sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Fala apócrifa de Camões, David Mourão-Ferreira



FALA APÓCRIFA DE CAMÕES


É inútil buscarem o meu signo

procurarem-me em ruas ou retratos

sequer em grutas gritos manuscritos

muito menos em fósseis ou em falsas


pistas que de meus ossos não existem

É inútil julgarem-me comparsa

de quem quer que julgou viver comigo

já que em lugar algum terei passado


comigo mais que um prazo muito exíguo

mais ambíguo aliás e mais escasso

que o vivido com Bembo ou com Virgílio


com Petrarca Ariosto ou Garcilaso

Só estes os contei por meus amigos

E só de astros que tais rompe o meu rasto


David Mourão-Ferreira


In “No veio do cristal”, parte de Obra poética: 1948-1988. Lisboa: Presença, 1988, p. 397

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