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O LIVRO DOS MORTOS
Quando me derem por morta de lágrimas nem uma pinga: um trevo de quatro folhas tenho debaixo da língua. Está em regra o passaporte. Venha o Limite da idade. Não me chorem, não é morte é só invisibilidade. Túnel, poço ou espiral suga a alma. Fica o corpo. Vai-se a cópia sideral e isso não é estar morto. É assombro e estranhez por não ser o céu ainda. Há que morrer outra vez. Demanda de Deus não finda. Já noutro modo de ser, Eterna, é contudo breve a vida! Sempre a ascender fica cada vez mais leve. Até que – é esse o endereço – já não é precisa a alma. Unido o fim ao começo Espírito encontra a morada. De lembrar cessa o sentido onde está tudo na Glória. Por isso pelo caminho foi-se perdendo a memória. Por favor, em funeral não me ponham pranto à volta. Isso do choro faz mal a quem do peso se solta. Aqui parecendo cadáver, indemne à carne, não morta, já em frente vou na nave que eu tenho um trevo na boca. E se a sombra me queimarem, bem hajam. Não sou católica. Mas se missa me rezarem pela alma, não me importa. |
Natália Correia, O Dilúvio e a PombaLisboa, Edições Dom Quixote, 1979
O livro de poemas O Dilúvio e a Pomba está dividido em três partes: a primeira com o título “Onde o mar, com paredes de vidro, rodeia o centro inviolável: a Ilha”; a segunda “A Árvore da Vida”; e a terceira “O Espírito é tão real como uma árvore”. É nesta que se situa o poema “O Livro dos Mortos” cujos versos testemunham a índole da autora, a sua crença e a afirmação do seu caráter.
No poema apela-se ao conhecimento oculto: não se deve chorar pela pessoa que partiu, primeiro porque a morte não existe, morrer “é só invisibilidade”, a pessoa continua. Aliás, já o Fernando Pessoa dizia no Cancioneiro: “A morte é a curva da estrada / morrer é só não ser visto.” Segundo, quando ela diz “Não me chorem” (v. 7), “não me ponham pranto à volta. / Isso de choro faz mal / a quem do peso se solta” (vv. 30-32) refere-se, na interpretação de António Macedo, à grande perturbação que se provoca à pessoa que partiu, pois esta precisa de estar três dias e meio numa posição horizontal, numa dimensão suprafísica, em estado descanso para proceder a um certo tipo de trabalho antes de partir para outros túneis mais luminosos e elevados ‑ “Sempre a ascender”, diz a poeta no verso 19. Desde a primeira estrofe, com “um trevo de quatro folhas […] debaixo da língua” (clara referência simbólica ao costume grego decolocar uma moeda, chamada óbolo, sob a língua do cadáver, para pagar Caronte pela viagem), até à sexta estrofe, verifica-se as fases por que a poeta acredita vir a passar, uma vez ultrapassado o “Limite de idade.”
No livro Instruções Iniciáticas ‑ Ensaios Espirituais (Hugin Editores, 1999), António Macedo chama-a de “sacerdotisa tão pouco descoberta, ainda por encontrar, do enigmático «século XX português»”. E acrescenta, no documentário de 1999 “A Senhora da Rosa (Natália Correia)” realizado por Teresa Tomé para a RTP-Açores: “a Natália Correia era uma sacerdotisa de um sagrado que hoje as pessoas não entendem, porque não é um paganismo, não é um cristianismo… ou talvez seja um certo tipo de cristianismo. Ela tinha uma veneração muito grande pelo Espírito Santo.”
“Natália sentia que era chegada a era do Espírito, que deveria seguir-se à do Pai e à do Filho. Natália não era católica mas não desdenhava da religião pois escreveu num dos seus mais belos poemas [“O Livro dos Mortos”, vv. 38-40] que não desdenhava duma missa rezada por sua alma. Aliás, sempre me pareceu que o seu culto do esotérico era uma janela aberta onde buscou sem parar o mundo espiritual e tentou encontrar sempre as suas fontes últimas buscando a religião perfeita.” (Carlos Melo Bento, “Para uma biografia de Natália Correia: o Reino dos Transparentes”, 2004-07-16)
“Afrodite Ressurrecta” é o poema que aparece na sequência de “O Livro dos Mortos”.
AFRODITE RESSURRECTA
Da espiritual roseira vos cito a Citereia
que nos braços de Adónis cobre a terra de flores.
Cereal e celeste. Não a Vénus sereia
que em tropos gregos passa por ter muitos amores.
A de leite colmada. De amor, a mama cheia.
Universal obreira de aromas e sabores,
que pelos argonautas, nos filtros de Medeia,
troca luas malignas por honestos lavores.
Da Grécia ao tredo Lácio degradada em Pandemos
em mirtos a resgato de cultos obscenos.
Do Espírito o plectro fere de novo a onda.
Venusta sai da concha e para todos brilha
em divas formas Deus. A carne é maravilha.
É-lhe devido o cisne. Mas sobretudo a pomba.
Natália Correia, O Dilúvio e a PombaLisboa, Edições Dom Quixote, 1979
Amigos da escritora libertam uma pomba branca,
durante o
funeral de Natália Correia,
em Lisboa a 18 de Março de 1993.
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PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
► Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise
literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia
– plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível
em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia,
2021 (3.ª
edição).
► A Tripla Deusa: tradição cristã.
A saudosa Natália Correia, com a exuberância que lhe era peculiar, e como boa açoriana e simultaneamente sacerdotisa do ancestral-renovado culto feminino, não poucas vezes dissertou — pelo menos no «Botequim», tanto quanto me recordo, e lhe ouvi —, sobre a transcendência Paraclética do Espírito de Verdade de Deus, que ela insistia em designar por Espírita Santa!
Está certo: a Espírita Santa é a POMBA — que em hebraico se diz yonah e que a tradição hermética, fazendo tábua rasa das rigorosas pesquisas etimológico-científicas da Linguística, considera relacionada com a yin chinesa (princípio feminino, complementar do princípio masculino yang) e a yoni indiana (órgão sexual feminino, complementar do órgão sexual masculino linga). Trata-se duma «Cabala fonética» de que Fulcanelli foi um dos principais impulsionadores, e que, não obstante a sua rejeição por parte da linguística histórica, revela e torna «transparentes» os mais subtis e inesperados aspetos do REAL.
Vimos como a tradição helénica associava o polo feminino da Divindade à Terra e ao elemento Água, e como a tradição judaica associava o polo feminino da Divindade ao Céu e ao elemento Ar .
Por sua vez a tradição cristã, epítome e sequência das duas, congloba no polo feminino da Divindade os elementos Ar e Água, juntamente com o Céu e a Terra, do seguinte modo:
• Pomba — Espírito Santo/Inspiração Paraclética: Ar (Mente Superior), e Céu; Virgem-Mãe —Associação complementar e indissolúvel entre o Pai Celestial e a Mãe Terrenal: Céu, e Terra;
• Sophia — Água (Coração, Desejos Sublimados), e Terra.
1. Pomba — O primeiro aspeto — POMBA — surge pela primeira vez, no Novo Testamento, no exato momento do Batismo de Jesus, e simboliza o divino Espírito Santo, que João designa por «Paracleto». O simbolismo da pomba associado ao princípio feminino da Divindade já vem de longe, e perdurou: tanto o encontramos na antiga Mesopotâmia e na Ásia Menor, em que o Princípio Feminino visível e invisível, substância e essência, era reverenciado nos templos sob a forma duma pomba, tal como continua a figurar, muito mais tarde, como por exemplo num tratado gnóstico do século III d. C., Pistis Sophia, onde vemos logo nas primeiras linhas do capítulo 1 que «o Mistério anterior a todos os Mistérios é o Pai sob a forma duma Pomba». Lemos no capítulo 8 do Génesis como Noé enviou um corvo (símbolo da negra natureza de desejos) e uma pomba (símbolo do luminoso «corpo anímico») para saber se as terras já tinham secado após o dilúvio. O corvo limitou-se a voar para cá e para lá até que as águas secaram, mas a pomba, à segunda tentativa, trouxe um raminho de oliveira (Génesis 8, 6 - 11). A oliveira, de tradição sagrada muito antiga —a oliveira e o azeite, atributos da deusa Atena, foram as suas dádivas sagradas à Ática —, associa- se ao ministério de Cristo e ao bálsamo da cura pelo espírito. Um dos motivos decorativos das colunas da catedral de S. Pedro, em Roma, é uma pomba com um raminho de oliveira: — o Espírito Santo com uma oferta de regeneração e cura. Este Espírito — ru’ah —, manifestação do polo feminino da Divindade, conduz-nos ao segundo aspeto aludido acima:
2. Virgem/Mãe — Esse segundo aspeto — VIRGEM/MÃE —, recuperado desde muito cedo pela Igreja na sua Teologia Mariânica, é uma tónica recorrente num curioso manuscrito que o estudioso Edmond Bordeaux Székely diz ter encontrado nos Arquivos secretos do Vaticano e que traduziu do original aramaico para francês (1928). A respetiva edição policopiada deu origem à versão inglesa que foi publicada em 1937, em Londres, com o título The Essene Gospel of Peace. A ideia de Virgem/Mãe surge nesse apócrifo naturalmente associada à Terra, alternadamente Virgem e Mãe, e embora o texto — que é um longo discurso de Jesus em resposta a algumas questões que lhe são apresentadas pelo discípulos — não deixe de se referir, com frequência, ao «Heavenly Father» (Pai Celestial), insiste muito mais na reverência, amor, fidelidade e veneração que se deve à «Earthly Mother» (Mãe Terrenal), que nos doou amorosamente tudo de quanto o nosso corpo é feito e tudo o que possui. Em dado passo diz Jesus:
«O vosso Pai Celestial é amor.
A vossa Mãe Terrenal é amor.
O Filho do Homem é amor.
A vossa Mãe Terrenal é amor.
O Filho do Homem é amor.
É pelo amor que o Pai Celestial e a Mãe Terrenal e o Filho do Homem se tornam um. Porque o espírito do Filho do Homem foi criado do espírito do Pai Celestial, e o seu corpo, do corpo da Mãe Terrenal. Tornai-vos, pois, perfeitos, como são perfeitos o espírito do vosso Pai Celestial e o corpo da vossa Mãe Terrenal».
Registe- se a relevância atribuída ao AMOR que «torna UM» não só o Pai e o Filho («Eu e o Pai somos um»!) mas também a Mãe.
Não é só neste Evangelho essénio que o polo feminino da Divindade se identifica com a Mãe, incluso a própria Mãe mistérica de Jesus: outros manuscritos antigos também o atestam. Por exemplo, há um curioso indício transmitido pelo Evangelho dito dos Hebreus, usado por algumas comunidades iniciáticas cristãs como os Nazarenos e os Ebionitas, e do qual só restam fragmentos que nos foram conservados em citações feitas pelos Padres da Igreja. Supõe- se que tenha tido a sua origem nos princípios do século II d. C. Segundo o testemunho de Jerónimo (Dial. adversus pelagianos, III, 2) teria sido originalmente escrito em aramaico, e nele se afirma que o Espírito Santo, além de ser feminino — ru’ah em hebraico é feminino —, é, ainda por cima, a Mãe de Jesus!
«Há pouco a minha mãe, o Espírito Santo [gr. ‘agion pneuma] tomou me por um dos cabelos e levou-me ao monte sublime do Tabor…» (É um paralelo de Mateus 4, 1 e vem citado no Comentário ao Evangelho de João, de Orígenes: In Io. 2, 6).
Ou, noutra versão, que nos foi transmitida por Jerónimo no seu II Comentário sobre Miquéias (Comm. II in Mich.7, 6):
«Há pouco tomou-me a minha mãe, o Espírito Santo [lat. Sanctus Spiritus], por um dos meus cabelos…».
Jerónimo surpreende-se, pois a ser assim, «a alma, que é esposa do Verbo, tem por sogra o Espírito Santo»! («Et animam, quae sponsa sermonis est, habere socrum Sanctum Spiritum, qui apud Hebraeos genere dicitur feminino, ru’ah» — id., ibid.).
No Evangelho da Paz dos Essénios esta ru’ah corresponde ao Espírito da Terra, perfeita e imaculada por todo o Amor que tem para doar.
No final do Livro Primeiro de The Essene Gospel of Peace, Jesus ensina duas orações: uma, muito semelhante ao «Pai Nosso» que conhecemos, em veneração ao Pai Celestial; e outra em veneração à Mãe Terrenal e que é a seguinte:
«Mãe nossa que estás na Terra, santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino e faça-se em nós a tua vontade, tal como em ti se faz. Tal como envias os teus anjos diariamente, envia-no-los a nós também. Perdoa os nossos pecados, tal como expiamos os pecados que cometemos contra ti. Não nos deixes cair na doença, mas liberta-nos de todo o mal, porque teus são a Terra, o corpo e a saúde. Ámen».
Eis-nos perante o mistério do Eterno Feminino corporizado na Terra Lucida, a Terra de Luz que um dia o ser humano reconstruirá (redescobrirá), redimido em Cristo, mediante o vínculo de fé na sagrada e irresistível união do Cristo e da Sophia.
Daqui passamos naturalmente ao terceiro aspeto referido acima:
3. Sophia — O terceiro aspeto do polo feminino da Divindade na tradição mistérica cristã — SOPHIA — surge não só na continuidade do Antigo Testamento, sobretudo no Livro dos Provérbios e no Livro de Job, como vimos acima a propósito daHochmah («Sabedoria»), mas também num livro veterotestamentário que a tradição judaica considera apócrifo e que a tradição da Igreja aceitou como «deuterocanónico», redigido em grego cerca do ano 50 a. C.: o Livro da Sabedoria. Neste livro a Sabedoria personificada (Sophia) é tida como o agente da atividade divina no mundo, participando de certo modo da própria natureza divina. O livro foi composto como se o seu autor tivesse sido Salomão, que em dado passo diz:
«Rezei, e o entendimento foi - me dado; supliquei, e o Espírito da Sabedoria veio até mim. […] Amei-a mais do que à saúde ou à beleza, preferi-a à própria luz, porque o seu resplendor nunca fenece. Em sua companhia todos os bens vieram até mim, e as suas mãos trouxeram-me incalculáveis riquezas. De todas estas coisas me alegrei, porque foi a Sabedoria que as trouxe; mas eu ignorava ainda que ela fosse sua Mãe» (Sabedoria 7, 7.10- 12).
No tratado gnóstico a que fiz referência acima, Pistis Sophia, e que se supõe ter sido composto no século III d. C., Jesus ressuscitado faz revelações aos Seus discípulos sobre a queda e a redenção duma das emanações da Divindade, a Sophia (ou PistisSophia: «Fé-Sabedoria»). Aqui a principal preocupação é saber quem finalmente será salvo. Os que se salvarem devem renunciar ao mundo e seguir a ética pura do amor e da compaixão, a fim de se identificarem com Jesus e se transformarem em raios da Luz Divina.
No Judaísmo — sobretudo intertestamentário — abundaram especulações filosófico-teológicas sobre a Sabedoria celestial (Hochmah, Sophia) uma entidade celeste ao lado de Deus que se apresenta à humanidade não só como mediadora da obra de criação mas também como mediadora do conhecimento de Deus. Ireneu Lugdunense, ou de Lião, apologeta e feroz anti - herético que floresceu na segunda metade do século II, resume o ponto de vista duma seita gnóstica do seu tempo observando que o homem-Jesus, nascido duma Virgem e o mais sábio, mais puro e mais justo de todos os seres humanos, foi escolhido para que, no momento do Batismo, nele descesse o Espírito Crístico (o Cristo, o Ungido) acompanhado pela Sophia(«Sabedoria»), dando origem a Jesus - Cristo que a partir desse momento passou a fazer milagres, a curar, etc. (Adversus Haereses, I, 30, 12- 13).
No Novo Testamento, essa «Sabedoria de Deus» (Theoû Sophia) é-nos apresentada por Paulo do seguinte modo: «Sabedoria [gr. Sophia], com efeito, falamos entre os iniciados [gr. teleiois]; não a sabedoria deste ciclo [gr. aiôn] nem dos príncipes deste ciclo condenados a perecer. Mas falamos antes da Sabedoria de Deu s em mistério [gr. Theoû Sophia en mystêriô], a oculta, que Deus predestinou antes dos ciclos para glória nossa» (1 Coríntios 2, 6 - 7). A associação do princípio feminino — Sophia — ao Mistério da Iniciação é aqui acentuado por Paulo: quando ele usa o termo «mistério» não o faz no sentido eclesiástico e distanciador que a Igreja cunhou mais tarde, como por exemplo o «mistério» da Transubstanciação, mas no sentido de «mistérios iniciáticos» como era corrente no tempo de Paulo.
Por fim, a própria Igreja de Roma acabou por identificar a Virgem Maria, «Mãe de Deus», com a figura da Divina Sabedoria (Sophia), e, tal como na Cristologia mainstreamse descreve Jesus como uma «hipóstase» do Pai (um ente da mesma substância), também na Teologia mariológica acabou por prevalecer o conceito de que Maria tem a Sophia como sua «hipóstase»
António de Macedo, “EU E O PAI SOMOS UM: O Eterno Feminino na Nova Religiosidade” in Artigos e ensaios
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/10/01/o.livro.dos.mortos.aspx]
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