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Ilustrações
de Paula Rego para Sopa de Pedra, Texto de
Cas Willing. Porto Editora, 2015
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SOPA DE PEDRA
Um
escrevia o nome da mulher amada com letras de macarrão
Enquanto a sopa esfriava no prato.
Outro era metade solidão e metade multidão.
Estou de olho neles.
Um andava com a espada sangrenta na mão.
Outro fingia que sentia o que de verdade sentia.
Este dizia que não cabe no poema o preço do feijão.
Estou de olho neles.
Este vê a vida como origem da sua inspiração,
A vida que é comer, defecar e morrer.
Todo poeta é maluco.
Estou de olho neles.
E também tem que ser maluco o pintor
E o músico e o prosador.
A loucura é muito boa
Para todo o criador.
Mesmo para os cozinheiros
Ou qualquer inventor.
Estou de olho neles.
É melhor ser capenga do que cego.
A poesia é uma sopa de pedra.
Cabe tudo dentro dela.
Rubem
Fonseca, Amálgama.
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2013.
O CALDO DE PEDRA
Um frade andava ao peditório; chegou à
porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair
com fome, e disse:
– Vou ver se faço um caldinho de pedra.
E pegou numa pedra do chão, sacudiu‑lhe a terra e pôs‑se
a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs‑se
a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:
– Então nunca comeram caldo de pedra? Só
lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam‑lhe:
– Sempre queremos ver isso.
Foi o que o frade quis ouvir. Depois de
ter lavado a pedra, disse:
– Se me emprestassem aí um pucarinho…
Deram‑lhe uma panela de barro.
Ele encheu‑a de água e deitou‑lhe
a pedra dentro.
– Agora se me deixassem estar a
panelinha aí ao pé das brasas…
Deixaram. Assim que a panela começou a
chiar, disse ele:
– Com um bocadinho de unto é que o caldo
ficava de primor…
Foram‑lhe buscar um pedaço
de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade,
provando o caldo:
– Está um bocadinho insonso, bem precisa
de uma pedrinha de sal.
Também lhe deram o sal. Temperou, provou,
e disse:
– Agora é que com uns olhinhos de couve
ficava que os anjos o comeriam.
A dona da casa foi à horta e trouxe‑lhe
duas couves tenras. O frade limpou‑as e ripou‑as
com os dedos, deitando as folhas na panela.
Quando os olhos já estavam aferventados,
disse o frade:
– Ai, um naquinho de chouriço é que lhe
dava uma graça…
Trouxeram‑lhe um pedaço
de chouriço; ele botou‑o na panela, e enquanto
se cozia, tirou do alforge pão, e arranjou‑se para comer com vagar.
O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada
a panela, ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos
nele, perguntou‑lhe:
– Oh senhor frade, então a pedra?
Respondeu o frade:
– A pedra, lavo‑a e levo‑a
comigo para outra vez.
E assim comeu onde não lhe queriam dar
nada.
BRAGA, Teófilo – “O caldo
de pedra”. In Contos Tradicionais do Povo Português (uma seleção), Porto
Editora, 2015, pp. 45‑46.
UMA SOPINHA PARA O CAMINHO
Se o frade alguma vez existiu por aqui, ninguém sabe.
Mas a história da sopa da pedra era boa e vinha mesmo a calhar para a sopa que
José Manuel "Toucinho" inventou nos anos 60. Hoje a sopa faz mexer a
economia de Almeirim.
Na realidade esta sopa da pedra tem duas histórias - a
lenda, e a história real. A lenda é conhecida de todos. Havia um frade
espertalhão que para conseguir comida chegava a casa dos aldeões e garantia que
conseguia fazer uma sopa deliciosa só com uma pedra. Os que o recebiam,
ansiosos por perceber como é que isso era possível, iam acedendo aos pedidos
dele - "Se agora me dessem só um dentezinho de alho é que isto ficava
delicioso", "Está quase pronta, mas com um bocadinho de
toucinho...", "E umas folhitas de couve." E por aí fora, até a
panela estar cheia de coisas boas e a sopa estar deliciosa, com a pedra no
fundo e tudo o resto que o frade tinha conseguido que lhe dessem.
A outra história, a real, nasce aqui neste
restaurante, que começou por ser uma mercearia, fundada por José Manuel
"Toucinho" e pela mulher, Maria Manuela Aranha. "Para receber os
viajantes, e para ser mais rápido dar o jantar, os proprietários faziam esta
sopa", conta João Paulo Simões. "E o número de viajantes foi
aumentando." A fama da sopa começava a espalhar-se. "Alguém terá dito
que era tão pesada que parecia as pedras da calçada." Foi então que se
lembraram da lenda do frade e começaram a chamar-lhe "sopa da pedra".
Alexandra
Prado Coelho, https://www.publico.pt/2011/08/08/jornal/uma-sopinha--para-o-caminho-22619383
(com supressões)
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Ilustrações de Paula Rego para Sopa de Pedra, Texto de Cas Willing. Porto Editora, 2015 |
A pintora portuguesa de 80 anos juntou-se à sua
filha Cas Willing e reinventaram este conto popular
A
história corria mais ou menos assim: era uma vez um frade que andava a pedir
esmola para poder ter alguma coisinha para comer. Os aldeões eram todos uns mãos-de-vaca
e ninguém lhe dava tostão. O frade espertalhão pegou numa pedra e, perante os
olhares curiosos, preparou-se para ferver água só com o seixo lá dentro. “Bom,
bom era com um bocado de sal.” E trouxeram-lhe sal. “Bom, bom era com um bocado
de azeite.” E trouxeram-lhe azeite.
A lengalenga segue por aí fora até
haver no tacho do frade cebolas, cenouras e até um chouriço. No fim do repasto,
com a panela vazia, a pedra é lavada e guardada no bolso do religioso. Como
assim?, perguntam os aldeões, indignados. “Guardo-a para a próxima vez que
tiver fome.”
Com mais ou menos ponto acrescentado
por quem conta este conto, esta história popular portuguesa tem seguido sempre
pelo mesmo caminho. Até chegar às mãos da família de Paula Rego. A pintora de
80 anos que vive em Londres juntou-se à sua filha, Cas Willing, e juntas deram
nova roupagem à história.
Em vez do frade, a protagonista passa
a ser agora uma rapariga de vestido vermelho e os aldeões conseguem ser ainda
mais vis do que no conto tradicional. Também há um pai que acaba por (spoiler
alert) morrer de fome e, uma vez na cozinha, a miúda de vestido vermelho, para
além da sopa, também sabe fazer o melhor arroz de pedra do reino. E pelo
estômago conquista os sacanas da aldeia. Se a filha Cas tornou as esquinas da
história mais contemporâneas, a mãe juntou-lhe o seu traço inconfundível e
criou 14 pinturas inéditas que, por si só, já são uma narrativa. Tudo junto, o
livro torna-se uma pequena obra de arte, capaz de distrair miúdos na hora de ir
para a cama, mas igualmente capaz de enriquecer a prateleira de um
coleccionador de livros de arte.
QUEM SAI AOS SEUS Sobre Paula Rego, há pouco de novo a
dizer, já que é um dos nomes grandes da arte europeia e a sua obra já
ultrapassou há muito as fronteiras de Portugal. Mas Cas Willing é outra
história e o exemplo vivo de que filho de peixe sabe nadar.
Cas, hoje casada e com duas filhas,
nasceu em Londres, fruto do casamento de Paula Rego com o pintor britânico
Victor Willing. A escrita para crianças não é novidade para si, tendo já
trabalhado em vários argumentos e produzido histórias infantis para a
televisão. Uma das séries mais emblemáticas em que participou, “Little
Princess”, continua no ar no Reino Unido, no Channel 5, nove anos depois da
estreia. Antes disso, e já com um mestrado em Artes no Royal College of Art,
trabalhou na indústria cinematográfica como designer e marionetista. No filme
“O Cristal Encantado”, de Jim Henson (o criador dos Marretas), Cas fez parte da
equipa que criou e produziu os skeksis, a raça de vilões da película. E em
“Sonhos de Criança”, o filme que retrata a relação de Lewis Carroll (“Alice no
País das Maravilhas”) com Alice Liddell, fez parte da equipa que controlava os
cabos que davam vida ao Chapeleiro Louco e às outras personagens do conto
infantil.
Ana Kotowicz, 23/10/2015
http://www.ionline.pt/artigo/418465/uma-sopa-de-pedra-feita-em-casa-de-paula-rego?seccao=Mais_i
Paula Rego: os contos tradicionais “mostram a natureza humana como ela”
Numa entrevista à agência Lusa, Paula Rego e a filha, Cas Willing, explicaram como foi o processo de recriar a história "Sopa da Pedra", que as duas publicaram em conjunto.
A pintora Paula Rego acredita que as histórias tradicionais são muito importantes para descobrir o mundo e quem somos, e coloca as fábulas portuguesas entre as “melhores de todas”, porque “mostram a natureza humana como ela é”.
“Sopa de Pedra” foi uma dessas histórias tradicionais que recentemente fascinou a pintora, levando-a a criar ilustrações e a pedir a colaboração da filha, Cas Willing, para escrever o texto do livro lançado este mês em Portugal pela Porto Editora.
Numa entrevista à agência Lusa, por correio eletrónico, a pintora e a filha explicaram como foi o processo de recriar uma história – da qual existem versões em vários países – que mantém o enredo principal, mas muda o protagonista.
Na versão tradicional portuguesa, um frade consegue convencer um camponês de que é capaz de fazer uma sopa apenas com uma pedra, mas vai-lhe pedindo ingredientes para dar mais sabor ao caldo.
“‘A Sopa de Pedra’ é uma história universal. Há muitas versões. Em Portugal, o trapaceiro é um frade, mas, em França, é um grupo de soldados e, na Escandinávia, é um mendigo”, observou Paula Rego, artista portuguesa radicada em Londres desde os anos 1970.
Nesta versão ilustrada pela pintora, o frade é substituído por uma jovem que tem de ser muito persistente e perspicaz para sobreviver em tempos difíceis.
Escolher uma jovem para o centro da história tem razões óbvias para Paula Rego: “O mais importante é que o protagonista tem muita fome. Não são só os homens que têm muita fome, as mulheres também. E uma jovem sozinha é muito mais vulnerável”.
Cas Willing – filha de Paula Rego e do artista britânico Victor Willing (1928-1988) — acompanha sobretudo a área da gestão e questões empresariais do trabalho da mãe, assim como a atividade da Casa das Histórias, em Cascais, inaugurada em 2009.
Pela primeira vez, com este livro, fizeram algo juntas ao nível criativo: “Quando tinha nove anos, bordei uma cabeça numa tapeçaria da minha mãe. Acho que foi a última vez que a ajudei num trabalho. Eu nem sequer faço de modelo para as pinturas dela”, disse à Lusa.
Para criar “Sopa de Pedra”, Cas explicou que se sentiu uma espécie de “detetive”. Paula Rego – que completou 80 anos em janeiro – mostrou à filha uns desenhos que dizia serem basicamente a história da sopa de pedra e precisava de um texto para acompanhar, na esperança de que fosse publicada.
“Ela foi muito persuasora e persistente, e, finalmente, eu disse que tentaria. Mas se não conseguisse um resultado ao fim de uma semana, ela teria de procurar outra pessoa”, relatou à Lusa a autora, que tem criado argumentos e produção de programas infantis para a televisão, entre eles “Little Princess”, série exibida no Reino Unido.
A primeira vez que olhou para os desenhos sentiu-se um pouco perdida: “Não percebi do que se tratava. Vi burros alados, casais a discutir e uma rapariga a cozinhar algo numa panela”.
“Espalhei os desenhos no chão e olhei para as imagens como se fossem um ‘story board’ para um filme ou um livro de banda desenhada. Reordenei-os, até sentir que tinha criado uma história visual com um início, meio e fim”, descreveu.
Através da leitura das imagens, e tendo como referência a “Sopa de Pedra”, a autora foi imaginando uma narrativa: um homem que parecia doente passou a ser o pai impossibilitado de sustentar a família; a jovem que, por vezes, aparecia com um vestido vermelho demasiado largo, passou a ser a protagonista, que usava as roupas da mãe já falecida.
Nesta construção – que diz ter sido um processo “interessante e divertido” – também incluiu memórias mútuas em Portugal, da vida de camponeses, em aldeias junto ao mar, e da história da própria família, como o pai doente, e decidiu ainda incluir questões ligadas às mulheres, por a protagonista ser uma rapariga.
“Não basta ter um sorriso doce e ser bonita. É preciso ser-se bom a fazer alguma coisa e ser persistente. Não há um príncipe que apareça para a salvar. Ela vai ter de continuar a trabalhar para ter comida”, salienta a autora.
Para Cas Willing, em resposta às questões colocadas pela Lusa, esta história da sopa de pedra “não acaba com uma moral, mas com a ideia de que a partilha beneficia todos”.
Para Paula Rego, é enorme a importância dos contos tradicionais, sobretudo os mais antigos, porque são “os mais verdadeiros”.
“Mostram a natureza humana como ela é, sem terem sido corrompidos com a ideia de ‘como deve ser’ ou qualquer sentimentalismo. As pessoas acham que as crianças devem ser protegidas da crueldade que há nestas histórias, mas elas não se importam. Gostam porque as compreendem muito bem”, sustenta a pintora.
“Por isso dei ao museu de Cascais o nome Casa das Histórias”.
Texto: Agência Lusa, http://observador.pt/2015/10/29/paula-rego-os-contos-tradicionais-mostram-a-natureza-humana-como-ela/ 29/10/2015
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