quarta-feira, 2 de julho de 2014

HOMOEROTISMO EM ÁLVARO DE CAMPOS

Porto de Leixões, 2011
      
   

(…) Quais as razões psicológicas da inaptidão para o amor concreto e real – anímico e físico –, tão dolorosamente manifestada por Fernando Pessoa? 
Já vimos que o poeta foi um idealista e um grande romântico. E já observámos o seu lado-Álvaro de Campos, isto é, uma certa pulsão homossexual, transparente nalgumas das Odes do «engenheiro naval» e confessada em página íntima, onde diz: «sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina»; e «É uma inversão sexual frustre. Pára no espírito».
Junto de Ophélia, o problema pode ter estado prestes a resolver-se, apesar das interferências (episódicas) de Álvaro de Campos, isto é, do seu demónio interior, talvez menos antimulher do que anticasamento. (…)
António Quadros, Fernando Pessoa – vida, personalidade e génio.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1984, p. 174
              
Yannis Tsarouchis, Marin assis et nu allongé, 1948


        
Fernando Pessoa, que em sua poesia ortônima (e em sua vida, dizem) foi quase indiferente ao sexo, revela, através do heterônimo Álvaro de Campos, uma avidez por ser subjugado como uma fêmea: “Eu podia morrer triturado por um motor/ Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída”. Na “Saudação a Walt Whitman”, em lugar do acento social que Lorca empregou ao louvar o bardo americano, Pessoa, ou melhor, Campos atesta uma semelhante entre si e o “grande pederasta” saudado, revelando uma “vontade (…)/ De ser a cadela de todos os cães e eles não me bastam”. O universo pulsante de Whitman é pervertido, requintadamente, pelos espasmos angustiados do heterônimo pessoano.
Saulo Lemos, “Sendas do homoerotismo”, http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/sendas-do-homoerotismo/
         
Querelle
Querelle (1982), Rainer Werner Fassbinder
            
Na voz poética de Álvaro de Campos, particularmente na “Ode Triunfal” e na “Ode Marítima”, vemos encenada a emergência desse novo modelo de masculinidade, estabelecida sobre a crise dos valores sociais e estéticos portugueses e europeus. Nesses poemas se concentram um novo sujeito homoeroticamente manifesto, que se não quer ser mulher, como Sá-Carneiro em “Manicure”, quer ver-se possuído pela força da masculinidade, não representada por si mesmo, mas pelo mundo moderno.
Na “Ode Triunfal” o sujeito poético, penetrado, em êxtase perene proporcionado pela máquina, realiza um processo de interação erótica com os mecanismos que manifestam o mundo moderno. Entretanto, como nos indica Fernando Arenas, nesse poema, Campos-Pessoa, ainda não consegue se desvencilhar dos paradigmas que instituem o mundo masculino, visto que nele reitera as dicotomias típicas de uma realidade patriarcal: o sujeito, passivo e afeminado, deixa-se submeter por uma máquina masculinizada ao extremo. Mantém-se, pois, a hierarquização dos gêneros e é exposta uma subjetividade que nos parece conflituosa na medida em que, no correr do poema, não indica mais nenhuma possibilidade erótica efetiva e nem afetiva.
Ó rodas, ó engrenagens. r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria dentro e fora de mim.
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora do mundo que eu sinto!
(…)
Ah, exprimir-se como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
         
A máquina, assim, só se traduz como possibilidade e fetiche e não necessariamente como elemento capaz de viabilizar os desejos homoeróticos reais do sujeito poético. Ela, como metáfora de um mundo futurista já preconizado por Marinetti nos indica, também, o rompimento com um ideal manifesto em toda a lírica ocidental: a mulher como musa:
Eh marinheiros, gajeiros, eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, marcantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! Homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co’o Perigo a espreitar p’las vigias! (...)
         
Em a “Ode Marítima” os impulsos homoeróticos já expostos no poema anterior ganham um aspeto mais dinâmico no sentido de que passam a existir nas esfera das sensações valorizadas pelo sujeito poético, que quer “sentir tudo de todas as maneiras”. Assim, convoca de seu imaginário o espaço marítimo e das grandes navegações para a partir daí constituir seu discurso de canto (de louvor ou de amor?) à herança deixada e até aquele momento ainda significativa de um passado glorioso. Como na “Ode Triunfal”, o poeta demarca a existência de um outro que indiretamente revela os desejos do sujeito poético: o eu, homossexual, se confronta com um outro, se não hétero, mas percebido como al: o primeiro encarna a visão do sujeito moderno sobre o mundo e sobre as coisas; o outro, a reconfiguração do sujeito do passado; para esse, reflexo do homem camoniano, é sugerida a mudança nos paradigmas da própria identidade.
Como já aludimos aqui. Pessoa se propõe a esvaziar os sentidos circulantes tanto na épica quanto no poeta épico, horizonte significativo de toda uma nação. Para tanto, substitui no interior do poema em questão a figura do marinheiro português pela do navegante inglês; o português conquistador de mares, pelo pirata que a tudo toma de assalto, violentamente, masculinamente, bravamente. Temos aí, já. o índice desse esvaziamento, visto que no lugar de endossar o modelo vigente. Pessoa, se não parodia, rasura por completo um ideal de honra e masculinidade residente no imaginário coletivo da nação. Aqui, ao invés do marinheiro galanteador, nobre, que conquista a ninfa, temos um marinheiro ciente dos vícios que o mar engendra, que penetra o sujeito poético à beira do cais, que o sevicia enquanto a quilha do navio rasga o oceano:
Tu, marinheiro inglês, Jim Bars meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas,
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar (…)
         
Todo o poema se constrói através daquilo que o olhar do sujeito poético é capaz de alcançar e a partir daquilo que a fluidez da sua imaginação, aliada às sensações que acarreta, é capaz de gerar. Ao olhar do cais deserto a foz do Rio Tejo, o enunciador mergulha num continuum de experiências que inicialmente são evocadas pela memória histórico-marítima, mas que vão paulatinamente se tornando elucubrações desejantes. Um “volante começa a girar, lentamente”, dentro de um eu que vê, a partir disso, crescerem também a volúpia e o desejo de ter para si, eroticamente, todo aquele mar e os signos que o ratificam. Ao lado da força semântica que o mar vem representar no interior do poema está também a presença motivadora do marinheiro, a provocar no sujeito poético uma excitação capaz de descolá-lo do real:
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
         
O processo deflagrado pelo girar do volante — moto-contínuo de excitação — segue numa dinâmica que culminará na descrição, efetiva, de todo um jogo fetichista em que o sujeito poético precisa mergulhar; assim, quer ser possuído, quebrado, fustigado, tatuado, crucificado, para que a “sensação dos postes” lhe entre pela espinha e para que possa sentir tudo num “vasto espasmo passivo”. A descrição do gozo provocado pelas atitudes do marinheiro, prenúncio de um novo masculino, é sempre viabilizada por algo que lhe entra pela espinha a dentro, causando um torpor de sensações “nunca dantes navegadas”, até que o enunciador rende-se a profunda possessão erótica e deseja
Ser o [seu] meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas p’Ios piratas!
Ser o meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso — todas estas coisas de uma só vez — pela espinha!
(…)
         
É esse o ponto de culminância do poema — a penetração anal —, como também indica uma explicitação da pulsão erótica que os marinheiros motivam no eu poético. A partir desse ponto, fica patente que o mundo masculino ali representado pelos homens do mar é, claramente, o seu ponto de excitação e provocador das sensações a que está sendo submetido. Nesse ponto, como diria Camões, “cesse tudo o que a musa antiga canta”, já que o objeto de interesse poético é definitivamente rompido, dando lugar à exposição de um desejo homoerótico incapaz de ser dominado pelo sujeito:
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos de minha imaginação!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de piratas nos sonhos!
         
As figuras masculinas em jogo no desenvolvimento do poema — sujeito poético e marinheiros — têm todo o seu processo de subjetividade e de identidade reconfigurados, no sentido em que o primeiro rompe com a estratégia tradicional do gênero, pressuposto em Camões, para em seu lugar estabelecer a lógica dos impulsos homoeróticos. Álvaro de Campos, engenheiro, homem faustiano, dominador da Técnica e adorador do mundo moderno, e, portanto, imagem do homem esperado no alvorecer do século XX, rasura seu estatuto heterocêntrico para a partir dele instaurar uma nova subjetividade, através da estética vanguardista a que está ligado.
Emerson da Cruz Inácio (Universidade Federal do Rio de Janeiro), “Outros Barões assinalados: a emergência do discurso gay na produção literária portuguesa contemporânea.” VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, 16 de setembro de 2004.
         

Porto de Leixões, 2011
          
          
                
Tal estimativa não deve ter deixado de acompanhar a escolha de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, quem, em “Ode Marítima” e em “Saudação a Walt Whitman”, deixa claro seu débito não apenas linguístico, isto é, no sentido de modelo escritural, como também temático (ainda que pelo viés da paródia, no caso de “Ode Marítima”) para com o nova-iorquino, como se torna claro neste último poema-homenagem, quando o trata de “Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas”, entre outros epítetos, depois de dizer-lhe que ele próprio é “dos teus, bem o sabes, e compreendo-te e amote […]/ E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,/ De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma”.
Por essa aproximação literária, melhor dito: este “homoerotismo intertextual”, como o caracterizei, entre outros aspectos, esteve Pessoa bem preparado para responder, como Álvaro de Campos, aos ataques que à publicação das Canções, de António Botto (1922), tinham sido feitos pelo líder da protofascista Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, Álvaro Maia, sob forma de um manifesto – Literatura de Sodoma– cujo episódio completo caracteriza a entrada, por assim dizer “oficial”, da vertente homoerótica, assumida como tal, isto é, como uma deriva da dicção moderna, na poesia em língua portuguesa. O Aviso por Causa da Moral, que responde ao referido manifesto, assinado por Campos e ironicamente datado de “Europa, 1923”, seguiu à publicação, assinada pelo Pessoa ortônimo, de “António Botto e o ideal estético em Portugal”, artigo que não defende a temática homoerótica diretamente, mas trata o tema como um efeito da liberdade de esteta que caberia a Botto (“o único português, dos que conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância”). Nesse artigo, Pessoa fala em tom magistral do tema homoerótico, e as autoridades que cita são estetas do século anterior, Winckelmann e Pater à frente, cujos conceitos sobre o “amor grego” foram fundamentais para o estabelecimento da moderna consciência homodirigida no período tardo-vitoriano. De forma conexa, Pessoa também defende a liberdade de expressão na questão da publicação de Sodoma Divinizada, opúsculo com o qual o “Profeta Henoch”, isto é, o escritor Raul Leal, tinha por sua vez defendido as mesmas Canções de Botto e o mencionado artigo de Pessoa sobre elas, atacando, por sua vez, o já referido manifesto de Álvaro Maia. Vale dizer, aqui, que Pessoa o faz com a autoridade que sabe ter como o poeta de proa da vanguarda lusa.
Em poucas palavras, o duplo affaire das Canções de Botto e de Sodoma Divinizadanos permitem observar tanto a implantação da temática homoerótica na poesia escrita em português, mas também, devido ao peso de Pessoa, à sua “canonização” no âmbito da poesia portuguesa. Aqui, o poeta não acompanha a recusa de seu mentor Whitman frente aos poetas ingleses. Nos trinta e tantos anos entre as respostas de Whitman a Symonds e a defesa pública de Pessoa de Botto e Leal, observamos uma mudança de mentalidade: o tema, cuja expressão passa a ser defendida como um direito do poeta, passa a ter cabida no reino do propriamente literário e daí, no espaço social e político.
Isso não quer dizer que qualquer dos envolvidos portugueses tivesse tido sua vida facilitada por essa tomada de posição. Se a Pessoa cabe o papel mais confortável de canonizador que escolhe o viés que privilegia naquilo que canoniza – ao preferir não tratar do tema como transgressão das normas do decoro literário, mas como manifestação hodierna de uma constante estética –, Botto passaria por mil revezes, entre eles seu exílio perfunctório no Brasil entre os anos 1940 e 1950 e sua morte por atropelamento em condição de miséria na avenida Nossa Senhora de Copacabana, ao passo que Raul Leal viveu andrajosamente toda sua maturidade e velhice.
Horácio Costa (Universidade de São Paulo), “O Cânone Impermeável: Homoerotismo nas Poesias Brasileira, Portuguesa e Mexicana do Modernismo”. In: Retratos do Brasil Homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo, Edusp, 2010.
        
              
Leitura intertextual: O Virgem Negra
    

          
Aquando das celebrações do cinquentenário da morte de Fernando Pessoa, em 1985, os seus restos mortais foram trasladados do Cemitério dos Prazeres para o Mosteiro dos Jerónimos em Belém. Como explica Fernando Pinto do Amaral, o título de Cesariny O Virgem Negra provém “do curioso facto de o cadáver de Pessoa ter sido encontrado incorrupto e enegrecido aquando da sua trasladação” (1990: 208). Sobre este facto, Lídia Jorge comenta num artigo publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias:
“que se ponha a correr que o seu corpo jaz incorruptível é artefacto banal em terra de santos” (1985: 5).
 A partir deste acontecimento, sob a imagem de um Pessoa negro, aparece, em 1989, o livro de Mário Cesariny de Vasconcelos intitulado: O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por M. C. V. Who Knows Enough About It seguido de Louvor e Desratização de Álvaro de Campos pelo Mesmo no mesmo lugar. Com 2 Cartas de Raul Leal (Henoch) ao Heterónomo; e a Gravura da universidade. Escrito & Compilado de Jun. 1987 a Set. 1988.
Como podemos apreciar pela ironia e pelo engenho do título, o humor tem um papel central neste livro, que exige ser lido com a sabedoria do riso. Entramos numa leitura ao mesmo tempo afastada de Pessoa, num sentido emocional (digamos: sem compaixão) mas também uma leitura próxima, de poeta a poeta, onde as palavras de um são reescritas pelo outro: as palavras de Pessoa são reinventadas por Cesariny.
[…]
Finalmente, destacaremos a única estrofe de Cesariny que se repete duas vezes:
Desvestidos de seus nus, 
De pernas muito afastadas 
(Duas formas co-irmãs) 
Masturbam homens de as-
Pecto decente nos
Vãos de escadas. (1989: 15)
Cesariny cita um dos versos mais sexualmente explícitos de Álvaro de Campos: “Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, / (…) E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! – / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada” (1915: 87). No entanto, Cesariny transfere a acção sexual, antes feita pelas “filhas”, para os heterónimos, ideia coerente com o resto do livro: toda a acção “dramática” conduz nestes poemas a encontros sexuais.
No poema seguinte, “Eu, sempre…”, Cesariny parodia a filiação pessoana em Platão, descrevendo-a como insuficiente, semelhante à de “um romano da decadência total” (1989: 17). O terceiro poema intitula-se “Alheio” e, como o nome indica, versa sobre o que a voz poética não possui:
Alheio ao céu e à luz
De Seth e de Rimbaud
No Antinoo depuz
O paneleiro que sou (ibidem: 21)
Depois de se declarar “paneleiro”, o sujeito poético afirma só ter sido capaz de evidenciar esta tendência sexual em inglês, referindo o poema “Antinous”, que forma parte dos poemas ingleses de Fernando Pessoa. Também faz referência ao poema “Epithalamium”, escrito nesta língua:
E no Epithalamium fiz
Que pudessem saber
Que feliz ou infeliz
O sou como mulher

As costas do meu ser
Deixei em inglês
Porque isso em português
Não o podia escrever (ibidem)
A voz poética resume depois a sua educação literária: “De Shakespeare e de Marlowe / Mas também (ainda não disse) de Donne/ De Milton, de Mcpherson, de Coleridge, / De Chatterton, de Carlyle, de Wordsworth, de Browning” (ibidem), continuando com outros escritores ingleses canónicos. No entanto, da influência anglo-saxónica confessa-se “um tanto grogue” (ibidem). Narra também dados biográficos coincidentes com os de Pessoa, sobre a mudança para Lisboa, a passagem pela Faculdade de Letras. Alude ainda à falta de filiação na poesia francesa:
A francesia de maior cariz
Não a pronunciei. Não conhecia. Ou não quiz.
Talvez a não houvesse na biblioteca de Durban (24)
Depois do quadragésimo verso, o poema, que começa com quadras ao estilo de Pessoa-ortónimo, muda estilisticamente, lembrando as formas mais comuns a Álvaro de Campos, incluindo onomatopeias como: “– Ã-ã-ã-ã…” (ibidem: 25), à semelhança do heterónimo de Ode Marítima. Aparecem julgamentos sobre a poesia portuguesa, classificando Camões de “italiano” (23), alusões a Teixeira de Pascoaes: “eu disse / Que ele sofria de pouca arte” (ibidem), e a Antero de Quental: “seria especial / Não fora o / Entre filosofal e sensorial (oriental ocidental) / Que ele não resolveu / Porque o resolvi eu” (27).
O quarto poema desta primeira parte é uma resposta ao livro de Mário Sacramento, Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda, de 1958, onde Sacramento usa o adjectivo “anti-génio” para descrever Pessoa. O poema de Cesariny questiona este termo:
O Mário de Sacramento é que há um ano disse
Uma palavra de desengano felice.
Que eu era um anti-génio, disse o rapaz
Em livro eugénio e invulgarmente lilás. (31)
Sacramento expõe no seu livro a tese de um Pessoa anti-génio, entendendo por génio “um excepcional adequamento do homem à realidade do seu tempo” (1958: 77). Afirma Sacramento que Pessoa teria fracassado no seu plano de fazer da heteronímia um drama-em-gente: “muito embora possamos admitir que Fernando Pessoa contivesse em si elementos susceptíveis de transfiguração dramática (…) a verdade é que não chegou a realizar-se nesses termos. E porquê? Necessariamente, porque lhe faltou… génio dramático” (ibidem: 58).
O Pessoa apócrifo que Cesariny cria responde assim no seu poema:
Mas voltando ao escritório
Do Mário Sacramento,
Este belo parlório
Sito à casa de banho
Saberá que para se ser um antigénio
Tem de se ter muitíssimo talento? (1989: 33)
O poema cita também três dos mais famosos versos de Campos, acrescentando uma pergunta: “Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada… lembram-se?” (ibidem: 34) confirmando a sua insignificância, pedindo depois para que o retirem dos Jerónimos, ou, ao contrário, que retirem o monumento e o deixem aí ficar. Descreve pejorativamente o seu sepulcro:
E antes de mais tirem de mim os Jerónimos
Que é clausura demais para um homem só
E se tal não puderem (souberem, quiserem, temerem)
Digam lá ao escultor venha tirar a mó
Da m erda da coluna que me pôs em cima a fingir que estou dentro. (ibidem)
O facto real da sepultura de Pessoa no Mosteiro dos Jerónimos é um dos eixos do livro. Devemos pensar no significado desta recusa, que questiona a estatização da figura do poeta. Pedir que seja o monumento removido, e não o poeta, é exagerar humoristicamente a importância de Pessoa, superior às honras de estados ou governos.
A segunda parte do livro é composta por dezanove poemas. Começamos por recorrer às palavras de Cláudio Willer, que descreve esta segunda parte de O Virgem Negra assim: “consiste em pastiches e adulterações dos poemas de Pessoa: entre eles, alguns dos mais conhecidos. Há uma interpretação, no sentido da dessublimação, de revelar um conteúdo sexual latente, reproduzindo o poema na forma e ritmo, mas com substituições” (2003: s/p). Mesmo que na primeira secção tal já acontecesse, agora os poemas servem menos de apresentação e mais de confissão da personagem. Utilizam, em geral, textos de Pessoa-ortónimo (tanto em prosa, como em verso) e de Álvaro de Campos.
O primeiro poema foi elaborado a partir de versos do poema “Dorme enquanto eu velo…” de Pessoa ortónimo (1924a: 66), publicado pela primeira vez na revistaAthena. Em Cesariny repetem-se textualmente versos de Pessoa como “Dorme que eu velo (…) Nada em mim é risonho” (Cesariny, 1989: 45), mas intercalados por outros que não correspondem ao poema de Pessoa, tais como “Sedutora imagem/ Terna Miragem” (ibidem), transformando o sentido do hipotexto. No segundo poema da secção II, parodia o conhecido poema de Fernando Pessoa “O menino de sua mãe”, publicado em vida do poeta na revista Contemporânea (1926: 82), mudando versos chave de Pessoa, como: “Que volte cedo, e bem / (Malhas que o Império tece!) / Jaz morto, e apodrece / O menino da sua mãe” (ibidem: 83), por “Que morra cêdo, e bem! / Malhas que o Império tece! / Ainda vive e parece / O menino de sua mãe” (Cesariny, 1989: 48). No poema de Cesariny, a morte está trocada pela vida, referindo-se, ao que nos parece, à presença pessoana no mundo cultural, como também ao imperialismo português e à guerra colonial.
Entre outros poemas intertextuais, podemos destacar “Ó tocadora de harpa, se eu beijasse” (Cesariny, 1989: 57), que parodia o poema de Pessoa que começa da mesma maneira, publicado em 1916 na revista Centauro, e que é, no caso pessoano, uma afirmação platónica. Enquanto Pessoa escreve, depois deste primeiro verso: “Teu gesto, sem beijar as tuas mãos” (ibidem), negando-se à materialidade do tacto pela abstracção gestual, no poema de Cesariny lemos: “Teu corpo sem beijar a tua poma / E beijando-o me unisse pela soma / Aos quatro sexos meus e te enterrasse / Tão fundo o meu caralho que gravasse / em soberba medalha de cristãos (…) A forma que submete e extasia” (1989: 57). Cesariny usa a palavra “forma” em lugar de “teu gesto”; e enquanto o poema de Pessoa termina em “Não poder eu prendê-lo, fazer mais / Que vê-lo e perdê-lo!… e o sonho é o resto” (1916: 39), em Cesariny perde-se e vê-se “na retina” (1989: 57), afirmando-se dentro do sensível, do visível, do táctil.
Encontramos nesta parte alusões ao dado histórico da trasladação do cadáver de Fernando Pessoa e o estado em que se encontrava: “O Virgem Negra, tal me descobriram / Cincoenta anos depois, / Em minha infusão estou. Tombam, deliram / Em vão quantos seguiram” (1989: 67). A palavra Virgem tem duplo sentido remetendo, tanto para a castidade sexual, como para a Mãe de Cristo, Maria. Muitas vezes o facto de um cadáver estar incorrupto tem sido interpretado pela Igreja Católica como evidência de santidade. Assim, com a palavra “virgem”, Cesariny não destaca apenas a sexualidade de Pessoa, mas também a santificação ou deificação do poeta. Portanto, a sua crítica está dirigida tanto contra a obra ou a vida de Pessoa, quanto contra o tratamento crítico a que posteriormente foi sujeito. Ao mesmo tempo interessante e ridícula, a exumação de Pessoa serve como metáfora perfeita para esta dupla aproximação. Segundo Claudio Willer, a crítica estaria dirigida aos que fizeram “a oficialização de Pessoa e sua conseqüente normalização (…) Portanto, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro seriam, mantido o paralelo com o surrealismo francês, os Anatole France e Paul Claudel de Cesariny” (2003: s/p). Embora partilhemos da opinião de Willer, e uma vez que O Virgem Negra foi publicado em 1989, pensamos que a crítica cesarinyana vai para além dos poetas da revista Presença, estendendo-se ao clima geral de mistificação e popularização que as comemorações do cinquentenário e a explosão editorial de e sobre Pessoa extremaram.
O poema que começa com “Vem Vulva antiquíssima” é exemplar tanto pelo aberto tom paródico, como pela sexualização dos elementos que, na poesia de Pessoa, costumam ser abstractos. Através de um quadro comparativo, em anexo a este ensaio, podemos ver os poemas lado a lado, comprovando semelhanças e mudanças feitas por Cesariny.
O substantivo usado por Campos, “Noite”, em maiúsculas, referindo não uma noite singular e específica, mas a Noite como abstracção – a ideia de noite, a súmula de todas as noites – é substituído no poema de Cesariny por “Vulva”. Numa interpretação dos impulsos reprimidos por Pessoa, Cesariny subverte todo o sentido do poema, que termina por ser um canto à cópula ou junção, ao encontro efectivo e positivo dos contrários. Os últimos versos substituem Cristo por “Çiva-Parvati”, deuses indianos que formam, como casal, uma família sagrada (pais de Ganesha, deus da escrita); Deus é substituído pela figura andrógina de Ardhanarishwar, metade homem, metade mulher, composto por Shiva e a sua consorte Shakti (1993: 45). Sobre esta incapacidade amorosa e sexual de Fernando Pessoa com o “outro” Yvette Centeno escreve um ensaio intitulado “ophélia-bébézinho ou o horror do sexo”. Afirma que “Ophélia, aliás logo Ophelinha, reduzida, depressa passa a Bébé (de valor neutro, e já não feminino) a Bébézinho (neutro na mesma e ainda mais reduzido), a Bébé-anjinho, em que a des-sexualização mais se afirma” (1985: 18). Cláudio Willer sugere que Cesariny conhecia este ensaio e se baseia nele para a escrita do livro O Virgem Negra. O décimo poema da segunda parte copia por inteiro o poema de Pessoa ortónimo “Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar” (2005: 63) mas interrompido por citações de diversas cartas escritas por Pessoa a Ophélia como: “A Nini Bèbèzinho / Do Ibi” (Cesariny, 1989: 63). Descontextualizadas, e portanto ridicularizadas. Estão, no entanto, tecidas significativamente com o poema de Pessoa, não tanto para mostrar a escrita poética e a epistolar como duas formas de fingimento, mas para evidenciar como em duas formas expressivas transparece uma mesma carência.
Outro dos poemas a salientar da segunda parte do livro é aquele que começa por “O Álvaro de Campos gosta muito de levar no cu” (ibidem: 89), porque os heterónimos e Pessoa ortónimo protagonizam aqui diferentes cenas eróticas, concluindo com a chegada de Aleister Crowley, célebre mago e ocultista inglês que Pessoa conheceu em vida. No poema, os heterónimos protagonizam um teatro sado-masoquista concebido por Cesariny, que encena um drama-em-gente (neste caso, é mais uma comédia-emgente, transformando a gravidade dos temas pessoanos em jogos sensuais).
A terceira parte do livro é composta por cartas apócrifas de Raúl Leal, poeta e colaborador da revista Orpheu, supostamente dirigidas a Pessoa. Numa primeira carta, a voz poética estende-se na explicação pormenorizada e hiperbólica do seu estado de ânimo, descrito como “de dissolução mental em que me esfarrapo ao capricho do Acaso” (ibidem), para finalmente anotar aquilo a que aspira: “essa ambição estonteante de arrebatar divinamente o Universo, de me sentir Tudo, de me sentir Deus, essa Ânsia, essa Ambição você jamais sofreu e mal poderá avaliar a grandêsa da Minha Dor” (ibidem: 102). É interessante verificarmos como acusa Pessoa de ser incapaz de entender o seu sofrimento e a sua ambição. Willer destaca a sátira efectuada por Cesariny “aos maneirismos de vocabulário e repertório associados ao espiritualismo e esoterismo na passagem dos séculos XIX para XX, que tanto influenciou a geração de Orfeu [sic] ” (2003: s/p). Da passagem citada, destacamos também a denúncia da incapacidade de Pessoa perante as dores de Leal, que “mal poderá avaliar”, por não as ter experimentado (julgamento contra um Pessoa sedentário?).
A segunda carta é mais breve, e interroga directamente o destinatário sobre o futuro: a carta que Raúl Leal alegadamente recebeu não trazia todas os dados de um horóscopo que Pessoa lhe teria lido. A dúvida deste Leal apócrifo quanto à possível morte, que via próxima, não parece atemorizá-lo por completo. Uma espécie de transfiguração, descrita como “atracção hipnótica” (porque “o Vácuo-Fantasma e eu tornávamo-nos um só Eu” (1989: 109)) alivia seu estado físico de sifilítico. Uma terceira carta, aparecida só na segunda edição do livro de Cesariny, é escrita por, supostamente, Pessoa. Desta vez dirige-se a João Gaspar Simões para refutar alguns dos ensaios que este escrevera sobre Aleister Crowley e, em geral, sobre a relação pessoana com o ocultismo e as práticas mediúnicas. Ressuscitado pela pena de Cesariny, Pessoa exumado tem a oportunidade de dialogar com os seus intérpretes.
Através de O Virgem Negra, Cesariny parece apontar a incapacidade de Pessoa de se encontrar com o feminino, ou de se declarar homossexual. Trata-se de um Pessoa apócrifo ou, como dissemos na introdução deste ensaio, um Pessoa reescrito como texto intransitivo, construído a partir não só do que os outros dizem dele, mas também através dele próprio. Assim a corrosividade do texto de Cesariny explicita uma clara intencionalidade desmistificadora, satírica, mas também, como afirma Cândido Martins, uma “rejeição edipiana mais ou menos profunda” (1995: 109), do tipo de “tesera” conforme defendido por Harold Bloom, porque Cesariny está a completar a obra de Pessoa. Este processo também poderia ser descrito como de “demonização”; neste caso, Cesariny apropria-se de elementos pessoanos para os expor em sentidos opostos.
             
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/07/02/homoerotismo.em.alvaro.de.campos.aspx]

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