"Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"
Cada vez mais biólogo e menos neurocientista, António Damásio insiste nas humanidades para formar homens e cientistas. No seu mais recente livro dá primazia aos sentimentos como formadores de consciência e motor da ciência, e refere a necessidade de um pacto global sobre educação.
ISABEL LUCAS, 2017-11-05
O que
leva um estudante a levantar a mão quando o professor lhe fala de um tema que o
intimida? Como reagirão as gerações que cresceram com as redes sociais, quando
precisarem de tempo, mais tempo, do que o imediato? Estamos a viver uma crise
na actual condição humana diz António Damásio no seu mais recente livro, A Estranha Ordem das Coisas, que dá prioridade aos
sentimentos. Na vida, na ciência, na cultura. Horas depois de aterrar em Lisboa
não esconde a emoção perante a edição portuguesa da Temas e Debates. Sorri.
Pega no livro de quase 400 páginas, olha a contracapa e retrai a vontade
imediata de ver tudo ali. Mais tarde confessará que é um chato com o português.
Escreve em inglês, pensa em inglês, mas o português é a sua língua. Quando, ao
longo da conversa, na oralidade, lhe sai um vocábulo em inglês trata de
arranjar a tradução certa, sobretudo se for para descrever um sentimento. É que
são os sentimentos o que está antes de tudo no livro que dedica à sua mulher,
Hanna Damásio, e na conversa onde haverá de dizer, já desligado o gravador, que
também fala alemão e namora em italiano. "É a língua do amor",
refere. Como aprendeu? "A ouvir as óperas de Verdi."
Começa este livro, que vem na
continuidade dos anteriores, por esclarecer o que chama de uma “ideia simples”,
“como usamos os sentimentos para construir a nossa personalidade”. Peço-lhe que
descreva, brevemente, o protagonista deste A Estranha Ordem das Coisas,
os sentimentos?
Há a realidade científica daquilo que penso que são os sentimentos, mas há
também uma mais alargada ligada a um tema que estamos [com a mulher, Hanna
Damásio] a tratar por estes dias para uma conferência sobre ética. Parte dos
sentimentos que temos como experiência têm a ver com as coisas mais valiosas da
nossa vida; com todas as coisas sobre as quais podemos ter uma valência, as que
verdadeiramente contam: vida, doença, dor, sofrimento, morte, desejo, amor,
cuidado com o outros [to care]. E, ao mesmo
tempo, crimes, medos, raivas, ódios, que têm a ver com o contrário das boas
coisas da vida e que podem levar à perda [da vida], e, se não à perda da vida,
ao sofrimento. Praticamente todas as coisas que governam ou desgovernam a nossa
vida são normalmente transmitidas por uma valência de bom ou mau; de agradável
ou desagradável, de recompensa ou punição. São essas que constituem o grande
personagem dos sentimentos. Os sentimentos são representações do estado da
nossa vida, mas representações qualificadas. Um dos problemas que mais me
inquietam é essa
impossibilidade que as pessoas têm tido de perceber que a inteligência – ou a
nossa mente – vai só até um certo ponto e a partir daí tem de ter uma
qualificação. Essa qualificação aparece em termos de agradável ou desagradável,
de bom ou de mau, e é isso que faz a grande distinção entre a inteligência
humana no sentido mais completo e a mente humana. À inteligência artificial,
por exemplo, falta isso. Infelizmente as pessoas não se têm dado conta. Sou um
adepto de inteligência artificial e tudo o que esse campo de tecnologia e de
ciência nos tem trazido, mas é pena que poucas pessoas dentro desse mundo
tenham compreendido que a inteligência artificial tal como é compreendida é uma
pálida ideia daquilo que é a inteligência humana no seu real.
Ou seja, o humano, muito por via
dos sentimentos, não pode ser replicado artificialmente.
De certeza que não pode ser nem simulado! Há uma grande diferença entre
simulação e duplicação. O que a inteligência artificial faz, e muito bem, é uma
simulação, e com capacidades extraordinárias, muito superiores àquelas que
temos. A capacidade de inteligência no sentido mais directo e algorítmico que
temos hoje em dia em matéria de memória, de estratégias de raciocínio é
extraordinária. Faltam é essas outras qualidades que temos na nossa
inteligência e que são absolutamente necessárias e extremamente realistas,
porque têm a ver com aquilo que a vida é. Enquanto a vida concebida no sentido
da inteligência artificial não tem nada a ver com aquilo que a vida é. A vida é
outra coisa.
E o que é a vida?
É uma coisa venerável, confusa, efusiva. A grande arte dá-nos isso e a
grande literatura dá isso extraordinariamente. Quando não se inclui essa
componente de confusão, efusividade, aquilo que pode ser qualificável de bom ou
de mau, perde-se uma grande parte do que é a vida. Por isso, e para acrescentar
uma nota à sua pergunta anterior, os sentimentos como personagem são as
representações, aquilo que está na nossa experiência mental quando estamos a
viver uma vida real. E ao mesmo tempo uma forma de nos alertarem para aquilo
que está a correr bem ou mal no sentido mais amplo do termo: a vida dentro de
um organismo. Um organismo vivo, que tem bons momentos e maus momentos, que tem
todas as variações e flutuações que vêm do seu metabolismo e que, porque tem
mente e tem consciência – que é uma coisa que nós temos e as bactérias não –
vai poder ter acesso a esse relato daquilo que está a correr bem ou mal.
No livro, fala da consciência da
morte como definidor dessa humanidade, o sentimento de fim, que faz com que o
homem encare a dor de outra maneira. A consciência da finitude é, desse modo,
formadora não apenas de uma maneira de estar socialmente, como também criadora
de uma linguagem. Como é que se transpõe esse saber da morte, muito vezes
olhado como transcendência, para a ciência e muito concretamente para a
biologia?
Tem sido difícil tratar essa questão. Uma das grandes barreiras é que a
ciência, com a sua natural preocupação com a objectividade, teve enorme
dificuldade em aceitar coisas que parecem extremamente subjectivas e confusas,
com muitas variações, que é difícil de agarrar no sentido mais objectivo do
termo. O facto de que os sentimentos são naturalmente subjectivos.
Isso tem sido matéria dos seus livros.
Sim, ando há 20 anos a explicar que sentimentos não são emoções. Mas é
extraordinária a resistência. As coisas espantosas que dizem... falam de hearts and minds! Esperem um pouco: hearts and minds? O coração é a emoção, mas
querem mesmo dizer coração? E querem mesmo dizer mente sem coração? As
confusões são extraordinárias. Mas talvez o ponto mais importante é que as
emoções são públicas. Quando está contente e se ri, ou quando está triste,
quando está irritada tudo isso aparece na sua máscara. Aparece no rosto e no
corpo. Quando se sente irritada ou triste ou alegre isso aparece unicamente em
si. Você é a única pessoa que tem acesso a essa informação no sentido real. É
uma experiência privada. Você pode simular a representação pública, mas essa
distinção explica em grande parte porque é que as pessoas estão muito mais
confortáveis quando falam de emoção: porque é público, porque é observável,
enquanto os sentimentos têm de ser observáveis por dentro. Mas não estão de
forma alguma fora do campo da ciência. É possível a cada um de nós fazer as
observações, fazer o resumo dessas observações que é um campo científico e
filosófico a que se chama fenomenologia. Portanto, temos a possibilidade de
fazer as nossas próprias observações, partilhá-las com os outros, fazer
comparações e fazer descrições o mais completas possível. Não há qualquer
limitação do ponto de vista científico. Não há limitação da objectividade com
que se pode estudar a subjectividade. E é isso que as pessoas não compreendem.
Sintetizando, fala de sentimentos
e consciência, de emoções, de sensações.
Três coisas diferentes. Sensação é o que permite detectar a presença de um
estímulo – e que as bactérias e as plantas também têm – e que gera uma
resposta. Depois há certas respostas mais complexas. Em organismos simples, se
tocar na criatura ela retrai-se. É a mesma reacção que terá se alguém a
assustar, uma reacção emocional. Há reacções conservadas ao longo de biliões de
anos e que são emocionais, reacções de movimento. O centro da palavra emotion é motion.
Se alguém lhe perguntar a diferença entre emoção e sentimento agarre-se à
palavra motion; o movimento
está do lado das emoções e se está do lado das emoções está-se do lado daquilo
que é visível para os outros. Sensação, no seu básico, não tem nada a ver com a
emoção propriamente dita. A emoção é uma reposta complexa de movimento em
relação a um estímulo que foi sentido e depois há o sentimento, que é a
experiência mental daquilo que se passou no organismo quando houve sensação e
emoção. São três graus. Um é extremamente simples, outro já é mais complexo, em
que há uma resposta, e ainda um outro em que há o apreender consciente e mental
daquilo que foi a resposta e que se passou no organismo. São mundos diferentes.
Podemos dizer que estamos no campo da subjectividade. É isso que
o estimula do ponto de vista científico?
Sim, é extremamente importante. O que eu quero é dar objectividade científica àquilo que é uma coisa subjectiva, que é no fundo a definição da consciência. Grande parte do problema da consciência é o problema da subjectividade. É por isso, aliás, que é tão extraordinariamente difícil de perceber; é por isso que as pessoas têm enormes conflitos e desacordos sobre o que é a consciência. Cada vez mais estou absolutamente convencido que não é possível distinguir tecnicamente sentimento e consciência. O sentimento, muito possivelmente, foi o princípio da consciência do ponto de vista evolutivo. O sentimento com a sua natural subjectividade e tudo isso se estendeu a outras subjectividades: subjectividade do que está no exterior – eu tenho subjectividade em relação a si neste momento, mas também tenho subjectividade em relação ao meu interior. Por exemplo, sei neste momento que estou um bocado cansado, fiz uma viagem de 15 horas e estou fora da hora em que deveria estar. Tenho essa subjectividade. E tenho a subjectividade em relação a si, às paredes desta sala, ao que estou a ouvir atrás de mim. O que temos é uma grande possibilidade, muito rica, de juntar subjectividades dentro da nossa mente. A nossa mente é toda feita de subjectividades.
Esse é também o campo da arte.
Sim. E eu sou um apaixonado da literatura. A literatura é o modo mais rico, de
todos os que temos, de entrar dentro da subjectividade de outra pessoa e de nos
fazer perceber o que pode ser a outra pessoa, muito mais do que o cinema, do
que o teatro, porque a situação em que estamos a ler é... devemos estar
sozinhos e com um texto que podemos parar a qualquer altura. Pode ler um
parágrafo e parar e pensar e retomar e reler. Não pode fazer isso com um filme
a não ser que estrague tudo. Tecnicamente pode, mas ninguém vê um filme dessa
maneira. A parte da experiência de ver um filme é vê-lo na continuidade de um
determinado período de tempo.
Como cientista, a literatura pode
ser-lhe útil – pese a ambiguidade da palavra – neste estudo?
Absolutamente. Tudo é útil, umas coisas mais do que outras, mas a literatura é
extraordinariamente útil porque é uma entrada muito rica na mente, uma entrada
que utiliza a vida subjectiva, os sentimentos. É muito curioso, quando se olha
para as humanidades de uma forma geral, e para as artes vê-se como têm sido
laboratórios de estudos. As pessoas não se aperceberam ainda de que uma boa
parte do que se passa no mundo da grande arte é uma espécie de prefácio para o
estudo científico dos seres humanos. Quando não havia uma estrutura
laboratorial científica, as pessoas já estavam a...
Elaborar?
A elaborar. E a literatura tem sido um grande contributo. Quando me perguntam
qual é o maior cientista de sempre respondo: na minha área, é
Shakespeare.
Está lá tudo?
Praticamente tudo. Pelo menos esboçado. O que se tem é de desenvolver. Quer
sejam as peças históricas, as tragédias ou as comédias, a própria poesia.
Praticamente tudo aquilo que interessa, todos os grandes temas, estão lá. Entre
as milhares de coisas que gostaria de escrever – se calhar não terei tempo –,
seria fazer qualquer coisa com a neurociência ou a neurobiologia cognitiva
vistas através do Hamlet e do Otelo. O Hamlet é
praticamente suficiente. É tão rico e está tão cheio daquilo que conta... E
talvez meter o Falstaff pelo meio para ficar mais completo.[risos]
Um dos capítulos do livro é sobre a crise do actual, “a actual
condição humana”. Escreve: “Considerar os nossos dias como sendo os melhores de
sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos”. Esta “crise” também é
causa de uma certa resistência de parte de muitos cientistas em incluir as
humanidades nas suas investigações?
A resposta é que há essa resistência, mas não da parte de todos. Há também quem
adopte, quem veja o valor, o interesse, muitas vezes talvez porque na sua
própria vida pessoal percebem que é importante e acabam por ser seduzidos por
essas possibilidades. Se as pessoas trabalham em áreas muito microscópicas
daquilo que é a ciência, mesmo que seja ciência humana, é mais difícil fazer a
passagem directa. E não é uma coisa que se deva sequer criticar. É
perfeitamente compreensível. Mas certas pessoas da minha geração, e até de
algumas gerações a seguir, têm um enorme apreço pelas humanidades dentro da
ciência. Não se devem fazer generalizações, mas é verdade que tem havido uma
certa resistência e também alguma resistência militante. Em certas áreas,
quando pessoas das humanidades olham para o contributo da teoria da evolução ou
da genética... há tantos erros, tanta complicação, por exemplo a forma como
parte desses conhecimentos levou a teorias sobre os seres humanos, da eugenia
até aos extremos piores da exploração racista. Claro que há razões para as
pessoas terem tido durante algum tempo uma certa rejeição e depois muitas vezes
também têm o pavor do reducionismo. É um grande pavor também da parte das
humanidades e, portanto, rejeitam que a ciência possa trazer alguma coisa de
tão importante como aquilo que as humanidades têm trazido em matéria de
compreender o que são os seres humanos.
Neste livro levanta duas ou três
vezes esse problema...
Porque eu não tenho qualquer espécie de desejo de reduzir aquilo que são os
seres humanos no seu mais sublime à ciência abstracta. Pelo contrário. Aquilo
que acho, e cada vez acho mais e neste livro é a primeira vez que me apercebo,
é isto: quando se ligam sentimentos à cultura, por um lado, e sentimentos à
homeostasia e aos princípios da vida, o que estamos a fazer é a enriquecer a
ligação entre a cultura e a vida. Ao contrário de reduzir, estamos a aumentar,
a fazer com que esse fio seja mais visível.
A palavra homeostasia cruza todo
o livro. Ela é completamente definidora do que é o humano?
É completamente definidora do que é um ser vivo.O ser humano precisa de ter não
só os imperativos da homeostasia nos seus aspectos mais complexos, mas também
desenvolvimentos que vêm com a multicelularidade, o aparecimento dos
sistemas nervosos e depois o extraordinário desenvolvimento da capacidade dos
sentimentos, consciência de mente com imagens...
Sobre a capacidade de criar
imagens, escreve que “todas as imagens do mundo exterior são processadas de
forma paralela às reações afectivas... ", e depois apela a um exercício:
“pensemos na maravilha alcançada pelo nosso cérebro ao lidar com imagens de
tantas variedades sensoriais, de origem externa e interna, ao ser capaz de as
transformar nos filmes da nossa mente. Em comparação, a montagem de um filme é
uma simples brincadeira.”
Exacto. Mas faço essencialmente uma abordagem crítica. Quando no início de tudo
me falou da genealogia deste livro, há vários temas que venho a tratar há
muitos anos, mas que agora me parecem, alguns, perfeitamente claros, e em que
também tenho a coragem de dizer exactamente aquilo que penso sem estar com
rodeios por poder ofender alguém que achasse que era pateta e novo de mais para
estar a dizer coisas. Agora já posso dizer tudo o que me apetece.
Pode-se dizer que os sentimentos
são fundadores da ciência?
Possivelmente são. São pelo menos motivadores. Neste livro há três papéis que
dou aos sentimentos, ou ao afecto em geral. Primeiro, motivadores, depois
monitores e depois negociadores. Os sentimentos intervêm nesses três pontos.
São coisas diferentes. Uma é motivar, outra é a monitorização e a outra é a
negociação de quando as coisas correm mal ou bem de mais. Há constantemente
ajustes. Há pessoas que perante dois advogados a discutirem um contrato ou dois
políticos a discutirem um tratado são capazes de pensar que isso está a
acontecer num plano puramente intelectual; não está. Acontece num plano
intelectual e acontece com toda a miríade de alterações que têm a ver com a
forma como uma das pessoas apresenta o argumento e como a outra o recebe. Tudo isso
é uma negociação que está a ser feita não só num plano de conhecimento e razão,
coisas que se podem dizer objectivas e frias, mas também nesse outro plano que
tem a ver com a forma como a negociação está a correr do ponto de vista
afectivo. Essa é a realidade. Tem o exemplo espectacular do que se tem estado a
passar nestes últimos dois anos com movimentos de populismo, de racismo em toda
a parte. Muitas vezes, a forma como esses problemas são apresentados gera
reacções de zanga e protesto puramente emocionais. Uma das coisas
extraordinariamente curiosas é que quando as pessoas falam de emoções falam
quase sempre do ponto de vista negativo das emoções. Muitas vezes acham que há
o lado objectivo, o do bom raciocínio, e depois as emoções, más, que tornam as
coisas irracionais. É um disparate completo, porque é limitar o âmbito das
emoções ao negativo. Há emoções muito positivas; ter compaixão, gratidão,
desejo de ajudar, cooperar. O amor! o desejo pelo amante, o amor pela criança
que se está a criar.
É desse preconceito que vem a distinção entre inteligência e
inteligência emocional?
Sim. As emoções muitas vezes ajudam a tomar a decisão e muitas vezes trazem o
conhecimento, o discernimento, o destilar de uma série de conhecimentos que
temos, uma vez que foram aplicados e qualificados. A intuição é uma maneira de
fazer linha recta para a solução do problema sem andar por todas as fases
intermédias. Essa intuição vem de uma forma emocional. Tudo isto tem imensa
graça. As pessoas que descobriram o big data falam
de como um grupo de computadores pode ler uma enorme quantidade de dados e
tirar uma conclusão extremamente nova, verificando que aquilo é o que se deve
fazer. Mas isso que o computador está a fazer é aquilo que a intuição humana
faz há milhões de anos. O nosso cérebro é um big data system que
tem imenso conhecimento do que é a nossa vida interior fisiológica e sobre o
que é, e tem sido, a nossa vida em geral. E esse big data system está
constantemente a dar-nos um dado institucional que é extremamente importante
para a nossa vida. Tudo isso vem do lado das emoções e faz parte do que se
poderia chamar inteligência emocional. Não uso o nome porque não acho que haja
uma inteligência emocional e uma não emocional. Há inteligência.
Começa o capítulo dedicado à
crise actual dizendo que nunca tivemos tanta informação nem tanta possibilidade de sermos felizes, mas... E critica os media públicos
e o seu modelo lucrativo de negócio, reduzindo a qualidade de informação;
questiona o valor de entretenimento aplicado à história jornalística e afirma:
"Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão
desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de
poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar
na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de reflectir sobre
aquilo que somos ou podemos vir a ser. Ao que parece não há tempo a perder com
a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, ser.” Que cultura é esta que
parece rejeitar a criação de pensamento e se fica pela emoção?
Historicamente, quando se vê o que tem sido a marcha dos seres vivos, há coisas
que são previsíveis e outras que não são. E depois há certas coisas que
acontecem, em que as pessoas não apreendem nem prevêem as consequências. O que
se está a passar, por exemplo com a Internet e as redes sociais, é uma entrada
extremamente larga dentro das mentes. É uma coisa que entra dentro de nós e que
tem o poder de modificar a forma como pensamos e nos comportamos.
A sociabilização.
Exacto. Há uma entrada dentro do que somos do ponto de vista mental a um nível
completamente diferente de outras tecnologias. Não é tão somente um
telefone. É o telefone e a possibilidade de entrar num mundo de conhecimento de
forma imediata. Ter essa informação toda é extraordinário mas o que temos de
pensar é o que acontece com as pessoas que só têm vivido com isso e não tiveram
a possibilidade de se desenvolver com mais distância em relação ao que se está
a passar nessa rapidez de tecnologia. Há também o problema do que vai
acontecer quando as pessoas ficarem sem tempo para reflectir sobre o que estão
a viver. Vão ter a possibilidade de ter tudo muito rapidamente, a quantidade de
informação é enorme e a maneira de resolver os conflitos tem de ser diferente.
E vai ser mais complicada porque não há tempo para o discernimento. É possível
fazer o contra-argumento: é o problema que temos por sermos de uma geração
anterior e não termos crescido com isso, e os cérebros das pessoas que já
cresceram com isso estão adaptados. Isso é verdade em parte, mas não quer dizer
que essas novas pessoas que cresceram dessa maneira não tenham ao mesmo tempo
reduzido a sua possibilidade de olhar para o mundo de uma forma mais calma e
mais completa e reflectida. É um problema em aberto, que tem de ser estudado, e
não o tem sido porque tudo está a acontecer agora.
Usa as expressões “bancarrota
espiritual” e “bancarrota moral” para classificar o que está a acontecer.
E poderia juntar aqui a trigger warning, que
está ligada a tudo isso. Por exemplo, numa aula pode haver uma discussão sobre
violência ou sobre sexo e um aluno levanta a mão a dizer trigger warning, i dont feel safe anymore. É uma
concepção da vida como se a pessoa pudesse viver protegida de tudo o que não é
conveniente e, ao mesmo tempo, ficar sem a possibilidade de perceber o que se
está a passar e de se defender inteligentemente. O presidente actual da
Universidade de Chicago tem escrito sobre isso e diz que eles rejeitam isso ao
abrigo do trigger warning e
isso é uma remoção da educação e nós, como universidade, não vamos deixar que
os nossos estudantes sejam amputados e fiquem sem a possibilidade de responder
inteligentemente às ameaças. Tudo isto são problemas para serem estudados. É
relativamente fácil olhar para a situação e reconhecer que o progresso é
extraordinário, as possibilidades são magníficas e ao mesmo tempo também temos de
reconhecer que precisam de ser estudadas para ver se podem correr melhor. As
razões pelas quais as coisas não correm bem serão imensas mas há
possibilidades. A questão que referia há pouco, do ser, é tão importante e
parte do pressuposto de se conseguir estar consigo próprio e observar a
maravilha da existência sem preocupações com aquilo que vem antes ou depois. É
uma capacidade unicamente humana.
Estamos há muito tempo a
conversar e pergunto-lhe o que é que isto tudo tem a ver com biologia?
Há biologia em variadíssimas áreas. A biologia no que diz respeito à nossa
violência ancestral. Somos primatas, a nossa herança é a de animais... e
trazemos a autodestruição connosco. Falo de Freud e da ideia de
auto-destruição. Ele chama a atenção para uma coisa que é muito real e
que as pessoas muitas vezes querem esquecer: a ideia de que somos capazes de
violência. E há uma ideia que é consequente a essa e tem a ver com a educação,
com o facto de que a única maneira de resolver o problema da nossa violência natural
e de como naturalmente as pessoas querem estar com aqueles que são parecidos e
não com os diferentes. Tem de haver um plano de educação extraordinário, uma
espécie de super-plano de investimento global que não tem sido feito por razões
que são também históricas e sociopolíticas.
O mundo
é dividido, depois há uma crise económica, uma crise política que leva a
migrações, essas migrações trazem dificuldades e há reacções contra e não há
possibilidade de coordenar globalmente um plano educacional. Para mim não é uma
ideia mítica, acho possível. Não é possível só com as Nações Unidas. Tem sido
possível em certos períodos. Os Estados Unidos, com todos os seus problemas,
tiveram uma acção extraordinária no pós-guerra. Há um período que não é de paz
completa, em que houve um investimento em reconstruir países e permitir que
houvesse um alargamento da educação e da maneira de compreender outros que são
diferentes. É uma grande projecto que, em parte, funcionou, tem funcionado, mas
que neste momento está a ser ameaçado.
Já viveu no Iowa, em Chicago,
agora vive em Los Angeles. Da sua experiência pessoal, as diferenças
acentuaram-se entre esses três mundos geográficos. Há um país muito dividido.
Um centro que se sente esquecido e as margens liberais.
Há muitas semelhanças com as experiências europeias. Nos EUA é uma coisa mais
orgânica. Sempre tiveram enormes divisões geográficas. Há uma narrativa
histórica que conseguiu compensar e impor um bom funcionamento em conjunto à
volta de certos mitos e neste momento há uma fragilidade das relações, há
fenómenos económicos extraordinariamente importantes e há uma evolução de
tempos diferentes em diversas comunidades. Mas veja a Europa, encontra
exactamente os mesmos problemas – que na Europa são muito velhos e um pouco
esquecidos. Isso está dentro do que são os seres humanos; os seres humanos a
criarem um grupo, uma história com determinados hábitos, determinadas
preferências e a forma como aceitam, ou não, que isso possa ser
suplantando.
A entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
URL: https://www.publico.pt/2017/11/05/ciencia/entrevista/antonio-damasio-1791116
***
NEUROCIÊNCIAS
Sem educação, os homens “vão matar-se uns aos outros”, diz António Damásio
Neurocientista lança novo livro em Portugal.
PÚBLICO - LUSA, 2017-10-31
O neurocientista António Damásio advertiu que “se não houver educação maciça, os seres humanos vão matar-se uns aos outros”. O neurocientista português falava no lançamento do seu novo livro A Estranha Ordem das Coisas, que decorreu esta terça-feira em Lisboa, na Escola Secundária António Damásio, e defendeu perante um auditório cheio que é preciso educarmo-nos para contrariar os nossos instintos mais básicos, que nos impelem a pensar primeiro na nossa sobrevivência.
“O que eu quero é proteger-me a mim, aos meus e à minha família. E os outros que se tramem. [...] É preciso suplantar uma biologia muito forte”, disse o neurocientista, associando este comportamento a situações como as que têm levado a um discurso anti-imigração e à ascensão de partidos neonazis de nacionalismo xenófobo, como os casos recentes da Alemanha e da Áustria. Para António Damásio, a forma de combater estes fenómenos “é educar maciçamente as pessoas para que aceitem os outros”.
A Escola Secundária António Damásio foi o sítio escolhido pelo neurocientista português para lançar em Portugal a sua nova obra, que volta a falar da importância dos sentimentos, como a dor, o sofrimento ou o prazer antecipado.
“Este livro é uma continuação de O Erro de Descartes, 22 anos mais tarde. Em ‘O Erro de Descartes’ havia uma série de direcções que apontavam para este novo livro, mas não tinha dados para o suportar”, explicou António Damásio, referindo-se ao famoso livro que, nos finais da década de 90, veio demonstrar como a ausência de emoções pode prejudicar a racionalidade.
O autor referiu que aquilo que fomos sentindo ao longo de séculos fez de nós o que somos hoje, ou seja, os sentimentos definiram a nossa cultura. António Damásio disse que o que distingue os seres humanos dos restantes animais é a cultura: “Depois da linguagem verbal, há qualquer coisa muito maior que é a grande epopeia cultural que estamos a construir há cem mil anos.”
O neurocientista acredita que o sentimento – que trata como “o elefante que está no meio da sala e de quem ninguém fala” – tem um papel único no aparecimento das culturas. “Os grande motivadores das culturas actuais foram as condições que levaram à dor e ao sofrimento, que levaram as pessoas a ter que fazer alguma coisa que cancelasse a dor e o sofrimento”, acrescentou António Damásio.
“Os sentimentos, aquilo que sentimos, são o resultado de ver uma pessoa que se ama, ou ouvir uma peça musical ou ter um magnífico repasto num restaurante. Todas essas coisas nos provocam emoções e sentimentos. Essa vida emocional e sentimental que temos como pano de fundo da nossa vida são as provocadoras da nossa cultura.”
No novo livro o autor desce ao nível da célula para explicar que até os microrganismos mais básicos se organizam para sobreviverem. Perante uma plateia com centenas de alunos, o investigador lembrou que as bactérias não têm sistema nervoso nem mente mas “sabem que uma outra bactéria é prima, irmã ou que não faz parte da família”.
Perante uma ameaça, como um antibiótico, “as bactérias têm de trabalhar solidariamente”, explicou, acrescentando que, se a maioria das bactérias trabalha em prol do mesmo fim, também há bactérias que não trabalham. “Quando as bactérias (trabalhadoras) se apercebem que há bactérias vira-casaca, viram-lhes as costas”, concluiu o neurocientista, sublinhando que estas reacções são ao nível de algo que possui “uma só célula, não tem mente e não tem uma intenção”, ou seja, “nada disto tem a ver com consciência”.
E é perante esta evidência que o investigador conclui que “há uma colecção de comportamentos – de conflito ou de cooperação – que é a base fundamental e estrutural de vida”.
Durante o lançamento do livro, o investigador usou o exemplo da Catalunha para criticar quem defende que o problema é uma abordagem emocional e não racional: “O problema é ter mais emoções negativas do que positivas, não é ter emoções.”
Fonte: https://www.publico.pt/2017/10/31/ciencia/noticia/sem-educacao-os-homens-vao-matarse-uns-aos-outros-diz-antonio-damasio-1791034
Sem comentários:
Enviar um comentário