segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Só gosto das pessoas boas, Adília Lopes

 

Adília Lopes, OBRA, edição Mariposa Azual


Só gosto das pessoas boas

quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy

sei lá o quê

se não são boas pessoas

não prestam


Adília Lopes, Estar em casa. Lisboa, Assírio & Alvim, 2020



Adília Lopes, pseudónimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira (Lisboa, 20 de abril de 1960 − 30 de dezembro de 2024).

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A Cidade da Confusão

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I


Rua do Benformoso, junto à praça do Martim Moniz, 19-12-2024
https://www.rtp.pt/noticias/pais/autarca-de-junta-indignado-com-operacao-policial-no-martim-moniz-pede-saida-da-ministra_n1622798

 

E assim João Sem Medo partiu para a singular Cidade da Confusão.

Os habitantes dessa cidade, como já sabem, andavam de pernas no ar, usavam gravatas na cintura, cintos no pescoço, galochas nas mãos e luvas nos pés. Os prédios em que moravam não dispunham de portas nem de janelas. Entrava-se e saía-se dos andares, através dos telhados, por intermédio de elevadores montados nas paredes exteriores das fachadas. Outra particularidade a distinguia das demais cidades: apresentava diariamente um aspeto panorâmico novo, porque não possuía ruas fixas. Na verdade a Lei obrigava os donos dos prédios a mudarem-nos todos os dias de orientação e de rua, segundo um plano de barafunda paranoica estabelecido por poetas surreal reformados. Para esse fim, e obedecendo a métodos de construção especiais, edificavam-nos sobre largas plataformas metálicas com rodas, para se deslocarem com mais facilidade. Mercê deste processo ideal, a confusão da Cidade atingia requintes impossíveis de ultrapassar porque os habitantes ignoravam onde moravam.

Em resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as pessoas mais insignificantes da Cidade, pugnavam com denodo pela mumificação do Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não pronunciasse pelo menos dez asneiras por minuto. Ou não sujasse as grandes descobertas e empresas humanas (como a energia atómica ou os satélites, por exemplo) com teorias imbecis de amesquinhamento reles. Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo de excluí-los, sem relutância nem remorsos, das respetivas Academias e Universidades.

Esta estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações da alma da Raça, cultivava-se desde a infância com esmeros maternais. As Escolas, onde os mestres se selecionavam não pela ciência demonstrada mas pela maneira de trajar e de fazer o nó na gravata, incumbiam-se de torcer os meninos até à incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito coisas sem significação, palavras vazias, matérias inoperantes, ideias cadavéricas, sempre com mais de duzentos anos, pelo menos, e que, conservadas em álcool, graças ao seu desuso em cabeças vivas serviam para simulações de sistemas geniais recentes.

Também se chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa determinação legal, só os incompetentes comprovados, com mais de 80% de erros ortográficos nas provas escritas e total inépcia para acertar nas contas de dividir, podiam ocupar os cargos cimeiros da Cidade da Confusão.

Por isso, ouviam-se com frequência frases elogiosas deste género: «Fulano é um idiota chapado! Está apto a solucionar todos os problemas, sobretudo os insolúveis! O Poeta Tal é um imbecil de génio!», etc., etc.

No meio desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o pino, o pobre João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao contágio, repugnando-lhe aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.

Assim, por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre de costas voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio? (…) Porque mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as praias de casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a Lei), enquanto as mulheres passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam a bailes de fato de banho? (…)

As respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João sem Medo que, certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu meter-se no primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da Confusão.

Mas neste entrementes, ao virar a última esquina antes da estação, esbarrou com um indivíduo inquietante. Nada menos, nada mais do que um homem com os pés no chão, as mãos no ar, chapéu na cabeça, gravata em redor do pescoço, cinto na cintura e sapatos nos pés.

Caíram nos braços um do outro como velhos amigos.

— Até que enfim que encontro uma pessoa de juízo, um tipo normal — gritou João Sem Medo eufórico.— Já tinha saudades, palavra.

— E eu, então?... Ah!, quem me dera ter nascido na tua terra — queixou- -se o pobre homem.

— Porquê?

— Porque nesta cidade ninguém me entende… Porque choro quando sofro e rio quando me alegro. Porque digo «boas-tardes» de tarde e «bons-dias» de manhã. Porque não tomo banho vestido. Porque acendo a luz elétrica de noite, etc. — Isso prova apenas que tens a cabeça no lugar próprio — consolou-o João Sem Medo. — Pois é… Mas julgas que alguém acredita em mim? Qual! Todos os dias publico artigos de propaganda no meu jornal clandestino: Mãos no Ar. Pois parece que ninguém os lê. Até hoje, na Cidade da Confusão só consegui arranjar cinquenta adeptos da minha doutrina. (…) As autoridades acusam-me de traidor, calcula. Dizem que quero destruir as tradições da Raça. Fundaram até um jornal de propósito para me refutarem: O Coice. Segundo eles, a posição de mãos no chão e pés no ar é puramente espiritual… Um coice nas estrelas… Um coice para as Alturas…

Não pôde prosseguir. Num burburinho súbito, meia dúzia de homens saltaram dum automóvel aéreo e, com a rapidez petulante dos profissionais de dominar homens, enfiaram-lhe uma camisa de forças, impuseram-lhe uma mordaça e, a pontamãos (comparáveis em violência aos nossos pontapés), arrastaram o desgraçado para o carro.

— Pelo que vejo o senhor é estrangeiro! — observava entretanto um dos assaltantes, dirigindo-se a João Sem Medo.

— E com muito prazer.

— Desculpe o acidente — resmoneou o outro. — Mas o senhor estava a falar com um doido perigoso, fugido do manicómio.

— Um doido?... Devem estar enganados… Pareceu-me inteiramente normal!... Contou-me que era diretor dum periódico…

— Mentira! — interveio outro dos assaltantes (enfermeiro? polícia?) com os olhos cheios de lágrimas de riso. — É um pobre doido com a mania de nos querer obrigar a trazer os pés no chão. Como se isso fosse possível!

— É verdade!... Como se isso fosse possível! – repetiram todos em coro, a chorar às gargalhadas.

Então, João Sem Medo tapou os ouvidos e desarvorou para a estação de caminho de ferro mais próxima.

 

José Gomes Ferreira, “Capítulo VII - A Cidade da Confusão” in Aventuras de João Sem Medo. Lisboa: Dom Quixote, 2012, pp. 70-74

 


Aventuras de João Sem Medo é um livro constituído por 15 capítulos, nos quais se descrevem as aventuras que João viveu, após saltar o Muro que separava Chora-Que-Logo-Bebes, onde vivia, e a Floresta Branca.

Escreve um texto expositivo em que apresentes as linhas fundamentais da leitura do capítulo VII, “A Cidade da Confusão”, do livro Aventuras de João Sem Medo. O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de desenvolvimento e uma parte de conclusão, respeitando os seguintes pontos.

• Explicitação do significado da expressão “singular Cidade da Confusão”.

• Referência ao que está incluído na expressão “Esta estupidez”.

• Indicação do que é normalidade e loucura para João Sem Medo, para os assaltantes e para o homem que é levado numa camisa-de-força.

• Explicitação das razões que levaram à escolha do título Mãos no Ar para o periódico.

• Explicitação da intenção da existência do jornal O Coice.

• Razões para a fuga de João Sem Medo para a estação.

(Fonte: Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013, pág. 227)



quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Do meu país, Eduardo White


 

DO MEU PAÍS

Do meu país. Do país que eu amo, do país que eu temo,
do país que sangro para comer no pão, do país que quero,
do país que doo, do país que amasso como se fosse chão,
do país que tenho, do país que guardo, do país que sonho
como se o lesse na mão, do país que espero, cigarro etéreo,
do país que a minha vida inteira respirou, do país que
lavro, do país que rasgo, do país que a poesia me chorou,
do país com carne, do país com veias, do país que é onde
o sol se deitou, do país que fosse o país que é o país onde
o futuro abalroou, do país do amor, do país dos outros,
do país que é também tudo o que sou, do país chegado,
do país sem barcos, do país que à minha janela me levou.

 

Eduardo White, Até amanhã, coração. Maputo, Imprensa Universitária, 2005


sábado, 14 de dezembro de 2024

Salgueiro Maia

 


SALGUEIRO MAIA

Aquele que na hora da vitória
Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»
Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Musa, 1.ª ed., 1994, Lisboa, Editorial Caminho • 2.ª ed., 1995, Lisboa, Editorial Caminho • 3.ª ed., 1997, Lisboa, Editorial Caminho • 4 ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.

 



SALGUEIRO MAIA

Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.

Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.

Por isso ficarás como quem vem
dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.

“Salgueiro Maia”, Manuel Alegre, 04-04-2012. Disponível em: https://manuelalegre.com/301000/1/002731,000014/index.htm



Os poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen e Manuel Alegre, dedicados a Salgueiro Maia, oferecem duas perspetivas distintas, mas complementares, sobre a figura do Capitão de Abril. Ambos os autores destacam a integridade, a abnegação e o papel crucial de Salgueiro Maia na Revolução dos Cravos, mas com nuances que enriquecem a nossa compreensão do herói.

"Salgueiro Maia" de Sophia de Mello Breyner Andresen:

Este poema foca-se na dimensão ética e moral de Salgueiro Maia. Através de uma estrutura anafórica ("Aquele que..."), Sophia constrói um retrato idealizado do homem justo e virtuoso. Destacam-se os seguintes aspetos:

  • Respeito pelo vencido: Sublinha a nobreza de caráter de Salgueiro Maia, que mesmo na vitória não humilhou ou explorou o adversário. Este traço humanista é fundamental para compreendermos o espírito do 25 de Abril, que se pretendia pacífico e reconciliador.
  • Abnegação e desinteresse: O verso "Aquele que deu tudo e não pediu a paga" enfatiza o altruísmo de Salgueiro Maia, que agiu movido por ideais e não por ambição pessoal. Esta característica contrasta com a postura de outros atores políticos que, após a Revolução, procuraram proveitos e vantagens.
  • Resistência à ganância e à corrupção: Sophia destaca a integridade de Salgueiro Maia, que se manteve imune às tentações do poder e da riqueza. Esta postura é particularmente relevante no contexto pós-revolucionário, marcado por tensões e disputas políticas.
  • Fidelidade aos princípios: A citação de Fernando Pessoa ("Fiel à palavra dada à ideia tida") reforça a ideia de coerência e retidão moral que pautou a vida de Salgueiro Maia. Esta referência intertextual estabelece uma ligação entre o herói de Abril e a tradição da poesia portuguesa, elevando a sua figura a um patamar simbólico.

O poema de Sophia é, assim, um elogio à virtude e à integridade, personificadas em Salgueiro Maia. A linguagem é concisa e direta, com um ritmo marcado pela repetição anafórica, que confere solenidade e força expressiva ao poema.

"Salgueiro Maia" de Manuel Alegre:

Este poema assume um tom mais épico e celebratório, enfatizando o papel de Salgueiro Maia como líder e símbolo da liberdade. Destacam-se os seguintes aspetos:

  • Pureza do gesto libertador: Alegre evoca a imagem de um gesto inaugural e puro, que marca o início de uma nova era para Portugal. A palavra "desprende" sugere um ato de libertação não apenas do regime ditatorial, mas também das amarras do passado.
  • Figura heroica e idealizada: Salgueiro Maia é apresentado como um herói que "não se rende" e que "não se integra" nos jogos políticos do poder. Esta imagem idealizada reforça o seu estatuto de símbolo da resistência e da integridade.
  • Conquista do sonho da liberdade: O verso "Conquistador do sonho inconquistado" sublinha a dimensão utópica da Revolução dos Cravos, que procurava construir uma sociedade mais justa e livre. Salgueiro Maia surge como o líder que concretiza esse sonho.
  • Ligação à cidade e à memória coletiva: A referência a Santarém, de onde partiu a coluna militar liderada por Salgueiro Maia, e a imagem da "espada e a flor da liberdade" criam uma forte ligação entre o herói, o território e os valores da Revolução. O poema termina com uma nota de esperança e renovação, sugerindo que o nome de Salgueiro Maia continuará a inspirar as gerações futuras.

O poema de Alegre é, assim, uma ode à liberdade e ao heroísmo, com uma linguagem mais rica em imagens e metáforas. O ritmo é mais fluido e narrativo, evocando a marcha vitoriosa de Salgueiro Maia rumo a Lisboa.

Em suma, ambos os poemas celebram a figura ímpar de Salgueiro Maia, destacando a sua integridade, coragem e papel fundamental na história de Portugal. Enquanto Sophia enfatiza a dimensão ética e moral do homem, Alegre foca-se no seu papel como líder e símbolo da liberdade. A leitura conjunta dos dois poemas oferece-nos um retrato multifacetado e enriquecedor de um dos maiores heróis da democracia portuguesa.

 

Gemini 2.0 Flash Experimental (Modelo de Linguagem). (2024). Resposta à pergunta sobre recensão literária dos poemas sobre Salgueiro Maia. Data da consulta: 14-12-2024. Disponível em: https://gemini.google.com/app/33d40e789b812a69?utm_source=app_launcher&utm_medium=owned&utm_campaign=base_all