terça-feira, 25 de junho de 2019

Calafonas e Calafões

Monumento ao Emigrante Açoriano, Ponta Delgada



À CONVERSA COM JOÃO DE MELO

Vemos as casas os carros os fatos os vestidos
sabemos o suor a fábrica a máquina a vaca
adivinhamos o sentido da vida os sentidos
de uma saudade que bate e às vezes mata

Ouvimos a palavra perdida como nova
provamos-lhe o sabor trazido na bagagem
olhamos corpos rostos nossos - são a prova
de uma viagem sem fim ao fim da viagem

Calafona será vocábulo desprezível
para gente de tanta lágrima mas feliz
é porém o erro a palavra incorrigível
para gente e lágrimas como a gente diz

Vasco Pereira da Costa, Ilhíada antes e depois (poesia 1972-2012)
Vila Nova de Gaia, Calendário das Letras, setembro 2012
ISBN: 978-972-8985-63-9






CALAFONAS - De regresso à ilha, todos quantos os tinham emigrado para os EUA eram conhecidos pela forma jocosa de calafonas, numa alusão estropiada aos habitantes da Califórnia. Nesse estado norte-americano, as colónias de açorianos eram muito importantes, estando ligadas à pesca e à criação animal. Porém, a maior parte dos emigrantes micaelenses privilegiava a costa Leste, onde se integravam na estrutura industrial existente. Tendo emigrado numa altura em que os ricos escasseavam, a chegada ao novo mundo abriu-lhes consumos desconhecidos e insuspeitados na sua terra. De regresso à ilha, gostavam de mostrar as novas aquisições e, sobretudo, passear-se com as novidades «ainda» ausentes na ilha. O guarda-roupa, inusitado, causava estranheza pelo colorido e, por isso, todos quantos nas ilhas adotavam comportamentos e atitudes diferentes, porque ainda desconhecidas, passaram a ser «calafonas».

“Calafonas”, in Dicionário sentimental da ilha de São Miguel de A a Z, 
Fátima Sequeira Dias, Ponta Delgada, Publiçor, janeiro 2011 (1ª edição)


 

Calafão é regionalismo açoriano, significa «aquele que retorna ao arquipélago».
O que o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista é a forma calafona, que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa inclui, atribuindo-lhe origem obscura. Mas é o próprio Machado (op. cit.) que dá a pista: a par de calafona, existe califonho califórnio, o que indica que estes termos se devem relacionar com CalifórniaCalafão e calafona serão afinal variantes da adaptação portuguesa da pronúncia americana de Califórnia.






São conhecidos por calafões ou calafonas (emigrantes da Califórnia ou de qualquer outra parte da América). Durante as férias exibem os sinais de riqueza, avivando deste modo o desejo de emigrar entre os que nunca o fizeram, criando um efeito de mimetismo. Aliás, a caminho de Santa Maria, quando o avião se aprestava para aterrar e aos passageiros era pedido que apertassem os cintos de segurança, observei como um calafona retirava, apressadamente, de uma caixa, que o marido nervosamente segurava nas mãos, vários cordões de ouro, que, apressadamente, enrolou ao pescoço, e grossos anéis, que, com precipitação, distribuiu pelos dedos. Só depois, enfim, instigada pela hospedeira de bordo, se preocupou em apertar o cinto de segurança. Calafões ou calafonas induzem um fenómeno importante na dinâmica de prestígio e das relações sociais da ilha. Em Vila do Porto é ostensiva a forma como se passeiam, denotando todo o seu porte conspícuo — as passadas largas e lentas, a barriga avultada, os bonés americanos, as pernas bronzeadas que o uso de curtos calções deixa a descoberto —, signos de quem «venceu na vida».

 

José Machado Pais, “Aventuras, desventuras e amores na ilha de Santa Maria dos Açores”, in Análise Social, vol. XXVIII (l23-l24),1993 3 (4.0-5.0), 1011-10



***

A procura de melhores condições de vida, a guerra colonial e provavelmente o espírito de aventura, levaram muitos dos porto formosenses a rumar principalmente aos Estados Unidos e Canadá, deixando para trás uma aldeia cada vez mais despovoada.

No início, o contraste entre o emigrante que voltava a Porto Formoso em férias e os que lá tinham ficado era muito expressivo, mas a progressiva melhoria de condições de vida na ilha, e os processos de globalização e homogeneização de hábitos têm vindo a atenuar as diferenças ao ponto de haver agora habitantes que afirmam existir um contraste no sentido inverso. Vejam-se alguns testemunhos deixados no blogue “A casa da Mosca50

Quando perguntamos aos emigrantes que nos visitam o que é que eles acham do Porto Formoso, normalmente as opiniões são unânimes: "Esta terra esta muito melhor", "Vocês já tem tudo ca", "Já estão como na América...", "Já não precisamos de mandar roupa e chinchelarias nas barricas" (Cavalete51 | 8/3/06 16:06)

Antigamente quando um "calafão" vinha das Américas notávamos nele uma evolução que ainda faltara em nós cá. Hoje o caso inverte-se, somos nós que apresentamos uma nítida evolução quer na informação, no vestuário, no tipo de conversa etc. A internet e consequente globalização reflete-se mais em nós de cá do que os de lá que um dia nasceram cá. gnussen52 | 9/3/06 06:54

 

Amaya Sumpsi Langreo, Apanhados na rede. Considerações acerca das noções de progresso e modernidade na comunidade piscatória de Porto Formoso. Lisboa, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, 2012

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50 Nalguns casos, foi possível aceder a informação sobre os usuários do blogue, por estes usarem o seu nome como nickname, ou por assumirem publicamente a sua identidade por trás da alcunha. Em qualquer caso, e dado a natureza do blogue, nestes casos opta-se por indicar apenas a informação básica e relevante para esta tese, omitindo a identidade. O mesmo não acontece nos testemunhos recolhidos e filmados diretamente por mim, pois nestes casos as pessoas não tiveram nenhum problema em assumir a identidade no filme e no trabalho (sendo este um requisito indispensável para serem filmados).

51 Homem de 36 anos natural de Porto Formoso. Viveu lá até se casar, e atualmente reside em Ponta Delgada, onde trabalha como professor universitário.

52 Jovem de 31 anos, natural de Porto Formoso e amigo de infância do Bruno Raposo (Regedor), é aficionado à leitura e escreve poesia desde jovem.

 




CEMETERY, Alfred Lewis

In “Cemetery”, Alfred Lewis recollects a childhood experience when he and a group of boys were returning from Sunday school and happened to pass by lhe village graveyard. At the time, the undertaker was busy digging a new grave. The boys, however, simply stood there

in awe as he disappeared
Into his own crevass
Until the sound of rotten planks reached us
And up came the awful shower
—Tibias , ribs, an empty skull—
Tainted by the smell ofmoths.

"Time to remove old Calafona,”
Our friend, the digger said, heaxvy with thoughts.
Seven years dead; came back with sacks
Of gold, bought a cow and fed the village.
A vow to Our Lady. Laughed, winked at the girls,
Grew fat and died one day.
That's the way it is, when you're old." (52—53)

“Calafona" is the name Azoreans traditionally ascribe to the Portuguese immigrants who settled in California. This particular “Calafona" embodies the mentality of most senior-citizen immigrants, especially in their desire to return to their native country to die after having secured a sound financial position for themselves and their children. In addition, this poem indirectly touches upon a recurrent theme in Lewis's poetry and fiction, namely his realization that America “devours" these immigrants' vigour and youth. When thcy return to the Azores after a life of toil in America, they are not more than food for worms. T his is the price one must pay when emigrating. But while America kept this “Calafona's" youth, he earned a decent livelihood there, whereas ifhe had remamed in the Azores, he would have struggled to survive. While the boys do not grasp this message, as a mature man remmiscing about this episode in this poem, Lewis reflects on the opportunities America offered him and his countrymen.

Reinaldo Francisco Silva, “Alfred Lewis as a Writer of Transition”
 in Portuguese American Literature, Penrith: Humanities - Ebooks.co.uk, 2010.



CALAFONAS

Se sou calafona
pois assim o quero
ou shoa que ir à ilha
é bom p'ra um gud time
mas ver Tê-Vê
não há melhor como cá
I mean, you não!
as coisas lá são okay
mas só para visitar
dou-me bem com os
calafonas portuguêses
dos meus velhos lugares
agora sou migrante
nesta nova nação
daqui é que já ninguém me tira
e as dólas
é a minha nova moeda
é o meu melhor pão.

Arnaldo Dias Baptista, Raízes, EUA, Xlibris Corporation, 2010
ISBN Ebook 978-1-4771-6253-8


   Poderá também gostar de:



Mário Moura, “Portugees there, Calafonas here”, Associação dos Emigrantes Açorianos e Câmara Municipal da Ribeira Grande, [2015?]. Disponível em: https://slideplayer.com/slide/4285801/#.XRKadGNMRFR.google




“Calafões e Calafonas” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-06-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/06/calafonas.html


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