Partindo de dois versos sugestivos de um dos poemas da obra Chuva de Época, «Escrever e ler/é escrever mal e ler mal», o título do projeto Más Leituras corresponde a uma subversão provocatória do significado de «mal»/«má»: aqui, uma «má leitura» consiste numa proposta de recriação apolínea de itinerários possíveis, suscitados pela receção de cada um dos seis textos selecionados. No conjunto, as «más leituras» deste projeto são experiências de apreensão daquilo que o poeta José Maria de Aguiar Carreiro designa por “riqueza multiplicada/ que sai esbaforida” dos textos e que se constitui como reduto privilegiado do/a leitor(a).
Eduarda Maria da Silva Ribeiro Mota, Más Leituras - Projeto Final do Seminário de Materialidades da Literatura II, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, julho de 2011.
DA RETICÊNCIA AO FACTO
Da reticência ao facto
tudo é repetição, segmento deposto,
correcção.
Escrever e ler
é escrever mal e ler mal.
O facto é sempre o que se vê:
letras de lua e de sol
gavião que sai de feridas e se interpreta
o primor da fala, a sabedoria poética.
Chuva de Época,
Ponta Delgada, 2005.
AUSÊNCIA
À luz gelada do amanhecer
ele toma a direção da praia
a força do mar arrima-o um pouco
ao imo prestado pelos elementos
observa a fúria da areia que voa
açoita a cara empurrando-o
a procurar abrigo.
Sim, que ausência.
Rolam tumultuosas mas lentamente
as letras para sua própria ordem
por imposição incendiária de montanhas
de rios e de cidades.
Sim, muitos deixam as ilhas
areias cristais e buscam continuamente
forma onde repousar.
– Sim, dir-me-ás tudo isso
mas eu não sei o que quero nem o que faço
para que tudo se represente igual sempre igual a si
mesmo.
Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.
“Má Leitura” como processo (in)voluntário de colagem.
Pretende-se realçar que cada leitor(a) encerra em si mesmo(a) um conjunto quase infinito de potenciais atualizações de um arquivo individual em devir. Aqui a leitura é construída por meio da convergência de duas componentes do arquivo do/a leitor(a): a biblioteca e a música popular açoriana pós-autonomia.
INSULARIDADES
“Mãe-Ilha”, de Natália Correia
“Ilhas de Bruma”, de Manuel
Medeiros Ferreira
à luz gelada do amanhecer
da
ilha que me deram e eu não quis
toma a direção da praia
a
tosca ilhoa
seu
gesto, cãibra de garça interrompida
só
o vento ecoa mundos na lonjura
sim, muitos deixam as ilhas
de
bruma
onde
as gaivotas vão beijar a terra
e buscam continuamente
forma onde repousar
parti
p’rás índias do meu estranho caso
mas
trago o mar imenso no meu peito
nas
veias corre-me basalto negro
ao
pasto e à onda me unirei sincera
para que tudo se represente igual
sempre igual a si mesmo
Eduarda Maria da Silva Ribeiro Mota, Más Leituras - Projeto Final do Seminário de
Materialidades da Literatura II, Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, julho de 2011.
MÃE ILHA
I
Limão aceso na meia-noite ilhada,
O relógio na
torre da Matriz
Põe o ponteiro na
hora atraiçoada
Da ilha que me
deram e eu não quis.
Mas, ó de alvos
umbrais Ponta Delgada!
Meu prefixo de
pastos, a raiz
É de calhau e de
onda encabritada:
Um triz de
hortênsia e estala-me o verniz.
Atamancada em
fama a tosca ilhoa,
Só na praça e no
prelo é de Lisboa,
Seu gesto, cãibra
de garça interrompida.
No mais, o osso
campesino e duro
É fervor, é fogo
e fé que juro
Ao lume e às
flores da Graça recebida.
II
No coração da ilha
está um vaso
Cheio das pérolas
que p’ra mim sonhaste,
Ó mãe completa da
manhã ao ocaso,
Pastora dos meus
sonhos, minha haste.
Parti p’rás
Índias do meu estranho caso
– ó danos que dos
versos sois o engaste! –
E com maus fados
se entendem ao acaso
Lírios e feras do
meu vão contraste.
Ave exausta, o
retorno quem me dera,
Vou no canto dos
órfãos soletrando
O âmbar da manhã
que ali me espera.
Feridas asas,
enfim ali fechando
Ao pasto e à onda
me unirei sincera,
Ilha no manso
azul de mãe esperando.
ILHAS DE BRUMA
Ainda sinto os
pés no terreiro
Que os meus avós
bailavam o pezinho
É que nas veias
corre-me basalto negro
E na lembrança
vulcões e terramotos
Se no falar trago
a dolência das ondas
O olhar é a
doçura das lagoas
É que trago a
ternura das hortênsias
E no coração a
ardência das caldeiras
Trago o roxo a
saudade esta amargura
Só o vento ecoa
mundos na lonjura
Mas trago o mar
imenso no meu peito
E tanto verde a
indicar-me a esperança
É que nas veias
corre-me basalto negro
No coração a
ardência das caldeiras
O mar imenso me
enche a alma
E tenho verde,
tanto verde a indicar-me a esperança
Por isso é que eu
sou das ilhas de bruma
Onde as gaivotas
vão beijar a terra (Refrão)
Letra de Manuel
Medeiros Ferreira
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