sexta-feira, 6 de setembro de 2013

NESTA PRAIA, AMIGAS, DE ONDE P’RÁS CRUZADAS (Natália Correia)


XVIII - DIGADES, FILHA, MHA FILHA VELIDA - Pero Meogo, Antonio García Patiño

                  
                 
CANTIGAS DE AMIGO

QUEIXAM-SE AS NOVAS AMIGAS EM VELHOS CANTARES DE AMIGO

I
               
Nesta praia, amigas, de onde p’rás cruzadas
Foram matar mouros nossos lidadores
Com cantares de amigo chamamos as barcas
Que à lide levaram os nossos amores.
          Vão e vêm as ondas. Pelas mesmas águas
          Discorrem idades. Não mudam as dores.

Com velhos cantares que por estas matas
Fizemos quando eles inda eram pastores,
Chamemos as naus, pois que ora são nautas
Que à Índia levaram os nossos amores.
          Mudadas em naus as lenhas das matas
          Mudaram o mundo. Não mudam as dores.

Neste cais de prantos de onde eles em armas
Foram matar pretos pelos seus senhores
Com cantares chamemos as frotas iradas
Que à guerra levaram os nossos amores.
          Vêm os soldados e foram-se as Áfricas,
          São outras as guerras. Não mudam as dores.

Com cantares que cheguem às nuvens mais altas
De onde lançam bombas os aviadores
Chamemos as barcas que ganhando asas
Pró inferno levam os nossos amores.
          Mudaram-se as armas que em ímpias fornalhas
          Mudam as cidades. Não mudam as dores.
               
Natália Correia, “Inéditos posteriores a 1990” in O sol nas noites e o luar nos dias II, s/l, Círculo de Leitores, 1993
               
               
O gosto da matriz medieval não é, em Natália Correia, um despertar recente. A semelhança de outros poetas do século XX (como, por exemplo, Eugénio de Andrade, Manuel Alegre ou Reinaldo Ferreira), o ritmo da cantiga de amigo e a obsidiante e irremediável sugestão de ausência que ela detém mantiveram-se em latente espera na sua fala poética, como uma sombra e como um desejo, como sinal de uma relação poética subjacente - uma espécie de fio hereditário, genealógico, a prendê-la a "Denís Rey". Assim o confessa noutro inconfundível e esclarecedor umbral dos seus Poemas de 1955:
Sou filha de marinheiros
Pelo mar que também quis,
Pela linha da poesia
Sou neta de D. Dinis.
Aquilo que nunca fiz
É a minha bastardia.
               
Maria do Carmo Castelo Branco de Sequeira, Lugares da Poesia em Natália Correia” 
iNatália Correia 10 anos depoisFaculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003
               
               
Natália Correia, autora de uma obra proteiforme, foi uma das poetisas que enveredaram pelas sendas poéticas do Surrealismo, tendo conseguido, porém, aliar os códigos surrealistas à lírica cancioneiril. Ela própria justifica a sua revisitação consciente e constante dos topoi trovadorescos: por um lado, em função da apologia da unidade ibérica, que a autora enceta (e que postulará sobretudo em Somos Todos Hispanos (1988)); por outro lado, um dos fatores que a aproximam mais visivelmente da lírica medieval é a sua conceção matrista. Natália Correia defende que o feminino é a via salvífica do humano, apontando-lhe os caminhos do Amor. O amor expresso na lírica trovadoresca emblematiza essa regeneração possível do humano através da apologia do feminino primordial:
«O amor é pois a possibilidade feminina do destino glorioso do homem. […] O amor trovadoresco não exprime um ajustamento da realidade e do conceito do amor e do amar, mas é um conceito que quer operar sobre a realidade, transformá-la, ou seja, converter a situação passiva da mulher em princípio ativo, a mulher que inspira o amor que integra a personalidade do homem, a fim de que este reconquiste a sua natureza una, perdida na pluralidade que o escraviza à autoridade desnaturante.» (Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, 2ª edição, Lisboa: Estampa, 1978, pp. 21, 27)
                 
Assim, Natália Correia encontra, na lírica trovadoresca, um universo, onde a mulher é sublimada e, através do seu amor, oblitera a negatividade dos efeitos patristas, como a intolerância, o autoritarismo, a visão do feminino como fonte de pecado, etc.1
Um dos seus muitos poemas, marcados por uma feição neotrovadoresca, “Nesta praia, amigas, de onde p’rás cruzadas”, pertence ao primeiro ciclo lírico, que a autora intitula “Queixam-se as novas amigas em velhos cantares de amigo”, incluído num conjunto macrotextual de reescritas trovadorescas a que Natália Correia chamou «Cantigas de Amigo».
O poema é constituído por quatro coblas de seis versos, sendo o dístico final uma espécie de refrão com variação. Verifica-se, ao longo da composição poética, uma estrutura paralelística, fazendo coincidir a primeira cobla com a terceira e a segunda com a quarta cobla. Ao nível temático, é percetível uma espécie de metamorfose do tema da ausência do amigo que partiu para o fossado2 e a situação comunicativa dadona virgo que se dirige às amigas. Logo no início da primeira cobla, encontramos um preâmbulo, característico das cantigas de amigo, que deixa claro o fio argumental da composição poética: em primeiro lugar, apresenta a localização topográfica – “Nesta praia” – (aliada a outros lexemas de conotação marinha, como “barcas”, “ondas”, “águas”, “cais”…), onde a amiga espera o regresso do seu amor, compondo uma cenografia característica das barcarolas ou marinhas; em segundo lugar, explicita o modelo enunciativo do poema: a amiga dirige o seu lamento às amigas, que, ao que parece, padecem do mesmo infortúnio; por fim, ficamos a conhecer ab initio o motivo da sua “queixa” que é a ausência do amigo, devido à imposição das guerras de cruzada.
É interessante sublinhar que, de estrofe para estrofe, há uma gradatioatualizadora do motivo da separação dos namorados: na primeira estrofe, os amigos foram para as cruzadas (…“p’rás cruzadas / Foram matar mouros nossos lidadores”); na segunda, deixam a terra e as amigas para ir em busca da Índia; na terceira, partem para a guerra, na tentativa vã de preservar as colónias africanas (“Foram matar pretos pelos seus senhores”) e, por último, para os conflitos bélicos e para a tecnologia apocalíptica que colocam ao seu serviço. A amiga, com um tom inequivocamente disfórico, denuncia assim os sucessivos abandonos, todos eles por motivos destrutivos, mostrando a submissão do homem a Thánatos (“matar mouros”, “matar pretos”, “ímpias fornalhas”), génio alado maligno (e masculino) que representa a Morte e a Destruição, ao passo que se sobreleva o papel feminino que, com os seus cantares, exorta os amigos a renderem-se aos encantos vitalistas de Eros.
Desta forma, o lamento da donzela enamorada não é mais que o eco de uma dor intemporal, que se converte no fatum feminino, uma vez que é sempre a mulher abandonada, é sempre a mulher que espera pelo amigo, é sempre a mulher a ser deixada na mais infecunda expectativa. A flutuação fraseológica do refrão reflete exatamente o facto de o tempo passar de forma incoercível, mas de que algo permanece inalterável: as dores não mudam, mas magnificam-se e perenizam-se.
Assim, esta cantiga de amigo é um exemplo eloquente da mestria com que Natália Correia recuperou a herança trovadoresca, usando velhos temas e formas para exprimir novas condições do homem face ao devir da História.
             
“A herança cancioneiril no Imagismo e no Surrealismo” in Un Chant Novel: A inspiração (neo)trovadoresca na poética de Jorge de Sena, Sílvia Marisa dos Santos Almeida CunhaUniversidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp. 40-43)
           
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Notas:
(1) Natália Correia parece desconsiderar o facto de que a lírica trovadoresca é homossocial, como refere Paulo Alexandre Pereira: «Natália Correia submete os textos galego-portugueses a um crivo hermenêutico que remete para a penumbra o facto, sublinhado à saciedade pela crítica mais recente, de que a lírica trovadoresca é, por definição, essencialmente homossocial, isto é, um assunto de homens, mesmo quando (e sobretudo se) se fala de mulheres. (Paulo Alexandre Pereira, “Uma «arqueologia produtiva»: Natália Correia e a tradição trovadoresca”, in FERREIRA, António Manuel (coord.), Presenças de RégioActas do 8º Encontro de Estudos Portugueses, Aveiro: Universidade de Aveiro, 2002, p. 115)
(2) É de realçar a originalidade com que Natália Correia atualiza o campo sémico bélico, criando verdadeiras telas vanguardistas, onde pontifica o contraste violento entre os cenários presentes (o “matar mouros” nas lides, o “matar pretos” nas Áfricas, o inferno, causado pelas armas que transformam as cidades em “ímpias fornalhas”) com os cenários idílicos convencionais, característicos das cantigas trovadorescas.



              

Com relação a “Nesta praia, amigas, de onde p’rás cruzadas”, justamente o primeiro da série das Cantigas de amigo, convém que o analisemos minuciosamente, dado que exerce uma função equiparada ao do prelúdio musical.

O poema acima nos apresenta o gênero longínquo recriado: a cantiga de amigo. Na primeira estrofe, encontramos uma voz poética feminina que se dirige às “amigas”, solidárias na idêntica situação aflitiva: a ausência “dos lidadores”, dos seus “amores” que partiram da “praia” lusitana rumo à “lide” contra os “mouros” por conta das “cruzadas” – ocorridas entre os séculos XI e XIII. Este dado nos remete aos primórdios da história do reino de Portugal, lembrando-nos das investidas militares portuguesas – sublinhemos, com o auxílio dos cruzados que se dirigiam à Terra Santa – contra os mouros que dominavam a Península Ibérica havia séculos, contribuindo assim para a retomada gradativa dos territórios perdidos – eis aqui o movimento ibérico cristão de expulsão dos muçulmanos conhecido como Reconquista. Como percebemos, a estrofe inicial do poema evoca o imaginário das cruzadas a fim de conectá-lo aos acontecimentos históricos concernentes ao surgimento de Portugal. Note-se também que a guerra se encontra presente.

Não só a guerra, mas o cenário marítimo se manifesta nas três das quatro estrofes da cantiga, remetendo-nos às barcarolas ou marinhas. Averiguemos algumas de suas características:

[...] são cantigas de criação nacional, sem correspondentes nas outras literaturas. O galego e o português, criados à beira-mar, não admira que os atrativos da vida marítima participassem do seu temário poético; daí o encanto com que muitas vezes as sugestões do mar invadem os estados de alma da donzela saudosa, que vai admirar o movimento calmo das ondas, conversar com elas, pedir-lhes notícias do amado, ou ainda esperar por elas as barcas em que partiu o amigo em alguma expedição guerreira [...] a partida do amigo nem sempre era por via terrestre. (SPINA, 1972, p. 386-387)

Encontramos justamente uma voz feminina que incita as amigas a chamarem as “barcas” que levaram os seus respetivos amores para a guerra contra os mouros, para um contexto demarcado pela violência. Reparemos na presença de estruturas reiteradas ao longo do poema de Natália Correia, o que remonta ao paralelismo recorrente nas cantigas de amigo dos cancioneiros. Destaquemos o refrão “Não mudam as dores”, estrutura que encerra as quatro estrofes do poema, ecoando na forma de sentença o ceticismo da voz feminina quanto aos caminhos adotados pela humanidade, já que “Discorrem idades./ Não mudam as dores”.

Na estrofe seguinte, insiste-se nos cantares de amigo. Com eles, os amores ausentes são chamados de volta, e agora não são mais as barcas, mas as “naus” que os levaram ao mar. Deste modo, salta-se do contexto histórico das cruzadas para o das grandes navegações em direção às Índias, transita-se aproximadamente do século XII ou XIII para o final do XV. Há uma justaposição temporal promovida no dístico “Mudaram em naus as lenhas das matas/ Mudaram o mundo. Não mudam as dores” que, por seu turno, remata esta segunda estrofe, já que as “lenhas das matas” que serviram à construção das “naus” que conduziram os portugueses às Índias foram supostamente cultivadas durante o reinado de D. Dinis (1261-1325), o rei trovador-lavrador. Com isso, o tempo histórico em que floresceram as cantigas medievais fornece a matéria-prima para a fabricação das embarcações que “mudaram o mundo”. Frise-se, no entanto, que “não mudam as dores”.

Quando lemos a terceira estrofe, encontramos mais um grande salto temporal: das grandes navegações às guerras coloniais (1961-1974) na África. Na ocasião em que era governado pelo ditador Salazar, Portugal mantinha Angola, Moçambique e Guiné-Bissau como colônias ultramarinas, explorando-as. Para que estas regiões africanas alcançassem sua independência política foi necessário o uso da luta armada contra os portugueses. Em decorrência disso, surgem os versos “Neste cais de prantos de onde eles em armas/ Foram matar pretos pelos seus senhores/ Com cantares chamemos as frotas iradas/ Que à guerra levaram os nossos amores”. A estrofe menciona termos como “armas”, “matar pretos”, “frotas iradas”, “guerra”, “soldados” e “Áfricas” para que a referência a estas guerras coloniais travadas entre portugueses e africanos fique mais do que explicitada. Mas se, por um lado, “são outras as guerras”, por outro, “não mudam as dores”, ou seja, o sofrimento humano permanece o mesmo quando comparado ao de séculos anteriores.

Na quarta e última estrofe, deparamo-nos novamente com a esperança de que os “cantares” tragam de volta os amores ausentes. Mas o canto dirigido ao mar desloca-se agora em direção às “nuvens mais altas”, local onde se encontram “as barcas que ganhando asas/ prò inferno levam” os amores. Do mar para o ar, visto que as barcas, naus e frotas foram substituídas pelos aviões. Estes lançam “bombas” sobre a terra que “em ímpias fornalhas/ mudam as cidades”. Incineram-nas com explosivos de última geração, destroem-nas.

Esta última estrofe lembra-nos do ataque aéreo sofrido pela cidade basca de Guernica em abril de 1937, durante a Guerra Civil Espanhola. Horror retratado e imortalizado na tela de Pablo Picasso. Além de Guernica, estendamos a imagem dos aviões que bombardeiam cidades para o cenário das duas grandes guerras. Nestas, bombas de aviões arruinaram cidades, culminando no abominável uso de bombas atômicas contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Levando-se em conta este terrível panorama da história da humanidade, a cantiga de Natália Correia, ao menos esta, conclui que “não mudam as dores”.

Na cantiga como um todo, existe um movimento gradativo de tensão demarcado pelo léxico das embarcações: primeiro, temos as barcas, depois as naus, mais adiante as frotas iradas e, por fim, as barcas que ganharam asas (os aviões). Com variados matizes, a guerra se presentifica em cada uma das estrofes, dado que o filme que se projeta na tela é sempre o mesmo: o da história da subjugação de homens, de culturas. Critica-se a tecnologia a serviço da violência, da guerra entre os homens. De acordo com o poema, a evolução tecnológica potencializou a barbárie que existe entre os povos desde o período de florescimento das cantigas galego-portuguesas: tempos em que os portugueses já saíam para matar mouros.

E podemos nos indagar: se as guerras são constantemente recriadas e nunca são consideradas anacrônicas, por que as cantigas de amigo não poderiam ser também reinventadas no contexto do século XX? Sendo assim, justifica-se o título da primeira parte referente às cantigas de Natália: Queixam-se as novas amigas em velhos cantares de amigo. Ou seja, um gênero antigo – os “velhos cantares” de amigo –, agora reatualizado no intuito de comportar as “queixas” das “novas amigas” que vivenciam impasses históricos contemporâneos.

É visível nesta cantiga de abertura mais do que uma mera queixa, mas a constatação de uma denúncia contra a história da dominação de um homem por outrem. Quando os “amores” destas “amigas” se encontram ausentes, eles comungam com a opressão, com a supressão da alteridade e, de resto, acabam ironicamente vitimados e, por isso, os versos da cantiga conclamam: “chamemos as barcas que ganhando asas/ prò inferno levam nossos amores”. São as barcas aladas pró-inferno que afastam os amores de suas respectivas amigas, mas estas possuem a esperança persistente de que o canto possa reverter esta situação: a guerra cinde, dolorosamente, e o canto – como veremos, alegremente – convida ao encontro amoroso.

 

Os cantares de amigo de Natália Correia: das queixas contra o Estado Novo ao êxtase do encontro com a Revolução dos Cravos”, Tatiana Picosque. In: Convergência Lusíada, v. 25 n. 31, 2014. Dossiê: Poesia Portuguesa dos Anos 40 à Contemporaneidade.



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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/06/nesta.praia.amigas.de.onde.pras.cruzadas.aspx]

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