José
Fanha nasceu em Lisboa e licenciou-se em arquitetura. Porém, é muito mais
conhecido como inspirado poeta e declamador, animador cultural por excelência,
criativo por vocação, interventivo até dizer basta. É autor de contos e de
poesias para crianças, dramaturgo e ator. Foi professor do ensino secundário, é
mestre em Educação e Leitura e doutorando na área da História da Educação e da
Cultura Escrita.
Tendo
como modelo e inspiração o Manifesto Anti-Dantas, célebre texto de
Almada Negreiros onde, pela mordaz ironia, este zurze o academismo e o
tradicionalismo instalados, sobretudo na pessoa e na obra do escritor Júlio
Dantas, José Fanha construiu o Manifesto Anti-Leitura, igualmente corrosivo
e irreverente, sobretudo nestes tempos em que a crise serve de desculpa para
oficialmente a cultura ser posta em causa.
Este
texto foi publicamente apresentado sob o patrocínio da Rede de Bibliotecas
Municipais de Lisboa, durante a II Arruada da Leitura, que teve lugar no dia 21
de abril de 2012. Na tarde desse dia, ao fundo da Rua do Carmo, em Lisboa, o ator
Manuel Coelho, do Teatro Nacional D. Maria II, declamou o Manifesto
Anti-Leitura.
Pelo seu
óbvio interesse e oportunidade, e com a justa e devida vénia para com o seu
autor, aqui se partilha esta magnífica criação de José Fanha.
ABAIXO A LEITURA, PIM!
Andam por aí elementos suspeitos que se escondem nas sombras das bibliotecas e chegam a ir às escolas para espalhar um vício terrível e abominável especialmente junto dos mais novos! Dos mais tenros! Dos mais ingénuos! Um vício que se chama
LEITURA!
Os passadores dessa droga dura, os dealers da leitura transformam simples cidadãos em leitores! Em mortos vivos! Em gente que entrega a sua vida aos livros, às histórias, aos romances, aos poemas, gente que se esquece de tudo o mais!
Abaixo a leitura, pim! Abaixo os leitores, pum!
O leitor é um doente!
O leitor é um viciado!
O leitor se esquece de tudo mais só para ler!
Cuidado com eles! Porque o pior de tudo é que a leitura pega-se! Cuidado com os leitores! Afastai-os de vós! Protegei os vossos filhos!
Andam por aí elementos suspeitos que se escondem nas sombras das bibliotecas e chegam a ir às escolas para espalhar um vício terrível e abominável especialmente junto dos mais novos! Dos mais tenros! Dos mais ingénuos! Um vício que se chama
LEITURA!
Os passadores dessa droga dura, os dealers da leitura transformam simples cidadãos em leitores! Em mortos vivos! Em gente que entrega a sua vida aos livros, às histórias, aos romances, aos poemas, gente que se esquece de tudo o mais!
Abaixo a leitura, pim! Abaixo os leitores, pum!
O leitor é um doente!
O leitor é um viciado!
O leitor se esquece de tudo mais só para ler!
Cuidado com eles! Porque o pior de tudo é que a leitura pega-se! Cuidado com os leitores! Afastai-os de vós! Protegei os vossos filhos!
Morra a leitura, morra! EPim!
Uma geração que lê é uma
geração que pensa!
Uma geração que lê é uma geração que duvida!
Uma geração que lê é uma geração que questiona!
Uma geração que lê é uma geração que critica!
Uma geração que pensa e duvida e questiona e critica não engole qualquer patranha que lhe queiram enfiar! Não obedece! Não se baixa! Não se cala! Uma geração que lê e pensa é um perigo para a civilização ocidental e para o país!
Uma geração que lê é uma geração que duvida!
Uma geração que lê é uma geração que questiona!
Uma geração que lê é uma geração que critica!
Uma geração que pensa e duvida e questiona e critica não engole qualquer patranha que lhe queiram enfiar! Não obedece! Não se baixa! Não se cala! Uma geração que lê e pensa é um perigo para a civilização ocidental e para o país!
Abaixo os leitores! Morra a
literatura! Morra! Pum!
Esta gentinha põe-se a ler em
vez de trabalhar, de verter o seu suor a bem da nação, de aceitar paciente e
responsavelmente que lhe retirem a assistência médica, o subsídio de doença, a
reforma, o teatro, a música! As cuecas, se for preciso!
Esta gentinha que lê perde-se a interrogar as medidas necessárias e urgentes para o bem do mercado, dos bancos, dos acionistas que são quem faz andar o país!
Quem lê ainda por cima diverte-se! Entretém-se!
A ler, os leitores viajam! E aprendem! E refletem! E riem! Choram! E sonham!
Esta gentinha que lê perde-se a interrogar as medidas necessárias e urgentes para o bem do mercado, dos bancos, dos acionistas que são quem faz andar o país!
Quem lê ainda por cima diverte-se! Entretém-se!
A ler, os leitores viajam! E aprendem! E refletem! E riem! Choram! E sonham!
Morra a leitura, pim! Pam! Pum!
A leitura faz conhecer
personagens imorais como o débil Carlos da Maia e a desavergonhada Eduarda da
Maia,
e bruxas repelentes como a Dama de Pé de Cabra do Alexandre Herculano ou a Blimunda do “Memorial do Convento”
Seres inúteis e irreais como o Gato Zorbas da “Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”.
Criaturas atrevidas, desobedientes e revolucionárias como o João-Sem-Medo, o Pinóquio, o Tom Sawyer, o Oliver Twist!
e bruxas repelentes como a Dama de Pé de Cabra do Alexandre Herculano ou a Blimunda do “Memorial do Convento”
Seres inúteis e irreais como o Gato Zorbas da “Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”.
Criaturas atrevidas, desobedientes e revolucionárias como o João-Sem-Medo, o Pinóquio, o Tom Sawyer, o Oliver Twist!
E loucos como o cigano
Melquíades e o coronel Buendía dos “Cem anos de Solidão”.
A leitura faz-nos viajar por
lugares mal frequentados como a Ilha do Tesouro, o Beco das Sardinheiras do
Mário de Carvalho, os Mares do “Mobby Dick”, a Buenos Aires de Borges, a Paris
de Marcel Proust, a Londres de Oscar Wilde, a Moscovo de Tolstoi!
A leitura faz-nos rir de
pessoas sérias como o Conde de Abranhos, o Sancho Pança ou o Escriturário
Barthleby.
Já para não falar dos autores,
meu Deus! Esses seres abjetos! Os escritores que escrevem livros e livros sem
um pingo de vergonha! Deviam ser presos! Encerrados num jardim zoológico!
Condenados aos trabalhos forçados! À morte! À cadeira elétrica!
Camões, por exemplo, era um
marginal que andava sempre à espadeirada. E se fosse só isso, ainda podíamos
perdoar. A luta, a pancadaria, a guerra não são reprováveis. Podem até ter uma
função muito positiva na nossa sociedade!
Mas esse tal Camões escrevia entre espadeiradas!!! Escrevia estrofes e mais estrofes! Sonetos que enchem livros e que continuam a gastar papel que podia ser poupado para fazer pacotes de castanhas ou relatórios anuais da administração das empresas.
E o Bocage? Dizia impropérios! Palavrões! E até na poesia deixava a marca da sua pouca vergonha! Se escrevesse pornografia nós aceitávamos esses palavrões! Tinham uma função social! Mas poesia…!
E não esqueçamos essa histérica e louca Florbela Espanca, essa desavergonhada, essa grande doida, que queria amar! Deixai-nos rir! Se amasse o seu marido uma vez por semana cumpria a sua obrigação! Se fosse amante do chefe lá do escritório, estava a contribuir para uma gestão equilibrada do produto interno bruto! Mas não! Ela vertia nos versos o seu desejo de amar este, aquele, e mais o outro!
E lembremos Álvaro de Campos que é uma invenção torpe, um sujeito que nunca existiu de facto! Puro delírio! Personagem frágil e contraditória! E Ricardo Reis que também não existia! Nem Alberto Caeiro! Nem Bernardo Soares!
O Sr. Fernando Pessoa que escrevia cartas de amor devia ter tido vergonha e dedicar-se à sua profissão pobre mas honrada de escriturário! E de muitos mais escritores poderíamos falar! Gente horrível, que só gosta de mexer na miséria e na lama, gente carregada de maldade que nos fala da Queda dos Anjos e de Amores de Perdição, de Barrancos de Cegos, de Lobos que Uivam, de Versículos Satânicos!
E até quando escrevem sobre gente feliz, tem de ser gente feliz com lágrimas!
Mas esse tal Camões escrevia entre espadeiradas!!! Escrevia estrofes e mais estrofes! Sonetos que enchem livros e que continuam a gastar papel que podia ser poupado para fazer pacotes de castanhas ou relatórios anuais da administração das empresas.
E o Bocage? Dizia impropérios! Palavrões! E até na poesia deixava a marca da sua pouca vergonha! Se escrevesse pornografia nós aceitávamos esses palavrões! Tinham uma função social! Mas poesia…!
E não esqueçamos essa histérica e louca Florbela Espanca, essa desavergonhada, essa grande doida, que queria amar! Deixai-nos rir! Se amasse o seu marido uma vez por semana cumpria a sua obrigação! Se fosse amante do chefe lá do escritório, estava a contribuir para uma gestão equilibrada do produto interno bruto! Mas não! Ela vertia nos versos o seu desejo de amar este, aquele, e mais o outro!
E lembremos Álvaro de Campos que é uma invenção torpe, um sujeito que nunca existiu de facto! Puro delírio! Personagem frágil e contraditória! E Ricardo Reis que também não existia! Nem Alberto Caeiro! Nem Bernardo Soares!
O Sr. Fernando Pessoa que escrevia cartas de amor devia ter tido vergonha e dedicar-se à sua profissão pobre mas honrada de escriturário! E de muitos mais escritores poderíamos falar! Gente horrível, que só gosta de mexer na miséria e na lama, gente carregada de maldade que nos fala da Queda dos Anjos e de Amores de Perdição, de Barrancos de Cegos, de Lobos que Uivam, de Versículos Satânicos!
E até quando escrevem sobre gente feliz, tem de ser gente feliz com lágrimas!
E há quem os leia! Quem sofra
com eles! Quem os desfolhe carinhosamente sem saber que o veneno entra pelos
olhos que leem e pelos dedos que folheiam! E depois da leitura de uma página,
por vezes depois da leitura de um só parágrafo já não há remédio! Eles já são
leitores! Estão apanhados irremediavelmente pelo canto de sereia da leitura! A
possibilidade de salvação é extremamente diminuta!
Os livros deviam ser reciclados e transformados em lenços de papel! Em solas de sapatos! Em bolas de futebol! Mas livrai-vos de os ler! Ou melhor! Queimem-nos! Lembrem-se daqueles que ao longo da história tentaram salvar-nos queimando pilhas e pilhas de livros!
Os livros deviam ser reciclados e transformados em lenços de papel! Em solas de sapatos! Em bolas de futebol! Mas livrai-vos de os ler! Ou melhor! Queimem-nos! Lembrem-se daqueles que ao longo da história tentaram salvar-nos queimando pilhas e pilhas de livros!
Abaixo os livros! Morra a
leitura! Morra, E pim!
Os livros fazem-nos afastar da
realidade, da economia! Do mercado! Do futuro!
Uma ponte é feita com ferro e cimento e não com livros!
No tribunal, o advogado não defende um criminoso com poesia!
Na sala de operações o cirurgião não abre os órgãos de um doente com um romance!
Ninguém se deixa corromper por um soneto!
Uma ponte é feita com ferro e cimento e não com livros!
No tribunal, o advogado não defende um criminoso com poesia!
Na sala de operações o cirurgião não abre os órgãos de um doente com um romance!
Ninguém se deixa corromper por um soneto!
Abaixo a prosa! E a poesia! E o
ensaio!
Morra a leitura, morra! E Pim!
E temos de falar das
bibliotecas, essas casas sombrias onde o vício é permitido! Pais! Protegei os
vossos filhos! As bibliotecas são autênticas salas de chuto de porta aberta ao
público! E estão carregadas e alto abaixo de livros! E os livros estão à vista!
Pior ainda, os livros estão à mão de qualquer criança ingénua! E alguns até têm
ilustrações, bonecos que tornam a leitura mais fácil e a perdição mais próxima!
E o pior é que podem ser requisitados e levados para a casa, para o seio da
família onde vão espalhar a sua ação desagregadora e malfazeja!
Morra a leitura! Abaixo as
bibliotecas! Pum!
Mas há esperanças para o futuro!
Por alguma razão muitos dos
nossos melhores e mais impolutos dirigentes só leem resumos! Ou extratos da
conta bancária! Quanto ao resto, nada! Nem uma palavra! Nem uma linha!
E quando lhes perguntam o que andam a ler, muito perspicazmente, eles inventam títulos de livros que não existem para lançar o engano e, quiçá, salvar alguém dos terríveis vícios da leitura!
E quando lhes perguntam o que andam a ler, muito perspicazmente, eles inventam títulos de livros que não existem para lançar o engano e, quiçá, salvar alguém dos terríveis vícios da leitura!
Sigamos o exemplo que muitos
dos nossos dirigentes e gerentes e gestores nos apontam! Há que ter a coragem
de dizer bem alto:
A leitura prejudica
gravemente a ignorância!
E sem ignorância o país não
progride! Não crescem os juros! Não se investe nas offshores! O estado não
vende empresas abaixo do preço aos particulares! O preço da gasolina não sobe!
Acabemos de vez com a leitura!
Abaixo a leitura! E Pim!
Se puserem um livro à vossa
frente, caros amigos, cuidado! Desviem o olhar! Não abram nem uma página! Pode
bastar um verso para vos contaminar! Um homem que lê pode desejar viver num
mundo melhor! Pode de repente sentir as lágrimas correrem-lhe pela cara abaixo!
Pode querer subitamente ajudar os aflitos! Pode abraçar estupidamente um amigo
ou beijar os lábios de uma rapariga bela como um raio de sol a iluminar a mais
bela rosa do jardim!
Por isso é preciso fechar as
portas aos antros de leitura! Sabemos que pode parecer doloroso mas é
fundamental arrancar de vez os livros das mãos dos viciados e impedi-los de ler
uma linha sequer! Se for preciso tapai-lhes os olhos! É preciso preparar o
futuro dos nossos filhos! Não lhes dar ilusões, nem sonhos, nem alegrias! Nem
dúvidas, nem sabedoria, nem nada!
Abaixo as bibliotecas! Abaixo
os livros! Morra a leitura! Morra!
Fim!
Fim!
José Fanha
Poeta do séc. XXI
e
tudo
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da
língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/
CARREIRO, José. “Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha”. Portugal, Folha de Poesia, 05-02-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/02/manifesto-anti-leitura-de-jose-fanha.html
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