sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A Cidade da Confusão

Para além do «ser ou não ser» dos problemas ocos,
o que importa é isto:
- Penso nos outros.
Logo existo.

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I


Rua do Benformoso, junto à praça do Martim Moniz, 19-12-2024
https://www.rtp.pt/noticias/pais/autarca-de-junta-indignado-com-operacao-policial-no-martim-moniz-pede-saida-da-ministra_n1622798

 

E assim João Sem Medo partiu para a singular Cidade da Confusão.

Os habitantes dessa cidade, como já sabem, andavam de pernas no ar, usavam gravatas na cintura, cintos no pescoço, galochas nas mãos e luvas nos pés. Os prédios em que moravam não dispunham de portas nem de janelas. Entrava-se e saía-se dos andares, através dos telhados, por intermédio de elevadores montados nas paredes exteriores das fachadas. Outra particularidade a distinguia das demais cidades: apresentava diariamente um aspeto panorâmico novo, porque não possuía ruas fixas. Na verdade a Lei obrigava os donos dos prédios a mudarem-nos todos os dias de orientação e de rua, segundo um plano de barafunda paranoica estabelecido por poetas surreal reformados. Para esse fim, e obedecendo a métodos de construção especiais, edificavam-nos sobre largas plataformas metálicas com rodas, para se deslocarem com mais facilidade. Mercê deste processo ideal, a confusão da Cidade atingia requintes impossíveis de ultrapassar porque os habitantes ignoravam onde moravam.

Em resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as pessoas mais insignificantes da Cidade, pugnavam com denodo pela mumificação do Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não pronunciasse pelo menos dez asneiras por minuto. Ou não sujasse as grandes descobertas e empresas humanas (como a energia atómica ou os satélites, por exemplo) com teorias imbecis de amesquinhamento reles. Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo de excluí-los, sem relutância nem remorsos, das respetivas Academias e Universidades.

Esta estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações da alma da Raça, cultivava-se desde a infância com esmeros maternais. As Escolas, onde os mestres se selecionavam não pela ciência demonstrada mas pela maneira de trajar e de fazer o nó na gravata, incumbiam-se de torcer os meninos até à incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito coisas sem significação, palavras vazias, matérias inoperantes, ideias cadavéricas, sempre com mais de duzentos anos, pelo menos, e que, conservadas em álcool, graças ao seu desuso em cabeças vivas serviam para simulações de sistemas geniais recentes.

Também se chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa determinação legal, só os incompetentes comprovados, com mais de 80% de erros ortográficos nas provas escritas e total inépcia para acertar nas contas de dividir, podiam ocupar os cargos cimeiros da Cidade da Confusão.

Por isso, ouviam-se com frequência frases elogiosas deste género: «Fulano é um idiota chapado! Está apto a solucionar todos os problemas, sobretudo os insolúveis! O Poeta Tal é um imbecil de génio!», etc., etc.

No meio desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o pino, o pobre João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao contágio, repugnando-lhe aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.

Assim, por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre de costas voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio? (…) Porque mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as praias de casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a Lei), enquanto as mulheres passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam a bailes de fato de banho? (…)

As respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João sem Medo que, certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu meter-se no primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da Confusão.

Mas neste entrementes, ao virar a última esquina antes da estação, esbarrou com um indivíduo inquietante. Nada menos, nada mais do que um homem com os pés no chão, as mãos no ar, chapéu na cabeça, gravata em redor do pescoço, cinto na cintura e sapatos nos pés.

Caíram nos braços um do outro como velhos amigos.

— Até que enfim que encontro uma pessoa de juízo, um tipo normal — gritou João Sem Medo eufórico.— Já tinha saudades, palavra.

— E eu, então?... Ah!, quem me dera ter nascido na tua terra — queixou- -se o pobre homem.

— Porquê?

— Porque nesta cidade ninguém me entende… Porque choro quando sofro e rio quando me alegro. Porque digo «boas-tardes» de tarde e «bons-dias» de manhã. Porque não tomo banho vestido. Porque acendo a luz elétrica de noite, etc. — Isso prova apenas que tens a cabeça no lugar próprio — consolou-o João Sem Medo. — Pois é… Mas julgas que alguém acredita em mim? Qual! Todos os dias publico artigos de propaganda no meu jornal clandestino: Mãos no Ar. Pois parece que ninguém os lê. Até hoje, na Cidade da Confusão só consegui arranjar cinquenta adeptos da minha doutrina. (…) As autoridades acusam-me de traidor, calcula. Dizem que quero destruir as tradições da Raça. Fundaram até um jornal de propósito para me refutarem: O Coice. Segundo eles, a posição de mãos no chão e pés no ar é puramente espiritual… Um coice nas estrelas… Um coice para as Alturas…

Não pôde prosseguir. Num burburinho súbito, meia dúzia de homens saltaram dum automóvel aéreo e, com a rapidez petulante dos profissionais de dominar homens, enfiaram-lhe uma camisa de forças, impuseram-lhe uma mordaça e, a pontamãos (comparáveis em violência aos nossos pontapés), arrastaram o desgraçado para o carro.

— Pelo que vejo o senhor é estrangeiro! — observava entretanto um dos assaltantes, dirigindo-se a João Sem Medo.

— E com muito prazer.

— Desculpe o acidente — resmoneou o outro. — Mas o senhor estava a falar com um doido perigoso, fugido do manicómio.

— Um doido?... Devem estar enganados… Pareceu-me inteiramente normal!... Contou-me que era diretor dum periódico…

— Mentira! — interveio outro dos assaltantes (enfermeiro? polícia?) com os olhos cheios de lágrimas de riso. — É um pobre doido com a mania de nos querer obrigar a trazer os pés no chão. Como se isso fosse possível!

— É verdade!... Como se isso fosse possível! – repetiram todos em coro, a chorar às gargalhadas.

Então, João Sem Medo tapou os ouvidos e desarvorou para a estação de caminho de ferro mais próxima.

 

José Gomes Ferreira, “Capítulo VII - A Cidade da Confusão” in Aventuras de João Sem Medo. Lisboa: Dom Quixote, 2012, pp. 70-74

 


Aventuras de João Sem Medo é um livro constituído por 15 capítulos, nos quais se descrevem as aventuras que João viveu, após saltar o Muro que separava Chora-Que-Logo-Bebes, onde vivia, e a Floresta Branca.

Escreve um texto expositivo em que apresentes as linhas fundamentais da leitura do capítulo VII, “A Cidade da Confusão”, do livro Aventuras de João Sem Medo. O teu texto deve incluir uma parte introdutória, uma parte de desenvolvimento e uma parte de conclusão, respeitando os seguintes pontos.

• Explicitação do significado da expressão “singular Cidade da Confusão”.

• Referência ao que está incluído na expressão “Esta estupidez”.

• Indicação do que é normalidade e loucura para João Sem Medo, para os assaltantes e para o homem que é levado numa camisa-de-força.

• Explicitação das razões que levaram à escolha do título Mãos no Ar para o periódico.

• Explicitação da intenção da existência do jornal O Coice.

• Razões para a fuga de João Sem Medo para a estação.

(Fonte: Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013, pág. 227)



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