terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Cinismos, Cesário Verde

 


CINISMOS

Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei de abrir-lhe o meu intimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,1
Como um velho filósofo lendário.

Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso

Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!

E eu hei de, então, soltar uma risada...

 

Cesário Verde, Lisboa, Diário da Tarde, 12-03-1874

In: Obra Completa de Cesário Verde - 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983 (Coleção Horizonte Poesia, n.º 20)

 

[1] Nota do editor: Na primitiva publicação: «E, desvendar a vida, o mundo, o gozo,».





terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Nunca me atrevo a falar de ti, Zbigniew Herber

 NUNCA DE TI


Nunca me atrevo a falar de ti
vasto céu do meu bairro
nem de vós telhados que detendes as cascatas de ar
belos telhados felpudos cabelos das nossas casas
nem de vós chaminés laboratórios de tristeza
abandonadas pela Lua pescoços esticados
nem de vós janelas abertas-fechadas
que rebentais quando morremos além-mar

Nem sequer consigo descrever a casa
que conhece todas as minhas fugas e regressos
apesar de pequena não sai debaixo das pálpebras fechadas
nada conseguirá devolver-me o cheiro do reposteiro verde
nem o ranger das escadas por onde levo a lamparina acesa
nem a folhagem sobre o portão

Em verdade gostaria de escrever sobre o puxador do portão da casa
sobre o seu toque áspero e rangido amigável
e mesmo sabendo muito sobre ele
repito tão-só uma ladainha de palavras comum cruel

Cabem tantos sentimentos entre dois batimentos cardíacos
tantos objetos podem ser acolhidos entre duas mãos

Não vos admireis que não saibamos descrever o mundo
e que só tratemos as coisas pelos nomes com ternura

 

Zbigniew Herber, Poesia Quase Toda. Cavalo de Ferro, 2024.

Tradução: Teresa Fernandes Swiatkiewicz

 

 

SOBRE O AUTOR

Zbigniew Herbert (Lviv, 1924 – Varsóvia, 1998) foi um poeta e ensaísta polaco, considerado pela crítica uma das figuras mais marcantes da literatura europeia da segunda metade do século XX.

Durante a guerra, participou na resistência armada antinazi. Já na vigência do regime estalinista no seu país, foi diversas vezes impedido de publicar por se recusar obedecer à estética oficial. O seu primeiro livro de poesia, Strun switl (Corda de Luz) data de 1956. Seguiram-se vários outros, incluindo o célebre Pan Cogito (Sr. Cogito), de 1974 (ambos a editar em Portugal).

Considerado um poeta do histórico, do filosófico, do político e, ao mesmo tempo, do individual, Herbert foi igualmente um exímio ensaísta, tendo o volume Um Bárbaro no Jardim, de 1962, ou os ensaios recolhidos em Martwa Natura z wedidlm (Natureza Morta com Brida), de 1993 (ambos editados na Cavalo de Ferro), ajudando a consolidar a sua enorme reputação internacional.

Efetivamente, um crítico do New York Times chegou a afirmar à data: «num mundo justo, Zbigniew Herbert teria há já muito sido galardoado com o Prémio Nobel».

https://www.wook.pt/autor/zbigniew-herbert/1127886/122

 

 

SINOPSE DE POESIA QUASE TODA

Poesia Quase Toda, com seleção a cargo do Prémio Nobel de Literatura J. M. Coetzee e da poeta e tradutora Alissa Valles, contém uma amostra significativa dos nove livros publicados em vida por Zbigniew Herbert, entre 1956 e 1998, e poemas inéditos do seu arquivo pessoal, nunca antes divulgados, constituindo um volume essencial para se conhecer a sua obra poética, uma das mais marcantes do século XX e praticamente inédita em Portugal.

https://www.wook.pt/livro/poesia-quase-toda-zbigniew-herbert/30921435

 

SOBRE A TRADUTORA

A tradutora Teresa Fernandes Swiatkiewicz é uma das mais importantes tradutoras de literatura polaca para língua portuguesa e já traduziu vários livros de Wysława Szymborska, Olga Tokarczuk, Stanisław Lem, entre outros. Venceu o Grande Prémio de Tradução Literária pela adaptação para português de Casa de dia, casa de noite, de Olga Tokarczuk. Em 2020, recebeu uma menção honrosa pela tradução do livro Viagens, também de Olga Tokarczuk. Em 2012 a tradutora foi galardoada pelo Presidente da Polónia com a Cruz de Ouro da Ordem de Mérito.

https://www.camoes.pl/2024/10/21/zbigniew-herbert-em-portugues-no-livro-poesia-quase-toda/

 

CRÍTICAS

Não deixa de surpreender a diversidade de modos como a poética de quatro jovens polacos, contemporâneos entre si - Czeslaw Milosz (Nobel de Literatura em 1980), Tadeusz Róžewicz, Wislawa Szymborska (Nobel de Literatura em 1996) e Zbigniew Herbert -, respondeu aos terríveis acontecimentos que assolaram a Europa, e em particular a Polónia, na primeira metade do século XX. Mas a poesia de Herbert foi outra coisa: desde os primeiros livros, em particular desde o terceiro que, num tom que frequentemente tocou a sátira (e o sarcasmo), envoltos porém num lirismo belo e surpreendentemente quotidiano, recorreu à mitologia greco-romana como exemplo para plasmar a sua visão de mundo, à qual não faltou a voz do icónico Senhor Cogito, o seu alter-ego. É, na minha opinião, uma das maiores, se não a maior voz poética europeia do século XX, à qual não fez falta o prémio maior para se tornar uma das maiores inspirações das gerações seguintes, polaca e não só, que nela se inspiraram e reviam.

João Luís Barreto Guimarães

https://www.wook.pt/livro/poesia-quase-toda-zbigniew-herbert/30921435

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Paz, Tomaz Kim

 

Óbidos, 2024-09-11 (Fotografia: José Carreiro)

PAZ

Aqui foi a casa:
Alva a toalha e o pão,
O berço além.

Breve a canção:
Bater de asa
O sorriso de mãe.

Veloz a hora:
Agora,
Só o coaxar noturno e certo
Das rãs,
Enche o campo deserto.

 

Tomaz Kim (Lobito, 1915 – Lisboa, 1967)

(Pseudónimo de Joaquim Fernandes Tomaz Monteiro-Grillo)

 

Linhas de leitura do poema:

  • Repara que a estrutura fragmentada do poema (versos curtos e ausência de pontuação) contribui para a transmissão do tema da passagem do tempo/efemeridade da vida.
  • Que significados podem ser atribuídos às imagens da "toalha alva", do "pão", do "berço" e do "sorriso de mãe"? Como essas imagens contrastam com o "coaxar noturno e certo / Das rãs" e o "campo deserto" na terceira estrofe?
  • O título do poema é "Paz". Como interpretas essa escolha, considerando que o poema evoca tanto a memória de um passado afetuoso quanto a desolação do presente?

 


domingo, 2 de fevereiro de 2025

Fui criança, indo por um carreiro, a caminho do mar (Fiama Hasse Pais Brandão)


 

Fui criança, indo por um carreiro,
a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
Toda a Natureza me coube nas pupilas,
mestra de sentimentos, e eu discípula.
E, se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves, que doía.
Se os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazia a mão
puxava-me para a luz de cada dia.

 

Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007),
Cenas Vivas. Lisboa, Relógio d’Água, 2000


Leitura orientada do poema

  • Qual é o tema central do poema?
  • Como é retratada a natureza no poema?
  • Qual é o papel da criança no poema?
  • O que simboliza o carreiro no poema?
  • Qual é o significado do mar no poema?
  • Por que razão a natureza é descrita como "mestra de sentimentos"?
  • O que representa o silêncio das ondas no poema?
  • Qual é o significado da "mudez imerecida dos insectos"?
  • Por que razão a distância das aves "doía"?
  • O que simboliza a mão que puxa a criança?
  • Qual é o significado da "luz de cada dia"?
  • Qual é a importância das pupilas no poema?
  • Como se retrata no poema a transição da infância para a vida adulta?
  • O que sugere a repetição da palavra "mão"?
  • Qual é o papel do silêncio no poema?


sábado, 1 de fevereiro de 2025

Os poemas que (não) fiz, Gastão Cruz

 



OFÍCIO

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira

 

Gastão Cruz, Escarpas. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010


Leitura orientada do poema

1. Qual é o significado do título "Ofício" no contexto do poema?

2. Como explora o poema a relação entre corpo e alma?

3. Qual é o papel da poesia no poema?

4. Como a imagem do "duro sopro" contribui para o significado do poema?

5. Qual é o significado do paralelismo entre "Os poemas que não fiz" e "Os poemas que fiz"?


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Natália Correia à partida de São Miguel

 


MANHÃ CINZENTA
À Partida de São Miguel

Ai madrugada pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais…
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...

O meu veleiro – era de espuma fria –
levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.

Cruzei o mar em direções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
nesta longa viagem que não finda.

Só uma estrada resta – mais nenhuma:
na Ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...

 

in Portugal, Madeira e Açores,
Abril de 1946

 

Natália Correia, “Inéditos, 1941/47” in O Sol das Noites e o Luar nos Dias I. Lisboa, Círculo de Leitores, março de 1993, p. 11




A Ilha: ponto de partida

 

O laço de pertença que une Natália à Ilha é naturalmente emocional e psicológico, porque a partida se efetiva na realidade, despertando um sentimento de perda material. Mas a poesia permite recuperar a Ilha como se fosse “um objeto imaculado pela distância, a nata de uma criança infinitamente chamada pelas ondas a esvaziar-se pela boca cantante com que assombramos as vírgulas adultas dos lugares que habitamos.” (Correia 1993a: 422) Assim se pontua o momento da partida numa “Manhã Cinzenta”, porque se impõe a mudança exigida pela fase adulta da vida […].

A despedida reveste-se da tristeza que é normal sentir-se quando se deixa a “Ilha que o passado envolve em bruma.” É da terra dos seus pais – “ninfa e pai chuva de lava” – que o sujeito poético parte para cruzar “o mar em direções diferentes”, como se doravante a ínsula se afastasse da vida da poetisa. Este afastamento, porém, é materializado no momento da partida, uma vez que a poesia permite a Natália apenas uma “longa viagem que não finda, / só uma estrada resta – mais nenhuma”: a lembrança do adeus acenado por um lenço branco.

Por isso é que, no III dos “7 Poemas da Morte e da Sobrevivência”, Natália esclarece que o retorno à Ilha não deve fazer-se de um qualquer modo, há que revestir o colorido da flor para imprimir outra tonalidade à palidez da despedida naquela “Manhã Cinzenta”. Se um lenço branco acenou à sua partida, que a florescência em cor a saúde aquando do regresso:

Não regressarei à terra
como uma folha que cai.
Condição de ser a hera
que no meu tronco se enlaça
sou a nascente da água
que me leva quando passa.

Não sou poeira que o vento
arrasta até encontrar
a florescência da flor.
Origem morte existência
sou a própria florescência
incontinente na flor.

(Correia 1993a: 117)

 

Mas o regresso não se faz tão cedo. O lugar de onde parte permanece-/-lhe na memória e é evocado com saudade quando, numa circunstância específica da sua vida, Natália pensa que pode vislumbrar, ao longe, a Ilha que lhe serviu de berço e da qual se despediu tristemente numa manhã sem sol. Na obra Descobri que Era Europeia. Impressões duma viagem à América3, a poetisa descreve a jornada que faz aos Estados Unidos da América. Quando, em 1950, sobrevoa o Atlântico rumo à terra da fartura, a escala técnica na ilha vizinha de Santa Maria leva Natália Correia a registar em prosa aquilo que em poesia é canto de saudade:

Estamos a vinte e sete milhas náuticas de Santa Maria. A partir daqui, a viagem começa a revestir um significado sentimental. Pela primeira vez, após quinze anos, vou aproximar-me da terra onde nasci. Ficarei durante uma hora a sessenta milhas de distância da minha ilha: São Miguel.

Vou parar em Santa Maria, onde nunca estive, mas que conheço como uma ténue linha de horizonte dos dias claros. Quantas vezes, debruçada na balaustrada do Aterro, vendo a ilha distante, aberta como uma flora na bruma do mar, eu pensava se aquela não seria a ilha misteriosa sepultada no oceano que a velha Maria da Estrela dizia aparecer de quando em quando aos olhos fadados para a ver: […] (Correia 1993a: 422).

A paragem na pequena ilha de Santa Maria assume uma dupla função: por um lado, não será mais do que um lugar de passagem na rota para outro mundo, mesmo ao lado do ponto de partida de há década e meia de anos e, por outro, torna-se numa espécie de janela a partir da qual Natália tenta perscrutar a sua Ilha, espaço agora preservado na memória, ao qual a poetisa acede através da recordação e do sonho.

 

_________

[3] Esta narrativa de Natália Correia é um documento importante para a compreensão do fenómeno da “açorianidade”. Aí se desenvolve, com bastante acuidade, a conclusão a que chegam, por exemplo, Rosa & Trigo 1987:199: “Entre a insularidade e o sonho realizado, ou não, da distância das “Califórnias da abundância”, constrói-se cada vez com mais fervor a açorianidade – essa maneira que o açoriano tem de afirmar a sua especificidade de ser português, sendo ao mesmo tempo um cidadão de errância em trânsito permanente, espiritual ou físico, para sua mátria: Açores.”

 

Rui Faria, “Figurações da Ilha na poesia de Natália Correia: da expressão da açorianidade à busca da universalidade” in Limite. ISSN: 1888-4067, nº 16, 2022, pp. 149-163

 


quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Estamos agora em paz, Mário Dionísio


 

Estamos agora em paz
sabendo simular o esquecimento

sentados

com os olhos no vento
lá de fora atirado para antes
de nós as mãos caídas
nos joelhos mas nada suplicantes
só esvaídas

conformados
com não nos conformarmos

resignados
a esperando não esperarmos

como se tudo fosse um imenso tanto faz

 

Mário Dionísio (1916-1993), Terceira Idade. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1982. (Obras de Mário Dionísio; 10). Retrato de MD por Júlio Pomar (1950).


Leitura orientada do poema

1. Qual é o significado da expressão "simular o esquecimento" no poema, e como ela se relaciona com o tema da paz?

2. Qual é o papel das imagens das "mãos caídas" e dos "olhos no vento" na construção do significado do poema?

3. Como o poema reflete a maturidade e a perspectiva da "terceira idade", conforme sugerido pela obra de Mário Dionísio?



índice

 

Ó lúcido fantasma a que fugi

11

Obceco-me de ti que mesmo aqui vivias sempre na floresta

13

Entre arbustos de outono

15

Como era belo o barco

16

Que centrípetas forças arrastamos

17

Céu de espantosos gritos que ficaram nos ecos da memória

18

Uivo rouco de apelo

19

Voltado para o parque de velhas árvores sem folhas

20

Uma folha? Passos? Restolhada

21

Tanta gente sentada nesta sala deserta

22

Esta mão que inconformada se conforma

23

Onde te vi olhar

24

Encostada à janela de guilhotina

26

Assustado rufo de asas na floresta

28

Quando as palavras abrem canais de transparência

29

Vê-se agora melhor o mais distante

30

No grande côncavo da noite a bicicleta

31

Ele vem num silêncio de descalço

32

E outros que chegavam trazendo pelo escuro

33

Ter medo é próprio do homem

34

Os pinhais não são hoje como esse de névoa

35

Do que não volta mais desponta outro prazer

36

Ó frescura

37

Translúcida brandura

38

Estamos agora em paz

39

E de súbito

40

A vida inteira com as unhas vorazmente abrimos

41

Cartucheira de flores a tiracolo

42

Vejo-o no fim dum túnel lá muito de onde em onde

43

Trinta anos depois

44

Pergunto as horas na rua para ver

45

Os olhos    São os olhos que mais estranho

46

Pior que não cantar  

47

Quantos sabem

48

Palavras de alcatrão escritas com luz no muro

49

Esse olhar morno

50

Que nojo    São carcaças

51

Oh que cheirinho a antigamente

53

Foi hoje a enterrar

55

A chuva escreve-lhe nos ombros

56

Soldado ou eu fardado

57

Depois da festa pois    Se festa

58

Ai de quem aprendeu

59

Oh doce paz interior absurda

60

Quem dera separar o que é e o que está

61

Compreender-te é saber o outro lado

62

Não digas para sempre

63

Quanto ainda durarão

64

Quando não se gastara ainda o azul das baías nos cartazes

65

Um comboio que no campo ao longe passa

68

De entre o tanto que esquece

69

Em tempo e à margem

70

Não há momentos banais

71

Eis-me o Rembrandt hoje nas veias

72

O amarelo da seara ao sol

74

Toda a tarde jazz    E que me rala imaginar

75

Ela canta agarrada como que sensualmente ao microfone

76

Jóia discreta

77

Dão horas longe numa aldeia

78

Mal se vêem os prédios

79

País de azulejos partidos

80

Jovem de riso ardente  

81

Retrato de frente e de perfil

82

A floresta omnipresente

84

Nós vivemos de mitos dentro de mitos para os mitos

85

Imóveis imagens pardas

86

Acender a lareira num dia quente lá fora

87

Dê-se por acabado

88

Há hoje outras respostas elas mesmas perguntando

89

Quando dei por isso já era sempre tarde

90

Alguém morre

91

Uma alvorada onde relincham potros

92

É hoje o primeiro dia

93

Deixem-me alargar prolongar exagerar o passeio

94

Venho atravessando a custo há milhares de anos

95

Estás definitivamente tão cansado

96

Num banco de jardim ao sol

97

Assim se fazem as cousas

98

O que em mim dorme

99

Quando a terra se acaba

100

E curioso

101

Rosto como os detesto

102

Oh sedução dos destinos ignorados

103

Para que alheias paragens onde é difícil respirar

104

Quem sabe que entre altos cedros aqui estás

105

E então começou a dormitar

106

Acaso interessa

107

Saber ver dos bastidores

108

Há um de prodígio alguns minutos antes do sol-pôr  

109

Quem vier

110

Concha que se fecha devagar

112




terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Não se ama quem não ouve a mesma canção?


 

Tu eras aquela que eu mais queria  
Para me dar algum conforto e companhia
 
Era só contigo que eu sonhava andar
 
Para todo o lado e até quem sabe talvez casar
 

Ai o que eu passei só por te amar
 
A saliva que eu gastei para te mudar
 
Mas esse teu mundo era mais forte do que eu
 
E nem com a força da música ele se moveu
 

Mesmo sabendo que não gostavas
 
Empenhei o meu anel de rubi
 
Pra te levar ao concerto
 
Que havia no Rivoli
 
 
 
Era só a ti que eu mais queria
 
Ao meu lado no concerto nesse dia
 
Juntos no escuro de mão dada a ouvir
 
Aquela música maluca sempre a subir
 

Mas tu não ficaste nem meia hora
 
Não fizeste um esforço pra gostar e foste embora
 
Contigo aprendi uma grande lição
 
Não se ama alguém que não ouve a mesma canção...
 

Mesmo sabendo que não gostavas
 
Empenhei o meu anel de rubi
 
Pra te levar ao concerto
 
Que havia no Rivoli
 

Foi nesse dia que percebi
 
Nada mais por nós havia a fazer
 
A minha paixão por ti era um lume
 
Que não tinha mais lenha por onde arder
 

Mesmo sabendo que não gostavas
 
Empenhei o meu anel de rubi
 
Pra te levar ao concerto
 
Que havia no Rivoli

 

“Paixão”, letra de Carlos Tê cantada por Rui Veloso

Piano, teclados e acordeão: Manuel Paulo

Guitarra acústica: Miguel Mascarenhas

Baixo: Zé Nabo

Percussão: André Rocha

Bateria: Alexandre Frazão

Vozes: Paulo Ramos, Berg, Sandra e Dora Fidalgo


Possíveis tópicos para discussão:

  • A influência da música na construção da identidade.
  • A relação entre a indústria musical e a promoção de estereótipos.
  • A importância de uma educação sexual que inclua a discussão sobre relacionamentos saudáveis.



Eu cá acho que aquela atriz do Bay Watch, a Pamela Anderson deveria ser condenada pelo mau exemplo que deu às mulheres da minha geração. Ainda por cima ela era daquelas mulheres que podia ter tudo e depois divorcia-se lá do outro brutamontes que lhe batia para se casar com ele outra vez? Mas que mau exemplo era aquele? Já viste a quantidade de exemplos que nós recebíamos só pela televisão no domingo à tarde? É que ela não era bem como a Elizabeth Taylor que se casou duas vezes com o Richard Burton mas pelo meio, antes e depois, lá se foi casando com mais 7 e não era só ele que lhe batia, aquilo era uma tourada para todos os lados, mas a Pamela Anderson? De fato banho laranja e cabelo ao vento, podia ter qualquer nadador salvador aos seus pés e teima de ir para aquele idiota? Já viste o que é que ela estava a dizer às mulheres adolescentes da altura como eu? Dizia primeiro que era possível fugir daquele inferno mas que depois se pode escolher voltar para ele? É um dos meus ódios de estimação. Sim, tu falas do Woody Allen e que te recusas a ver mais filmes dele, e eu … aliás… nem precisamos ir mais longe, já ouviste bem as letras do Carlos Tê do Rui Veloso? Há lá pior campanha de manipulação do que ouvir a canção do rubi todas as férias, em cassete, dentro do carro, a caminho do Algarve no verão?

Achas normal fazer uma canção daquelas? Mesmo sabendo que não gostavas comprei-te um bilhete para ires àquele concerto? Mas como é que isto pode ser uma canção de amor que uma família inteira canta dentro do carro enquanto come sandes de atum com maionese e bebe Bongo-sumo-rei-da-selva enquanto está parado na fila de trânsito de sábado ao final da manhã para atravessar a ponte?

Tu já reparaste bem na letra daquela canção? Eu lembro-me dos meus pais a cantarem e lembro-me de pensar:  Mas por que raio é que ele comprou um bilhete para um concerto de uma banda que ela não gostava? E por que raio ficou à espera que ela gostasse de propósito só para lhe agradar? Mas tem de ser assim, no amor? Oh, lá vens tu com as tuas teorias de romance de algibeira… a curiosidade, a curiosidade… ouve lá bem a letra… espera aí que eu agora não me lembro… como é que é, como é que começa? Ah! Começa assim: Tu eras aquela que eu mais queria… estás a ouvir bem? Já não tem nada a ver com os dois, começa logo com uma queixa, tipo: estás a ver, estás a ver? Eu gostava tanto de ti e tu népia, ainda te atreves a deitar-me fora que sou tão incrível e gosto tanto de ti… e vai por aí fora… e porque é que ele gostava dela? Para lhe dar conforto e companhia… sim não gostava do que dizia ou do que fazia ou do que era… gostava dela para lhe dar conforto e companhia… já viste bem? E depois ele diz: era só contigo que eu sonhava andar, para todo o lado e até, quem sabe?, talvez casar… quem sabe? Sim, quem sabe… já viste a imagem de romance que isto passa a uma miúda de 8 anos… olha como ele está triste, ele até te tinha escolhido e tu? Népia…e depois continua… Ai o que eu passei só por te amar, A saliva que eu gastei para te mudar. Para te mudar? Mas que raio de história é esta? Então ele gostava dela ou não? E depois fica pior, espera, espera, ouve bem a letra que eu acho que nunca reparaste bem… O que eu passei só por te amar … sofreu sozinho, não aceitava não ser correspondido, certo? E porquê? Ele explica: Mas esse teu mundo era mais forte do que eu, ou seja, ela tinha vontade própria, tu já viste bem a lata da miúda? Pensava lá à maneira dela, e ele coitado que queria tanto até, talvez, quem sabe, um dia casar com ela, e ela nem percebia a sorte que tinha? Olha que coisa! E ele vai mais longe e diz – não só ela tinha lá um mundo dela mais forte do que ele como nem com a força da música ele se moveu. Ah! E claro, era o mundo dela que se tinha de mover, não era o dele… isto fazia-me uma confusão quando eu ouvia isto no carro dos meus pais, eu no banco detrás de mini saia, eles de camisolas sem alças a cantar e a abanar a cabeça lá à frente. Mas o pior ainda está para vir… ele já tinha percebido que o mundo dela era mais forte do que ele, certo? e que ela não ia lá nem mesmo com a força da música, certo? E o que é que ele se lembra de fazer?

Vou cantar para ti que vale a pena, ora ouve-me bem, vou dar o meu melhor: Mesmo sabendo que não gostavas, Empenhei o meu Anel de Rubi, Pra’ te levar ao concerto que havia no Rivoli.

E eu não cantei com tanto ímpeto, mas aquilo é tudo muito sentido, imaginas como não deve ser em concerto, tudo de isqueiro, os namorados de mão dada, elas a suspirar, a ver se ele empenha o anel da avó deles isso é que é sinal de amor e tal… E ela tem mais é que se sentir culpada porque era só a ti, que eu mais queira / Ao meu lado no concerto nesse dia, Juntos no escuro de mão dada a ouvir / Aquela musica maluca sempre a subir…

Ora, ele tinha tudo planeado, a música a dar, eles a sentirem muito, tudo a cantar mas ela não ficou nem meia hora, já viste, a desgraçada? Então eu empenhei o meu anel de rubi que roubei à minha avó e ela nem fez um esforço para gostar e foi-se embora?

Então mas ele não sabia que ela não gostava? E se sabia para que é que ele a levou até um concerto que já sabia que não era do agrado dele? E se ela lhe fizesse o mesmo? Não lhe ocorreu que esta podia ter sido uma má escolha, nem lhe ocorreu que a poderia estar a torturar, já viste o que é ires a um concerto de uma banda que odeias? É que para ler uma pessoa ainda pode fechar os olhos, mas num concerto não dá para fechar os ouvidos… E o que é que ele conclui desta bonita ideia? Que se calhar era melhor terem ido jantar fora? Ou ir a uma peça de teatro? Ou passear num jardim? Ou perguntar-lhe de que música gostava? Não, claro que não. Ele aprendeu uma grande lição: NÃO SE AMA ALGUÉM QUE NÃO OUVE A MESMA CANÇÃO!

Olha que porra!

E como se não chegasse, e para provar que não tinha percebido nada do que lhe tinha acontecido, ele volta a repetir que mesmo sabendo que não gostavas, empenhei o meu anel de rubi, para te levar ao concerto que havia no Rivoli. E lá entra a harmonicazinha ainda a dar um tom de alpendre americano ao pôr do sol… que carago! Nunca mais me esqueci desta canção! Puxa!J

Dedicado a Keli Freitas, Crista Alfaiate e Isabel Campante e a uma belíssima noite passada a atrapalhar o trânsito na praça de D. Duarte em Viseu. 

"Não se ama quem não ouve a mesma canção?", Patrícia Portela, JL, 13-07-2021. Disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/ideiasjl/2021-07-13-nao-se-ama-quem-nao-ouve-a-mesma-cancao/