“cantares” tragam de volta os amores ausentes. Mas o canto dirigido ao mar
desloca-se agora em direção às “nuvens mais altas”, local onde se encontram “as
barcas que ganhando asas/ prò inferno levam” os amores. Do mar para o ar, visto
que as barcas, naus e frotas foram substituídas pelos aviões. Estes lançam
“bombas” sobre a terra que “em ímpias fornalhas/ mudam as cidades”.
Incineram-nas com explosivos de última geração, destroem-nas.
Esta
última estrofe lembra-nos do ataque aéreo sofrido pela cidade basca de Guernica
em abril de 1937, durante a Guerra Civil Espanhola. Horror retratado e
imortalizado na tela de Pablo Picasso. Além de Guernica, estendamos a imagem
dos aviões que bombardeiam cidades para o cenário das duas grandes guerras.
Nestas, bombas de aviões arruinaram cidades, culminando no abominável uso de
bombas atômicas contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Levando-se em conta
este terrível panorama da história da humanidade, a cantiga de Natália Correia,
ao menos esta, conclui que “não mudam as dores”.
Na
cantiga como um todo, existe um movimento gradativo de tensão demarcado pelo
léxico das embarcações: primeiro, temos as barcas, depois as naus, mais adiante
as frotas iradas e, por fim, as barcas que ganharam asas (os aviões). Com
variados matizes, a guerra se presentifica em cada uma das estrofes, dado que o
filme que se projeta na tela é sempre o mesmo: o da história da subjugação de
homens, de culturas. Critica-se a tecnologia a serviço da violência, da guerra
entre os homens. De acordo com o poema, a evolução tecnológica potencializou a
barbárie que existe entre os povos desde o período de florescimento das
cantigas galego-portuguesas: tempos em que os portugueses já saíam para matar
mouros.
E
podemos nos indagar: se as guerras são constantemente recriadas e nunca são
consideradas anacrônicas, por que as cantigas de amigo não poderiam ser também
reinventadas no contexto do século XX? Sendo assim, justifica-se o título da
primeira parte referente às cantigas de Natália: Queixam-se as novas amigas
em velhos cantares de amigo. Ou seja, um gênero antigo – os “velhos
cantares” de amigo –, agora reatualizado no intuito de comportar as “queixas”
das “novas amigas” que vivenciam impasses históricos contemporâneos.
É
visível nesta cantiga de abertura mais do que uma mera queixa, mas a
constatação de uma denúncia contra a história da dominação de um homem por
outrem. Quando os “amores” destas “amigas” se encontram ausentes, eles comungam
com a opressão, com a supressão da alteridade e, de resto, acabam ironicamente
vitimados e, por isso, os versos da cantiga conclamam: “chamemos as barcas que
ganhando asas/ prò inferno levam nossos amores”. São as barcas aladas
pró-inferno que afastam os amores de suas respectivas amigas, mas estas possuem
a esperança persistente de que o canto possa reverter esta situação: a guerra
cinde, dolorosamente, e o canto – como veremos, alegremente – convida ao
encontro amoroso.
“Os cantares de amigo de Natália Correia: das queixas contra o
Estado Novo ao êxtase do encontro com a Revolução dos Cravos”, Tatiana
Picosque. In: Convergência
Lusíada, v. 25 n. 31, 2014. Dossiê: Poesia Portuguesa dos Anos
40 à
Contemporaneidade.
Poderá também gostar de:
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para
análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia
– plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível
em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).
- Bailias de abril - lirismo e política na reescrita dos
cantares de amigo de Natália Correia, Anália Gomes, João Pessoa, UFPB/CCHLA,
2019
- “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
- Cantigas medievais galego-portuguesas – projeto Littera: a presente base de dados disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais)
“Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html
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