A
presença de Antero de Quental no panorama cultural português apresenta uma
similitude, até certo ponto paradoxal, com a vida de Antero ele-mesmo. Com
efeito, o Antero de Quental que a história registou é o de um intelectual
profundamente envolvido nas grandes causas do seu tempo. Associa-se-lhe deste
modo uma áurea de presença excessiva. Dele dizemos que é «uma figura que se
impõe». Já os seus contemporâneos assinalavam nele essa qualidade de presença
afirmativa. Por outro lado, nos momentos em que a vida lhe exigiu recolhimento,
e mesmo alguma clausura face aos acontecimentos, a sua ausência nunca foi
interpretada como demissão de intervenção na vida cultural; mesmo ausente, o
pensamento e a personalidade de Antero – disso são muitos os testemunhos convocáveis
–, irradia em excesso. Sabe-se que ele lidava mal com esse facto.
Avesso ao
que de mundano tem a intervenção social e cultural, pelo imediatismo que se lhe
associa, Antero propõe-se recolocar o debate literário e filosófico no seu
lugar certo: o pensamento. À voragem do acontecimento só raramente a paciência
do pensar sabe responder sem cair na vertigem do imediato. A consequência desta
impossibilidade foi, no poeta, motivo de desespero. Nele, o pensamento era
ânsia de resolver, e nisso se debatia.
A
tragicidade não está na morte ela-mesma, mas na sua confirmação previamente
anunciada. A contradição, qual seja a forma com que ela se apresente, é o sinal
dessa desesperança. Por mais que se insista na fórmula que acompanha o nome
próprio – «Antero, o poeta-filósofo» –, nunca o traço será inclusivo.
A
acreditar no próprio, a justeza da fórmula estará apenas na cronologia que ela
indica. No entanto, o depois – o filósofo que ocupou o lugar do poeta –, não
significa uma dicção contra o antes, apenas (e pouco não é), que a contradição
mudou de lugar.
A
convocação da disciplina é, para o pensamento, a recentração do que lhe é
essencial: o próprio pensar. O que está em jogo não é um mero conflito
intra-psíquico de alguém que viveu atormentado; o que é biografável não pode
obscurecer o que na grafia está para além – ou aquém –, do vivido. No poeta e
no polemista há a consciência de ambas as coisas. Se o conflito, por exaltação
da escrita, ou pela proximidade física e mental dos que na polémica se
envolvem, deriva para a simples luta das influências, logo o pensador se enoja
com a distância entre o que é e o que devia ser. Se a imposição do epíteto –
apesar do Eça –, está condenada a abrir todos os «In Memoriam», também em
Antero de Quental é justo lembrar que a santidade não é uma questão pessoal,
mas a destinação do próprio universo.
Nisto, a
procura da influência funciona por contágio. E Antero sofreu, assumidamente,
contágios à velocidade vertiginosa do comboio do seu tempo. Os anos de
aprendizagem na Coimbra que perdura como mito, revelam um Antero decidido a
escapar ao atavismo cultural em que Portugal mergulhara.
Mas já
aqui se vê o que, para o autor de «Bom Senso e Bom Gosto», é questão: não a
fórmula literária, antes as ideias; não o autor do momento, antes as novas
correntes de pensamento que ressoam pela Europa; não o imobilismo do elogio
mútuo, antes a assumpção sofrida da incessante procura de respostas, ainda que
impossíveis; não o seguidismo face a filosofias, mesmo que da grandeza das de
Hegel, Proudhon, Comte ou Hartmann; antes a pessoal resolução das dicotomias
que atravessavam o pensamento filosófico.
Que a
contradição prevaleça sobre o fixismo das ideias moldáveis para todas as
ocasiões, não é motivo de espanto. Em Antero, no poeta como no filósofo, foi na
aguda consciência das contradições que a pulsão para o pensamento encontrou o
seu terreno. Como o chão da sua terra natal, também o seu pensamento e
personalidade sofrem abalos que exigem refundações permanentes.
O
mal-estar que o caso Antero imprimiu (para o futuro dele e passado nosso),
reside na exemplaridade que nele se conjuga com o sentimento da irredutível
distância entre o ser e o dever ser. Por isso a exigência da dinâmica evolução
do cosmos e do homem era nele causa de sofrida preocupação. Com razão dizia
Fernando Pessoa que, em Antero de Quental, o pessimismo era mais alegre que o
seu optimismo, e a sua fé mais desoladora que a sua crença.
A
confrontação com a exemplaridade tornou-se algo a que não mais podemos
resistir. Mesmo que assobiemos para o lado, ou que nos deixemos enlevar pela
avenidas do progresso sem fim, sempre a revisitação de Antero nos reconduz ao
confronto com a sombra, que em nós tende para a felicidade auto-satisfeita.
Não é a
Questão Coimbrã, os seus porquês e para quês, que merece o nosso espanto; é sim
que ela tenha sido. Mais ainda: a frequência com que a ela regressamos faz
crescer em nós o sentimento de torpor de ela hoje não ser. Nem o que nela
estava em causa foi resolvido – por mais vitória que lhe consagremos nas
literaturas passivas –, nem, por outro lado, a figura de Antero se dissolve no
espírito da época. Essa época hoje já não é. Leia-se isto em toda a sua
extensão.
Das
Conferências do Casino se pode dizer o mesmo às avessas. A sua proibição não
provoca espanto – que tantas (mesmo que poucas) se tivessem realizado, sim. Eis
um risco que hoje não corremos: os comissários da cultura estariam na primeira
fila da assistência.
Sem
Penélope que fie e desfie, sem regresso a uma Ítaca que nunca foi, nem inimigos
visíveis com que se possa confrontar, o suicídio de Antero de Quental continua
acontecendo.
Fernando Martinho
Guimarães
Ponta
Delgada, https://www.facebook.com/fernando.m.guimaraes/posts/10211122023440550,
2017-04-18
Poderá também gostar de:
à Apresentação
crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero
de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da
língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>
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