sábado, 26 de agosto de 2017

Mia Couto

TRÊS POEMAS FAMILIARES




IGNORÂNCIAS PATERNAS

Altas horas,
já secos cuspos e copos,
meu pai dizia:
vou reparar o teto.
E saía, para além da noite,
por interditos caminhos.
Minha mãe
retorcia a alma
nas magras mãos.
No peito, não no ventre,
a mãe vai gerando filhos.
Por trás dos cortinados
seu olhar se desfiava
no longo rosário da espera.
Cegos para as suas fadigas
nós, os filhos,
pedíamos que nos alonjasse o medo.
E a voz dela acontecia
como inundação do rio:
lavando águas e tristezas.
Pobre do vosso pai, suspirava.
Que pena ela dele sentia
que, no escuro, em vão procurava.
A nossa casa, de tão alta,
não poderia nunca ter telhado.
Filhos deitados, medos dormindo:
antes do meu pai regressar
já minha mãe
tinha reparado
as telhas todas do mundo.


 

MUDANÇA DE IDADE

Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba do tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.

*
A PRIMEIRA VEZ DA IDADE

A vez
que tive mais idade
foi aos cinco anos. Meu pai,
com solenidade que eu desconhecia,
perante seus superiores hierárquicos,
apontou e disse:
– Este é meu filho!
E deu-me a mão
coroando-me rei.

 Mia Couto

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