Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de
Andrade, Sentimento do Mundo, 1940
À primeira vista o leitor depara-se com figurações
idílicas, aparentemente bucólicas. Mas o poema em análise, ainda que evoque,
numa leitura apressada, o mundo ingênuo, configura o olhar de um homem em face
à realidade dissoluta e caótica, marcada pela instabilidade da 2.ª Guerra
Mundial. O Brasil vivia tempos da ditadura de Vargas; inaugurava-se um dos
períodos mais autoritários da vida política nacional, o Estado Novo; os bens de
consumo estavam escassos e caros; a morte e a destruição rondavam o homem – a
esperança era uma palavra rara.
No poema, o jardim-mundo do presente revela a
tensão do sujeito com a paisagem a seu entorno. Os versos rumam a uma derrisão
interior, sem que isso atinja, em nenhum instante, o domínio sobre a palavra ou
comprometa sua sensibilidade intelectual. Nitidamente, o poeta refreia a
emoção; seus versos funcionam como um embate lúdico para vigiar a emotividade
que o acomete, e que desnorteia uma conclusão apressada, tal como se vê na
imagem da menina que pisa a grama para pegar o pássaro.
Assim sendo, esse poema deixa entrever um (outro)
campo de encontro, prefigurado no espaço perdido e no espaço que não há. Os
versos operam no sentido de instaurar, por entre o jardim, aquela outra ordem
em que seja possível perscrutar um deserto às avessas. Refiro-me a uma ordem
poética capaz de deixar a linguagem encontrar, depois da depuração a que foi
submetida, a abertura necessária, por meio da qual seja possível nomear o
conflito da experiência. O poema deixa figurar o correlato objetivo e sensível
da nomeação poética, por meio de elementos que, sendo tudo no jardim imaginado,
resvalam no nada e na carência do jardim presente, roubando-lhe até mesmo as
manhãs.
O leitor encontra, no jardim do presente, as
imagens do jardim do passado do eu lírico, percebendo como sua memória
seleciona imagens de um tempo de paz e liberdade, para contrastá-las com as
imagens do tempo de guerra e ditadura, do momento. Observamos,
progressivamente, que o sentimento de desajuste do eu-lírico no mundo não
encontra, nem mesmo no espaço do jardim – que poderia figurar como locus
amoenus – imagem de conforto e alívio.
Não, meucoraçãonão é maiorque o mundo.
É muitomenor.
Nele não cabem nem
as minhasdores.
Por issogostotanto de mecontar.
Por issome
dispo,
por issomegrito,
por isso freqüento os jornais, me
exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meucoração
é muitopequeno.
Só agora vejo que
nele não cabem os homens.
Os homens estão cáfora, estão na rua.
A rua é enorme.
Maior, muitomaior do que
eu esperava.
Mas também a ruanão cabe todos
os homens.
A rua é menorque o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande
o mundo.
Conheces os naviosque
levam petróleo e livros,
carne e algodão.
Viste as diferentescores
dos homens,
as diferentesdores
dos homens,
sabes como é difícilsofrertudoisso, amontoar tudo isso
num sópeito
de homem... semqueele
estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a águanosvidros,
tão calma. Não
anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coraçãonão
sabe.
Estúpido, ridículo
e frágil é meucoração.
Só agora descubro
como é tristeignorarcertascoisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com quehomens
se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas,
as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muitopobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas semproblemas,
nãoobstante
exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo,
o grandemundo
está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meucoraçãotambém pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dezmetros e explode.
–– Ó vidafutura!
nóste
criaremos.
ANDRADE,
Carlos Drummond de. In: Obracompleta. Organizada por
Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1964. p. 116-7.
1. Considerando a obra de onde se
extraiu o poema “Mundo grande” e a temática nela trabalhada, pode afirmar-se que o sujeito poético, no texto,
evidencia
A) a tomada de consciência
de quantoele
se distanciou do seusemelhante, ao isolar-se numa atitude
investigativa do próprioeu.
B) o comprometimento com
uma arte de funçãoeminentementeestética.
C) a autocrítica a uma posturaanterior de isolamentoemrelação
ao mundocoletivo.
D) a atitude de egoísmo
e de abstração da realidadecontemporânea, ao manifestardesejo de ilhar-se, seguindo as ideias e
os costumes de uma geração
desiludida.
E) a perceção de que
há homensisentos
da relaçãosolidáriacom os seussemelhantes.
F) o crescimento humano, ao assumirumcompromissocom
uma arte de engajamento político-social.
G) a consciência do impasseemque se encontra a sociedade do seutempo e da suaimpotência
para imprimir mudanças no processohistórico.
(Fonte: UFBA,
2004 – 1.ª fase – Português. Disponível em http://www.procampus.com.br/vestibular/ufba/provas/2004/1etapa/caderno1et1_04.pdf.
Consultado em 10-09-2007)
2. Considere,
agora, o seguinte poema de Tomás Antônio Gonzaga:
LIRA II (2.ª parte)
Esprema a vil calúnia muito embora
Enter as mãos denegridas, e insolentes,
Os venenos das plantas,
E das bravas serpentes.
Chovam raios e raios, no meu rosto
Não hás de ver, Marília, o medo escrito:
O medo perturbador,
Que infunde o vil delito.
Podem muito, conheço, podem muito,
As fúrias infernais, que Pluto move;
Mas pode mais que todas
Um dedo só de Jove.
Este Deus converteu em flor mimosa,
A quem seu nome dera, a Narciso;
Fez de muitos os Astros,
Qu'inda no Céu diviso.
Ele pode livrar-me das injúrias
Do néscio, do atrevido ingrato povo;
Em nova flor mudar-me,
Mudar-me em Astro novo.
Porém se os justos Céus, por fins ocultos,
Em tão tirano mal me não socorrem;
Verás então, que os sábios,
Bem como vivem, morrem.
Eu tenho um coração maior que o mundo!
Tu, formosa Marília, bem o sabes:
Um coração..., e basta,
Onde tu mesma cabes.
Tomás Antônio Gonzaga. Marília de Dirceu, 1792.
2.1. Assinale a afirmação correta sobre os dois textos:
A) Por pertencer à fase heroica ou iconoclasta do Modernismo, Carlos
Drummond de Andrade parodia o lirismo sentimental do árcade Tomás Antônio
Gonzaga.
B) Enquanto o poeta do Arcadismo, Gonzaga, expressa seu sentimento pela
musa Marília, o modernista Drummond reporta- -se, nesse trecho, às divergências
ideológicas.
C) Gonzaga, como muitos árcades, é alheio ao que está a seu redor, já
Drummond expressa um sentimento de revolta ante um mundo que não compreende as
dores do poeta.
D) Em Gonzaga, o coração do poeta alcança a plenitude com a presença da
amada. Em Drummond, o coração é insuficiente para abarcar as próprias dúvidas
existenciais.
E) Tomás A. Gonzaga usa a imagem do “mundo” para instigar a musa Marília
a aceitá-lo; Drummond retoma o procedimento do poeta árcade, ressaltando o sofrimento
por causa da amada.
(Correção:
alínea D. Fonte: ESPM, 2019/1. Disponível em https://www.aio.com.br/questions/content/considere-os-textos-que-seguem-eu-tenho-um-coracao-maior-que-o-mundo-tu
- consultado em 2023-07-14)
2.2. Observe que Carlos Drummond de Andrade recupera a
última estrofe de Tomás Antônio Gonzaga no seu poema. Considerando a relação
intertextual entre ambos os poemas, explique, sem transcrever qualquer excerto
do poema, por que Gonzaga julga o seu coração “maior do que o mundo”.
(Proposta de resposta:
No poema de Gonzaga, o sujeito poético julga o seu coração “maior do que o
mundo” porque o sentimento amoroso idealizado na figura de Marília vai além das
injustiças do mundo. Há a supervalorização do amor e do protagonismo feminino.
Já no poema de Drummond, o sujeito poético reconhece as suas próprias limitações
diante dos problemas da vida. Para se vencer os obstáculos, uma visão coletiva
e não individualista deve prevalecer.)
2.3. Ambos os poemas trazem uma segunda pessoa, “tu”,
para quem cada sujeito poético confessa as suas angústias. No caso de Carlos
Drummond de Andrade, estas angústias também se revelam quanto ao próprio processo
da escrita. Transcreva do poema “Mundo grande” apenas um verso em que se faz
claramente essa referência metalinguística, explicando, com suas palavras, de
acordo com o contexto apresentado, o motivo da angústia.
(Proposta de resposta:
Cita um dos seguintes versos com clara referência metalinguística: “Por isso
gosto tanto de me contar” / “Por isso me dispo” / “por isso me grito” / “por
isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias”
Na segunda parte da questão, deve mencionar que o sujeito
poético tem consciência das mazelas e dores do mundo, e que a sua angústia vem
do sentimento de incapacidade perante os sofrimentos e injustiças dos homens,
que ele considera maiores do que o seu coração.)
2.3. A partir da comparação entre os dois poemas, e
considerando que o coração é metáfora para o sentimento amoroso, identifique
qual o objeto de amor do poeta, tanto no poema “Lira I”, de Tomás Antonio
Gonzaga, como no poema “Mundo grande”, de Carlos Drummond de Andrade.
(Proposta de resposta:
O objeto de amor do poema de Tomás Antônio Gonzaga é Marília, a mulher que o sujeito
poético ama. Já no poema de Carlos Drummond de Andrade, o objeto de amor é todo
o mundo e as suas dores, que o seu coração, pequeno, não suporta.)
(Fonte:
adaptado de UFJF– Módulo III DO PISM – Triénio 2012-2014 – Prova Literaturas.
Disponível em https://www2.ufjf.br/copese/files/2010/04/LITERATURA.pdf -
consultado em 2023-07-14)
Cantiga do amorsemeira nembeira,
vira o mundo
de cabeça parabaixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos
dos homens,
o amor, seja como
for,
é o amor.
Meu bem, não
chores, hoje tem filme
de Carlito!
O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me
constipei. Cardíaco e melancólico,
o amorronca
na horta entrepés
de laranjeira entreuvasmeioverdes
e desejosjámaduros.
Entre uvasmeioverdes, meuamor,
nãote
atormentes. Certosácidos
adoçam
a bocamurcha
dos velhos
e quando os dentesnão mordem
e quando os braçosnão prendem
o amor faz uma cócega
o amordesenha
uma curva
propõe uma geometria.
Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore emtempo
de se estrepar. Pronto, o amor
se estrepou.
Daqui estou vendo sangue que escorre do corpoandrógino.
Essa ferida, meubem,
às vezesnão
sara nunca
às vezes sara amanhã.
Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado, mastambém
vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijosque
se beijam
ouço mãosque
se conversam
e que viajam semmapa.
Vejo muitas outras coisas quenão
ouso compreender...
Carlos Drummond de Andrade
Análise do poema “O amor bate na aorta”
O texto estrutura-se na dicotomiacorpo
vs. alma / concreto
vs. abstrato, partindo de associações sonoras e de sentido:
associaçãosonora
porta/aorta/horta
associação de sentido
aorta/constipei/cardíaco
bocamurcha/velho
corpos/almas/beijos/mãos
As associações de sentido
criam imagens contraditórias:
uvasverdes
desejosmaduros
ácidos
Adoçam
dentes
não mordem
braços
não prendem
O poema é construído
do plano denotativo para
o conotativo e o amor personificado vai
ganhando novasdimensões,
combaseemumprocesso polissémico:
o
amor bate na porta
o amor bate na aorta
o amorronca
na horta
o amor faz uma cócega
o amordesenha
uma curva
o amor propõe uma geometria
e finalmente aparece o amor
irritado, desapontado.
Comojá
vimos, a metáfora pode serdefinidacomo
uma transferência de significadoque
tem comobase
uma analogia. Em
“Amor é bicho instruído”, o campo de abrangência do vocábuloamor é ampliado e toda
a sequência vai mostrar essa característica:
amor = bicho
instruído pulou o muro/subiu na árvore/se estrepou.
Na últimaestrofe
do poema, os versos
seguem esseprocesso
de ampliação, através
da repetição do verbovejo, da presença de nome
e verbocom
o mesmoradical
- beijosque
se beijam - e de uma certaquebraoudesviosemântico
- ouço mãosque
se conversam / e que viajam semmapa - emque as imagens sinestésicas mostram bem
a abrangência a quejános referimos: ouço/mãos/conversam/viajam.
vejo
corpos, vejo almas
vejo beijosque
se beijam
ouço mãosque
se conversam
e que viajam semmapa.
Outro pontoquenoschama a atenção no texto
é o emprego dos temposverbais. O modo
é o indicativo, o modo
da realidade. Umrápido levantamento mostra-nos o predomínio de verbos no
presente, empregado no sentidoatemporal,
comoforma de
generalização. As poucas ocorrências de verbos
no passado, no pretéritoperfeito, portanto
no aspecto concluso, apontam para
as açõesque
se desenvolvem no texto: pulou/subiu/estrepou.
Assim, podemos perceber
no poemaumlado descritivo, plástico,
de quadro à nossafrente, e umoutrolado,
o narrativo, na penúltimaestrofe.
Alguns anos vivi em
Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Porisso
sou triste, orgulhoso:
de ferro.
Noventa porcento
de ferro nas calçadas.
Oitenta porcento
de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é
porosidade e comunicação.
A vontade de amar,
queme
paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suasnoites brancas, semmulheres e semhorizontes.
E o hábito de sofrer,
quetantome diverte,
é doceherança
itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas queorate ofereço: esteSão
Benedito do velhosanteiro
Alfredo Duval; estecouro de anta, estendido no sofá
da sala de visitas; esteorgulho,
esta cabeçabaixa...
Tive ouro, tive gado,
tive fazendas. Hoje sou funcionáriopúblico.
Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mascomo
dói!
Carlos Drummond de Andrade, O Sentimento do Mundo,
1940
Questionário sobre o poema “Confidência do itabirano”:
1.
O sujeito poético autocaracteriza-se.
1.1
Identifique os seustraços
caracterizadores.
1.2Como os justifica?
2
«Tive ouro, tive gado,
tive fazendas» (v. 15)
2.1
Refira as figuras de estilopresentes
na expressão e explique o seuvalorexpressivo.
3.Quesentimentos
dominam o «eu» no tempopresente?
4.Você está de acordocom o título?
Porquê?
5.
Mostre que, no poema,
o passado alterna com
o presente.
5.1.
Justifique essa alternância.
6.
Explicite a razãopelaqual a palavra
Itabira se repete ao longo do texto, sendo também
substituída pelo adjetivo gentílico
«itabirana».
6.1
Identifique as formasverbais da 1.ª pessoaque se repetem.
6.1.1 Justifique a repetição.
Chave de correção:
1.1Triste, orgulhoso,
duro, solitário,
carente de afecto, sofredor, sentimentalista, crente,
tímido, saudoso
da suaterranatal e de tudo
o que possuiu.
1.2.Como «produto»
das características da terraonde nasceu e viveu algunsanos.
2.1.
É a repetição anafórica e enumeração. Consiste na reiteração da ideia de posse. Esta reiteração intensifica a valorização da perdaque se
reflecte no presente.
3.Nostalgia de umpassado de quesóresta
«uma fotografia na parede».
4.Sim. Porque
o texto é autobiográfico,
é um registo da identificação
do «eu» poético com
o espaçoonde
nasceu.
Outro dia
fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto
lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até
Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar
lindo, de Lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de
cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.
Depois
que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou um sinal fechado para
voltar-se para mim:
– O
senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar
lá em cima?
Confirmei:
sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura,
perfeita e linda.
– Mas,
que coisa. . .
Ele
chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois
continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava
em outra coisa.
– Ora,
sim senhor. . .
E, quando
saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um
"muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu
lhe tivesse feito um presente de rei.
Rubem Braga, “A outra noite”, PARA
gostar de ler: Crônicas. São Paulo, Ática, 1979
___________
Torpe: repugnante
Veementes: animados
MENSAGEM
A RUBEM BRAGA
Rio de Janeiro, 1954
Os doces montes cônicos de feno (Decassílabo
solto num postal de Rubem Braga, da Itália.)
A meu amigo Rubem Braga
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
No Vermelhinho. Digam-lhe que a menina da caixa
Continua impassível, mas Caloca acha que ela está melhorando
Digam-lhe que o Ceschiatti continua tomando chope, e eu também
Malgrado uma avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado.
Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda
das saias curtas
E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
O diabo é de manhã, quando se sai para o trabalho, dá uma tristeza, a
rotina: para a tarde melhora.
Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga
Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
Na claridade matinal. Digam-lhe que o mar no Leblon
Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos
Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
A gente se aguenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
Contra os escritores mineiros: ele ia gostar. Digam-lhe
Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na rua Larga
Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).
Mas em compensação estive depois com o Aníbal
Que embora não dê para alimentar ninguém, é um amigo.
Digam-lhe que o Carlos
Drummond tem escrito ótimos poemas, mas eu larguei o Suplemento.
Digam-lhe que está com cara de que vai haver muita miséria-de-fim-de-ano
Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Compadre está na insulina
Mas que a Comadre está linda. Digam-lhe que de quando em vez o Miranda passa
E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
A meu amigo Rubem Braga, que comi camarões no Antero
Ovas na Cabaça e vatapá na Furna, e que tomei plenty coquinho
Digam-lhe também que o Werneck prossegue enamorado, está no tempo
De caju e abacaxi, e nas ruas
Já se perfumam os jasmineiros. Digam-lhe que tem havido
Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
À solta. Digam-lhe especialmente
Do azul da tarde carioca, recortado
Entre o Ministério da Educação e a ABI. Não creio que haja igual
Mesmo em Capri. Digam-lhe porém que muito o invejamos
Tati e eu, e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo sargento. Oh
Digam a meu amigo Rubem Braga
Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto lutador
Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
Não mandar buscar Zorinha e Roberto antes, que certamente
Os levaremos conosco, que quero muito
Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
A meu amigo Rubem Braga que é pena estar chovendo aqui
Neste dia tão cheio de memórias. Mas
Que beberemos à sua saúde, e ele há de estar entre nós
O bravo capitão Braga, seguramente o maior cronista do Brasil
Grave em seu gorro de campanha, suas sobrancelhas e seu bigode circunflexos
Terno em seus olhos de pescador de fundo
Feroz em seu focinho de lobo solitário
Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu
cavalheirismo
Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos de
feno
Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
Do Rio, de nós todos e ai! de mim.
A Carta está
datada de Vera Cruz, 1 de maio de 1500, e assinada por Pêro Vaz de Caminha,
escrivão da feitoria de Calecut, enviado por D. Manuel na armada de Pedro
Álvares Cabral.
O manuscrito
ficou três séculos depositado no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, tendo
sido publicado apenas em 1817 por historiadores brasileiros.
Desde
então, a Carta tem sido objeto de estudo, análise, interpretação e recriação
por diversos autores.
Reproduzimos
aqui alguns textos que se inspiraram na Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei
D. Manuel sobre o achamento do Brasil.
- De Oswald Andrade: “Pero Vaz Caminha” (1925) e “Erro de
português” (1927);
- De Cassiano Ricardo: "Ladainha" (1928);
- De Murilo Mendes: “Carta de Pero Vaz” (1932);
- De Sophia de Mello Breyner Andresen; “Descobrimento” (1967),
- De Manuel Alegre: “Nova do Achamento” (1979);
- De Fernando Bonassi:
“003 turismo ecológico” (1995-2001) e “134 historinha do brasil” (1998-2001);
- De Rui Rasquilho: “Rio Caí” (1997);
- De Sérgio Natureza/Tunai e interpretado por Elis Regina: “Lembre-se” (1998);
- De Luís Filipe Castro Mendes: “Carta de Pêro Vaz de Caminha”
(2000).
Reproduzimos no final a Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D.
Manuel sobre o achamento do Brasil e um verbete da Infopédia sobre a mesma.
a
descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
Oswald Andrade, Pau-brasil, 1925.
Obras Completas. Vol 7. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971, p. 80
Textos de apoio sobre o poema “Pero Vaz
Caminha”, de Oswald Andrade
A
referência tomada por Oswald de Andrade é clara: o nome do escrivão
transforma-se no título de uma das poesias de Pau-Brasil, obra em que o
autor coloca em prática as ideias postuladas em seus dois manifestos, aqui
citados. O livro é apresentado com os dizeres “por ocasião da descoberta do
brasil”, grafado em letras minúsculas, e divide-se em alguns momentos. O que
mais nos interessa é o primeiro deles, História do Brasil, composto por
oito poemas. Todos eles apresentam uma relação intertextual explícita com
textos quinhentistas, percetível pelos títulos que recebem. O que inicia a
série é Pero Vaz Caminha. A paródia, e a consequente
transcontextualização, são operadas a partir de seu nome e de suas quatro
estrofes, nomeadas isoladamente.
“Caminhos da (re)exploração: A Carta em Caminha,
Oswald e Bonassi”, Natasha Rocha e Vanderléia Oliveira. LETRAS & LETRAS
(http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras) - v. 31, n. 1 (jan/jun. 2015)
- ISSN 1981-5239
***
O poema “Pero Vaz Caminha” faz
parte do livro Pau-brasil, publicado em 1925 por Oswald de Andrade
(1890-1954), um dos principais nomes do modernismo brasileiro. O livro propõe
uma revisão da história e da cultura do Brasil, a partir de uma perspetiva
crítica, irónica e antropofágica. A antropofagia, nesse sentido, é uma metáfora
para a ideia de devorar e assimilar as influências estrangeiras, sem perder a
originalidade e a identidade nacional.
O poema é composto por quatro
partes, que reproduzem trechos da carta de Pero Vaz de Caminha, o escrivão que
registrou o descobrimento do Brasil em 1500. Cada parte tem um título que
resume o tema ou o acontecimento narrado. O poeta usa a técnica do recorte e da
colagem, que consiste em selecionar e reorganizar fragmentos de um texto
original, criando um novo sentido ou efeito. O poeta também usa a paródia, que
é uma imitação cómica ou crítica de um texto ou estilo literário.
A primeira parte, “a
descoberta”, apresenta o momento em que os portugueses avistam a terra pela
primeira vez. O poeta mantém a linguagem arcaica e formal da carta original,
mas suprime os detalhes e as explicações. O resultado é um relato sucinto e
objetivo, que contrasta com o tom solene e reverente da carta.
A segunda parte, “os selvagens”,
mostra o primeiro contato entre os portugueses e os indígenas. O poeta reproduz
a cena em que os portugueses mostram uma galinha aos nativos, que ficam
assustados e curiosos. O poeta destaca a diferença cultural e a ingenuidade dos
indígenas, que não conhecem nem temem os animais domésticos dos europeus.
A terceira parte, “primeiro
chá”, narra o episódio em que os portugueses oferecem uma bebida aos indígenas,
provavelmente vinho ou aguardente. O poeta usa a expressão “salto real” para se
referir ao efeito da bebida sobre os nativos, que ficam embriagados e dançam. O
poeta ironiza a atitude dos portugueses, que se aproveitam da situação para
explorar e dominar os indígenas.
A quarta parte, “as meninas da
gare”, descreve a aparência física e sexual das mulheres indígenas. O poeta usa
termos vulgares e eróticos para retratar o corpo das nativas, que não usam
roupas nem se envergonham de sua nudez. O poeta também revela o olhar cobiçoso
e lascivo dos portugueses, que não respeitam nem valorizam a cultura e a
dignidade das mulheres indígenas.
O poema, portanto, faz uma
crítica à colonização portuguesa no Brasil, mostrando como os portugueses se
comportaram de forma violenta, exploradora e desrespeitosa com os indígenas. O
poema também questiona a visão eurocêntrica e idealizada da história oficial,
propondo uma leitura mais crua e realista dos fatos. O poema também expressa
uma identidade brasileira híbrida e diversa, formada pela mistura de diferentes
povos e culturas.
Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Oswald de Andrade, Primeiro caderno de poesia do aluno
Oswald de Andrade, 1927.
Texto de apoio sobre o poema “Erro de
português”, de Oswald de Andrade
O
poema com o título “Erro de português”, de Oswald de Andrade, faz alusão a um
facto histórico do seguinte excerto da Carta de Pero Vaz de Caminha: “Na noite
seguinte, ventou tanto sueste, com chuvaceiros, que fez caçar as naus, e
especialmente a capitânia”. (Registo do dia 23 de abril de 1500, relativo ao
contato entre ameríndios e portugueses na época).
O
título do poema, "Erro de Português", pode ser interpretado como uma
crítica à visão eurocêntrica da história, que considera a chegada dos
portugueses ao Brasil como um evento "correto" ou
"acertado". A ideia de que os portugueses erraram o caminho das
Índias e acabaram por chegar ao Brasil sugere que a colonização foi um erro ou um
equívoco.
A
oposição entre "vestir" e "despir" também indica a relação
de poder entre os colonizadores e os colonizados, uma vez que o índio se veste
para se adequar às normas do colonizador.
Ironicamente,
o poeta sugere que se os portugueses tivessem chegado num dia de sol, debaixo
de um calorão danado, os portugueses é que teriam imitado os índios e tirado as
roupas.
A
perspetiva diferente da cultura indígena apresentada no poema sugere uma
crítica à visão colonialista e uma valorização da diversidade cultural.
Ladaínha CASSIANO RICARDO
Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome de
ilha de Vera-Cruz.
Ilha cheia de graça
Ilha cheia de pássaros
Ilha cheia de luz. Ilha verde onde havia
mulheres morenas e nuas
anhangás a sonhar com histórias
de luas
e cantos bárbaros de pajés em
poracés batendo os pés.
Depois mudaram-lhe o nome pra
terra de Santa Cruz. Terra
cheia de graça Terra
cheia de pássaros Terra
cheia de luz.
A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e
onças ruivas deitadas à sombra das árvores mosqueadas de sol
Mas como houvesse em abundância,
certa madeira cor de sangue, cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
deram-lhe o nome de Brasil.
Brasil
cheio de graça Brasil
cheio de pássaros Brasil
cheio de luz.
Cassiano Ricardo (1895-1974), Martim Cererê (1.ª
edição: 1928).
12.ª edição: Rio de Janeiro: José Olympio Editora - INL, 1972, p. 33.
Texto de apoio sobre o poema "Ladainha",
de Cassiano Ricardo
O
poema "Ladainha", de Cassiano Ricardo, presente no livro Martim
Cererê, apresenta uma visão poética da história do Brasil a partir das
diferentes denominações que a terra recebeu. Inicialmente, a ilha é apresentada
como "Ilha cheia de graça / Ilha cheia de pássaros / Ilha cheia de
luz", um lugar paradisíaco com mulheres morenas e nuas e cantos bárbaros
de pajés. Porém, com a chegada dos colonizadores portugueses, a terra é
renomeada para "Terra de Santa Cruz", mas ainda mantendo as
qualidades descritas anteriormente.
No
entanto, a descoberta de uma madeira cor de sangue e a gentileza da Terra levam
os portugueses a dar um novo nome ao lugar: Brasil. A partir daí, o poema
repete a mesma estrutura de apresentação das qualidades da terra, agora sob a
nova denominação.
A
escolha da forma de uma ladainha, uma forma religiosa de oração, sugere a
importância histórica e simbólica do evento do descobrimento do Brasil. Além
disso, a repetição das características da terra sob diferentes nomes reforça a
ideia de que a identidade do país está intrinsecamente ligada às suas
qualidades naturais e culturais.
Porém,
é importante notar que o poema também faz referência às consequências da
colonização, ao apresentar inicialmente a cultura indígena e depois a presença
dos guerreiros de tanga e onças ruivas, sugerindo a destruição da cultura
original pelo invasor. Ao mesmo tempo, a escolha da palavra "gentil"
para descrever a Terra também sugere uma idealização do indígena,
caracterizando-o como um povo pacífico e amigável, o que pode ser visto como
uma forma de romantizar a colonização e minimizar as atrocidades cometidas
pelos colonizadores.
Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023
Descobrimento do Brasil, Moesio Fiuza
Carta de Pero Vaz MURILO MENDES
A terra é mui graciosa,
Tão fértil eu nunca vi.
A gente vai passear,
No chão espeta um caniço,
No dia seguinte nasce
Bengala de castão de oiro.
Tem goiabas, melancias,
Banana que nem chuchu.
Quanto aos bichos, tem-nos muito,
De plumagens mui vistosas.
Tem macaco até demais
Diamantes tem à vontade
Esmeralda é para os trouxas.
Reforçai, Senhor, a arca,
Cruzados não faltarão,
Vossa perna encanareis,
Salvo o devido respeito.
Ficarei muito saudoso
Se for embora daqui.
Murilo Mendes, História do Brasil, 1932
Texto de apoio sobre o poema “Carta de
Pero Vaz”, de Murilo Mendes
A
“Carta de Pero Vaz”, de Murilo Mendes, é um poema que retrata a chegada dos
portugueses ao Brasil, através da perspectiva do escrivão Pero Vaz de Caminha,
que descreve as maravilhas da nova terra na sua carta ao rei de Portugal.
O
poema inicia com uma declaração de encantamento e admiração pela terra
brasileira. Pero Vaz destaca a fertilidade do solo, afirmando que nunca viu uma
terra tão graciosa e fértil. O poema segue com a descrição da exuberância da
fauna e flora brasileiras, destacando a presença de diversas frutas como
goiabas, melancias e bananas, além de uma grande variedade de animais,
incluindo macacos e aves de plumagens coloridas.
A
referência aos diamantes e esmeraldas no poema revela a cobiça dos portugueses
pela riqueza da nova terra. A expressão “esmeralda é para os trouxas” denota a
esperteza dos portugueses, que consideravam as esmeraldas de pouco valor, por
serem abundantes no Brasil, enquanto os diamantes eram mais raros e valiosos.
No
verso 14, o sujeito poético dirige-se ao rei de Portugal, pedindo-lhe que
reforce a arca para guardar os cruzados (moedas de ouro) que não faltarão. O
sujeito poético usa uma linguagem familiar e irreverente para se dirigir ao
rei, ao usar a expressão “Vossa perna encanareis”, sugerindo que ele vai
“encanar” (enriquecer), mas também usa uma expressão de respeito (“Salvo o
devido respeito”) para atenuar sua ousadia. Com isto, o texto satiriza a
submissão e a bajulação dos portugueses ao rei.
Por
fim, o sujeito poético expressa a sua saudade da terra e a sua vontade de ficar
nela, contrariando a expectativa de que os portugueses queriam voltar para a sua
terra natal depois de cumprir a sua missão.
Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023
Descobrimento SOPHIA DE MELLO BREYNER
ANDRESEN
Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam suas crinas nos alísios
O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados
Sophia de Mello Breyner Andresen, “VI -
Brasil ou do outro lado do mar” in Geografia, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições
Ática • 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições
Salamandra, ilustrações de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., revista, 2004,
Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.),
Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço
Texto
de apoio sobre o poema “Descobrimento”,
de Sophia de Mello Breyner Andresen
O poema “Descobrimento”, de Sophia de
Mello Breyner Andresen, é uma reflexão sobre a chegada dos portugueses ao
Brasil em 1500.
O poema é composto por três estrofes e
descreve a viagem dos portugueses pelo oceano Atlântico e sua chegada ao
Brasil.
A imagem inicial de "um oceano de
músculos verdes" e um "ídolo de muitos braços como um polvo"
sugerem um ambiente selvagem, caótico e desconhecido. A descrição do "caos
incorruptível que irrompe" reforça a ideia de uma natureza indomada, mas
que ao mesmo tempo é capaz de um "tumulto ordenado", uma dança
contorcida em volta dos navios.
Atravessando fileiras de cavalos que
sacudiam suas crinas nos alísios, os navegadores deparam-se com um mar que se
torna "muito novo e muito antigo" para mostrar as praias e um povo de
“homens recém-criados ainda cor de barro / ainda nus ainda deslumbrados”. A
imagem de homens recém-criados é uma metáfora para o momento em que a cultura
europeia entrou em contacto com novos povos, ainda não moldados pelas
influências da civilização ocidental.
"Descobrimento" é um poema que
evoca a ambiguidade e a complexidade da experiência da descoberta, ao mesmo
tempo em que celebra a beleza e a majestade da natureza.
Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023
Nova do Achamento MANUEL ALEGRE
(Quarta-feira, 22 de abril)
Sabei porém que foi um sobressalto
E tremo ainda ao pô-lo no papel.
Vimos primeiro um monte muito alto
E outras serras mais baixas ao sul dele.
Vimos depois as serras terra chã
Muito formosa e cheia de arvoredos.
Era a luz a surgir de seus segredos
E em nós embora tarde era manhã.
Nem sei dizer Senhor o espanto e os medos.
Achar Senhor é pão que mata a fome
Da ânsia de mais mundo e de mais luz.
E ao monte grande o Capitão pôs nome
De Pascoal. E à terra de Vera Cruz.
Manuel Alegre, Nova do Achamento (Carta de Pêro Vaz de
Caminha a el-rei D. Manuel). Lisboa, Publicações Europa-América, [1979]
Texto de apoio sobre o
poema “Nova do Achamento”, de Manuel Alegre
O
poema "Nova do Achamento", de Manuel Alegre, é uma reinterpretação
lírica da Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel, que relata a
descoberta do Brasil em 1500. O poema é escrito na primeira pessoa e o eu
lírico é Pêro Vaz de Caminha. “O verso decassílabo sustenta o tom épico, assim
como a manutenção da divisão em diário.” (Ribeiro: 2002)
A
primeira estrofe descreve a vista do monte e das serras ao sul, e a segunda
estrofe destaca a beleza da terra com suas árvores e a luz que surge dos seus
segredos. A terceira estrofe evoca a emoção e o medo dos navegadores diante do
desconhecido, e a última estrofe menciona o batismo do monte como Pascoal e da
terra como Vera Cruz.
O
poema de Manuel Alegre apresenta uma visão idealizada e poética da chegada dos portugueses
ao Brasil, que contrasta com a visão histórica da colonização como um processo
de exploração e dominação. Por exemplo, na segunda estrofe do poema, o autor
descreve a beleza da terra com suas árvores e a luz que surge dos seus
segredos, o que sugere uma visão bucólica e poética dos primeiros contatos
entre portugueses e indígenas. Essa descrição idealizada contrasta com a
realidade histórica de que a chegada dos portugueses ao Brasil foi marcada por
conflitos e violência contra os povos indígenas. Além disso, a simplicidade da
linguagem utilizada no poema, sem muitos elementos de figuras de linguagem e
com predominância de palavras simples, também sugere uma visão mais ingénua e
idealizada dos primeiros contatos entre portugueses e indígenas. A descrição
dos medos e espantos dos navegadores diante do desconhecido, presente na
terceira estrofe, também evoca uma visão mais romântica e sentimental da
chegada dos portugueses ao Brasil.
No
entanto, essa visão idealizada é desafiada pela última estrofe, que menciona o
ato de batismo do monte e da terra pelos portugueses. Essa referência sugere
que a chegada dos portugueses ao Brasil também implicou na imposição da sua
cultura e da sua religião sobre os povos indígenas, o que cria um contraponto à
visão poética e bucólica apresentada anteriormente.
Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023
003 turismo ecológico FERNANDO BONASSI
Os
missionários chegaram e cobriram das selvagens o que lhes dava vergonha. Depois
as fizeram decorar a ave-maria. Então lhes ensinaram bons modos, a manter a
higiene e lhes arranjaram empregos nos hotéis da floresta, onde se chega de
uísque em punho. Haveria uma lógica humanitária exemplar no negócio, não fosse
o fato de as índias começarem a deitar-se com os hóspedes. Nada faz com que
mudem. Seus maridos, chapados demais, não sentem os cornos. De qualquer
maneira, todos levam o seu. Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter
perdido outra chance. (Cuiabá – Brasil – 1995)
Fernando
Bonassi, Passaporte: relatos de viagens. São Paulo: Cosac Naify, 2001
Texto de apoio sobre a minificção “003
turismo ecológico”, de Fernando Bonassi
O
que acontece nas minificções de Passaporte, de Fernando Bonassi, é um
misto de uma releitura embebida do mal-estar da contemporaneidade e alusões ao
texto do escrivão português.
Percebe-se
que algumas figuras e expressões reaparecem nesse texto. Uma delas, por meio da
qual a intertextualidade mais explícita com a Carta ocorre é, novamente,
a retomada do termo vergonha, presente logo no início do texto. A partir
do segundo período da minificção percebe-se um rompimento temporal. O contexto
de missão exploratória deixa de ser o quinhentista e passa a ser o atual, já
que as índias, uma vez doutrinadas por outros valores são realocadas em
empregos comuns – e aqui já não é possível afirmar que são valores de um
colonizador, pois o espaço-tempo foi atualizado. […]
Ao
contrapor as visões do sagrado em turismo ecológico e na Carta percebe-se
uma grande alteração de tratamento. O tom respeitoso desenvolvido no texto
quinhentista para falar da religião é completamente abandonado no texto de
Fernando Bonassi. A intertextualidade entre esses elementos é temática, mas não
só pela retomada dos termos textuais. A atualização ocorre pela evidência do
fracasso da figura divina como força doutrinante. Se a missão quanto aos índios
era catequizá-los, fazê-los cristãos crentes na santa fé católica e “cuidar da
sua salvação”, como queria Pero Vaz, para fazer dos indígenas uma população
civilizada, sucursal europeia, seu fracasso foi registrado no texto de Passaporte.
Asseverar que “Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter perdido
outra chance” (BONASSI, 2001, n.p.) corresponde a afirmar que todo projeto
empreendido a salvar o outro daquilo que se julga pecado, baixeza ou selvageria
está fadado ao fracasso. Principalmente quando a ferramenta utilizada para
fazê-lo são as instituições religiosas.
“Caminhos da (re)exploração: A Carta em Caminha,
Oswald e Bonassi”, Natasha Rocha e Vanderléia Oliveira. LETRAS & LETRAS
(http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras) - v. 31, n. 1 (jan/jun. 2015)
- ISSN 1981-5239
J. Bosco
134 historinha do brasil FERNANDO BONASSI
Três
caravelas lotadas de badulaques partem de uma Europa recém-saída de mais uma
escuridão e ávida por molho pardo condimentado. Um povo americano de sangue bom
demais vai à praia com as vergonhas de fora. Os marujos chupam limão, apesar
dos dentes podres. Os ameríndios procuram no além-mar outros paraísos que os
confortem, apesar da superprodução de bananas. Do encontro desses esfuziantes
destroços, nascem minúsculas povoações cheias de ideias, academias e três
refeições por dia, cercadas de fome e burrice por todos os lados. (Belém-
Portugal- 1998)
Fernando Bonassi, Passaporte: relatos de viagens. São
Paulo: Cosac Naify, 2001
Texto
de apoio sobre a minificção “134 historinha do brasil”, de Fernando Bonassi
O
texto de Bonassi começa pelas três caravelas, elementos identificadores
inequívocos e quase caricatos da expedição portuguesa do descobrimento do
Brasil. A seguir, os aspectos elementares cedem lugar a dados históricos
permeados por crítica ferina. Os “badulaques” não eram senão bugigangas
destinadas a impressionar os selvagens de uma terra distante, expondo um jogo
onde contavam a esperteza do conquistador e a ingenuidade do conquistado, como
se percebe adiante em “um povo americano de sangue bom demais”.
Os
civilizados europeus são reduzidos, em poucas palavras, a representantes de uma
cultura de valores duvidosos, posto que “recém-saída de mais uma escuridão” e,
sobretudo, nem ao menos autossuficientes, pois é sabido que partiram para as
Índias em busca de fornecedores de alimentos e especiarias, uma vez que a
Europa vivia um período de fome àquela época. Nesse relato, os
europeus(encantados com as frutas tropicais, como o limão), nada têm a ver com
a beleza europeia (branca e de olhos azuis) dos filmes hollywoodianos ou do
imaginário brasileiro, mas são descritos como marujos de dentes podres, uma
forma descritiva bastante realista a respeito da colonização do território
brasileiro, iniciada por dois portugueses degredados deixados com os índios
para aprender-lhes a língua, além de dois grumetes que fugiram da frota
cabralina que seguiria para as Índias (SILVA, 2004, p. 14).
A
cultura indígena também recebe críticas, pois embora não estivessem em
expedição à procura de novos mercados fornecedores de alimentos, os indígenas
possuíam em sua cultura aspectos facilitadores do fatídico contato com os
europeus, como crenças que profetizavam a chegada de deuses barbudos vindos do
mar destinados a governar todas as tribos. Este cenário antropológico,
ironicamente denominado “esfuziantes destroços”, resultaria, na visão do autor,
num encontro cultural capaz de dar início a novas formas de pensamento e
comportamento legitimadores de uma estrutura social alimentada “de fome e
burrice por todos os lados” subjacente à história da sociedade brasileira.
Encontrada
a terra
Na coincidência da Páscoa
Caminha olhou da grande nau
A praia
E escreveu ao Rei
Nu
O dono da terra
Olhou o branco marítimo
Trazido pelo vento
A praia clareava a floresta
Junto do mar
Enfeitada de penas e flechas
De espadas
No vermelho branco do encontro
A surpresa não teve fingimento
Na vertigem do silêncio da palavra
O Rei
Leu a carta de Caminha
E ordenou a invenção da história
Como se nada fosse o que era
Rui Rasquilho,
25 Poemas brasileiros e uma saga lusitana. Brasília, DF: Thesaurus, 1997
Texto de apoio sobre o poema “Rio Caí”, de
Rui Rasquilho
Rui
Rasquilho é um poeta, historiador e diplomata português, nascido em 1945. Ele
escreveu 25 Poemas brasileiros e uma saga lusitana em 1997, quando era
diretor do Instituto Camões no Brasil. O poema Rio Caí faz parte dessa obra e é
uma reflexão sobre o encontro entre os portugueses e os indígenas na costa
brasileira em 1500.
O título do poema é uma referência ao Rio Cahy, cujo nome é uma palavra de origem indígena. A palavra “Cahy” provém do tupi-guarani e significa “caminho do rio”.
“Os rios
são um estímulo à colonização de uma região, pois a água é fundamental para a
sobrevivência. O Rio Caí, portanto, teve influência decisiva no movimento
migratório para área de abrangência de sua bacia. De forma parcial ou total, 42
municípios da região da Serra e do Vale do Caí utilizam suas águas.” (https://jornalibia.com.br/cadernos/especiais/rio-cai-e-cenario-de-muitas-e-boas-historias-na-regiao/)
Logo no
início do poema, é evocada a figura de Caminha, o cronista da expedição
portuguesa que chegou ao Brasil em 1500. A referência à coincidência da Páscoa
indica que a chegada dos portugueses foi vista como um evento sagrado e
providencial, que marcou o início de uma nova fase na história do país.
De
seguida, o poema evoca a figura do "dono da terra", o índio que
observou “o branco marítimo /trazido pelo vento”.
A
descrição da praia enfeitada de "penas e flechas / De espadas" sugere
uma tensão entre os povos indígenas e os colonizadores, que acabaria por marcar
a história do Brasil por séculos. A referência ao "vermelho branco do
encontro" sugere a ideia de que a chegada dos portugueses trouxe consigo
uma mistura de culturas e sangue. A "vertigem do silêncio da palavra"
pode ser vista como uma referência à complexidade e à ambiguidade das relações
coloniais, em que o entendimento mútuo era difícil ou mesmo impossível.
Por fim,
o poema sugere que a história do Brasil foi "ordenada" ou inventada
de acordo com os interesses dos colonizadores, de forma a legitimar a
exploração e a dominação dos povos indígenas. A frase "Como se nada fosse
o que era" sugere a ideia de que a história oficial pode esconder ou
distorcer a verdade dos factos, criando uma realidade que não corresponde
totalmente à experiência dos povos que a viveram.
Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023
Longe...
Sombras desenhadas no horizonte
Cavalos cobertos de ouro e bronze
Vassalos de um rei de não sei onde
Cavaleiros estrangeiros
A bandeira de um invasor
Noite...
E um tropel atravessa a fumaça
Tropas...
Tropeçando num céu de fogo e prata
O mundo acabou de repente,
Quando a manhã começava
A dor começou
Com o chicote, com as esporas, com as espadas
Terror das legiões
Das ambições e praças
Chagas no seio de uma terra abençoada
O céu desabou
De repente, quando a gente levantava
O pó levantou, sufocando quem vivia, respirava
Passou...
O tempo, mas não apagou a marca
Marcou...
Marcou nos corações, nas mentes e nas praças
Hoje...
Na memória viva de uma raça
Um pavor latente
Uma ameaça
E um canto maior que todo o medo
Espalhando amor por onde passa.
Elis Regina,
Elis vive, WEA International Inc., 1998.
Composto por Sérgio Natureza / Tunai.
O álbum Elis Vive é o registo ao vivo do concerto que a artista fez no
Anhembi, em 1979, dentro da turné Elis, Essa Mulher.
Texto de apoio sobre a canção “Lembre-se”, de Sérgio Natureza /
Tunai e interpretada por Elis Regina
A canção
"Lembre-se", interpretada por Elis Regina, é uma reflexão sobre as
consequências da invasão e colonização em terras abençoadas e o
sofrimento das pessoas que viveram essa história. Escrita por Sérgio Natureza e
Tunai, a música apresenta uma narrativa sombria, marcada por imagens de
cavaleiros estrangeiros, tropas e um céu de fogo e prata. A letra sugere um
mundo que acabou repentinamente e deixou para trás marcas profundas.
A canção foi gravada
ao vivo, em 1979, durante o período da ditadura militar no Brasil, e pode ser
vista como uma forma de resistência e de valorização das raízes nacionais.
Assim, a canção enfatiza a importância da memória, do amor e da resistência
como forma de enfrentar o medo e a opressão.
Há diversas imagens
que remetem para a história do Brasil. Por exemplo:
- as “sombras
desenhadas no horizonte” podem representar os navios portugueses chegando ao
litoral brasileiro;
- os “cavalos
cobertos de ouro e bronze” podem simbolizar a riqueza e o poder dos
colonizadores;
- o “tropel
atravessa a fumaça” pode sugerir a violência e a destruição causadas pela
invasão;
- o “céu de fogo
e prata” pode aludir às armas e às riquezas exploradas pelos portugueses;
- o “chicote”,
as “esporas” e as “espadas” podem evocar a opressão e a escravidão dos
indígenas e dos africanos;
- o “pó levantou
sufocando quem vivia” pode indicar a morte e o sofrimento dos nativos;
- a “marca” que
não se apagou pode se referir à herança cultural deixada pelos colonizadores;
- o “pavor
latente” pode expressar o medo de novas invasões ou ditaduras;
- e o “canto
maior que todo medo” pode significar a esperança e a resistência do povo
brasileiro.
Parque Xcaret, Cancún - México
Carta de Pêro Vaz de Caminha LUÍS FILIPE CASTRO MENDES
É equívoca a ternura. Demasiados gestos
Para uma só palavra.
E agora que será de nós? Ficar aqui?
Esta terra contém água em demasia.
Prefiro a inteireza da pedra. Mas que podemos nós
fazer
Quando as palavras sobram
E o amor acontece?
Texto
de apoio sobre o poema “Carta de Pêro Vaz de Caminha”, de Luís Filipe Castro
Mendes
O
poema "Carta de Pêro Vaz de Caminha", de Luís Filipe Castro Mendes,
apresenta uma abordagem interessante da história do descobrimento do Brasil e,
mais especificamente, da figura de Pêro Vaz de Caminha, que escreveu a famosa
carta relatando a chegada dos portugueses ao novo continente. O poema, no
entanto, não é uma mera reinterpretação histórica, mas uma reflexão poética
sobre a natureza da ternura, do amor e da linguagem.
O
poema começa com uma observação intrigante sobre a "equívoca
ternura", que é representada como algo que se desdobra em demasiados
gestos para uma só palavra. Essa ambiguidade parece ser uma metáfora para a
complexidade das relações humanas e a dificuldade de expressar os sentimentos
de forma clara e concisa. A partir daí, o poema passa a questionar o destino
dos personagens históricos envolvidos na descoberta do Brasil e a relação deles
com a terra recém-descoberta.
O
poema aborda a questão da água em excesso na nova terra, que é apresentada como
uma característica que perturba a integridade e a estabilidade da pedra. A
escolha da pedra como contraposição à água sugere uma busca por algo sólido e
permanente, em oposição à fluidez e à incerteza que a água representa. Essa
tensão entre o sólido e o fluido, o estável e o mutável, é uma das principais
temáticas do poema.
Por
fim, o poema chega a uma conclusão que é ao mesmo tempo desafiadora e
esperançosa. As palavras, que anteriormente pareciam sobrar, são apresentadas
como o meio através do qual o amor acontece. Esse final sugere que, apesar da
dificuldade de expressar a ternura e a complexidade das relações humanas, é
através da linguagem que podemos encontrar algum sentido e significado para
nossas experiências.
Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4185836
Carta a
el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil PÊRO
VAZ DE CAMINHA
Senhor:
Posto que o capitão
desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do
achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não
deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, o melhor que eu puder,
ainda que – para o bem contar e falar – o saiba fazer pior que todos.
Tome Vossa Alteza,
porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para alindar
nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem[1] e
singraduras[2]
do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e
os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo
e digo:
A partida de Belém,
como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês,
entre as oito e as nove horas, nos achámos entre as Canárias, mais perto da
Grã-Canária, onde andámos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três
a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos,
houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de São Nicolau,
segundo o dito de Pêro Escolar, piloto.
Na noite seguinte,
segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau,
sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão
suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!
[Terça-feira, 21 de abril de 1500. Sinais de terra]
E assim seguimos
nosso caminho, por este mar, de longo[3], até
que, terça-feira das Oitavas de Páscoa[4], que
foram 21 dias de abril, estando da dita ilha obra de seiscentas e sessenta ou
seiscentas e setenta léguas, segundo os pilotos diziam, topámos alguns sinais
de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes
chamam botelho[5],
assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno[6]. [Quarta-feira, 22 de abril]
E, quarta-feira seguinte, pela manhã topámos aves a que chamam fura-buxos[7].
Neste dia, a horas
de véspera[8],
houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e
doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos:
ao monte alto o capitão pôs nome – o MONTE PASCOAL – e à terra – a TERRA DA
VERA CRUZ.
[Quinta-feira, 23 de abril]
Mandou lançar o
prumo. Acharam vinte e cinco braças[9], e, ao
sol-posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras[10], em
dezanove braças – ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à
quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os
navios pequenos diante, por dezassete, dezasseis, quinze, catorze, treze, doze,
dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançámos âncoras em
frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais
ou menos.
Dali avistámos
homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios
pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançámos fora
os batéis e esquifes[11]; e
vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde falaram
entre si. E o capitão- -mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver
aquele rio. E tanto que[12] ele
começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos
três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou
vinte homens.
Eram pardos[13], todos
nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas[14]. Nas
mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente[15] sobre o
batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os
pousaram.
Ali não pôde deles
haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes
somente um barrete[16]
vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro[17] preto.
Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena
de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal[18] grande
de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira[19], as
quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às
naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
[Sexta-feira, 24 de abril]
Na noite seguinte
ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus[20], e
especialmente a capitânia.
E sexta pela manhã,
às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão
levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes
amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada[21] e bom
pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas
por aqui nos acertarmos[22].
Quando fizemos
vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta
homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo[23], e
mandou o capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se
achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E, velejando nós
pela costa, acharam os ditos navios pequenos, obra de dez léguas do sítio donde
tínhamos levantado ferro, um recife[24] com um
porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se
dentro e amainaram[25]. As
naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol-posto amainaram também, obra
de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.
E estando Afonso
Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do capitão,
por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto
dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam
numa almadia[26].
Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com
seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão,
em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é
serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. Andavam nus, sem cobertura alguma[27]. Não
fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta
inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e
metidos neles seus ossos brancos[28] e
verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão,
agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a
parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez[29], ali
encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou
no beber.
Os cabelos seus são
corredios[30].
E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura
e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa[31], de
fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas,
que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o
toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma
confeição branda como cera[32] (mas
não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual,
e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O capitão, quando
eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro
mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar,
Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau
com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram.
Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém
um deles pôs olho no colar do capitão, e começou de acenar com a mão para a
terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro[33]. Também
olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para terra e novamente
para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um
papagaio pardo que o capitão traz consigo; tomaram-no na mão e acenaram para a
terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram
caso. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a
mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de
comer: pão e peixe cozido, fartéis[34], mel e
figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e se alguma coisa
provavam, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram
a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma
albarrada[35].
Não beberam. Mal a tomarem na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas
contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e
lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a
terra e de novo para as contas e para o colar do capitão, como dizendo que
dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós
assim por assim o desejarmos. Mas ele queria dizer que levaria as contas e mais
o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E
depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se
de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de encobrir suas
vergonhas, as quais não eram fanadas[36], e as
cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr por
baixo das cabeças seus coxins[37], e o da
cabeleira esforçava- se por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e
eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
[Sábado, 25 de abril]
Ao sábado pela
manhã mandou o capitão fazer vela, e fomos demandar[38] a
entrada, qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as
naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande,
tão formosa e tão segura que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e
naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta
nau do capitão-mor. E daqui mandou o capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias
que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu
arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça
vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram os braços,
seus cascavéis[39]
e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado
de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de
seu viver e maneiras[40]. E a
mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de
frecha[41]
direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com
arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se
afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram
muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo
degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperava um pelo outro, mas
antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água
doce, de muita água que lhes dava pela braga[42], e
outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas
de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um
homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo tornaram
a nós; e com eles vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e
sem carapuças.
Então se começaram
de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não
podiam; traziam cabaços de água e tomavam alguns barris que nós levávamos; enchiam-nos
de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem à borda do
batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes
dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas[43]. E a
uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo
quase nos queriam dar a mão. Davam-nos aqueles arcos e setas por sombreiros e
carapuças de linhos ou por qualquer coisa que homem[44] lhes
queria dar.
Dali se partiram os
outros dois mancebos, que os não vimos mais.
Muitos deles ou
quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos
beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos
uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha[45]; outros
traziam três daqueles bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos[46]. Aí
andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor,
e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques[47]. Ali
andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos
muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos
nenhuma vergonha.
Ali por então não
houve mais fala nem entendimento com eles, por a berberia[48] deles
ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém.
Acenámos-lhes que
se fossem; assim o fizeram e passaram além do rio. Saíram três ou quatro homens
nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e
tornámo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos.
Tornámos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles.
Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar
ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tirar coisa alguma, antes o
mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando
que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da
primeira vez o agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.
Esse que o
agasalhou era já de idade, e andava por louçainha[49] todo
cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado[50] como S.
Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e
outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima
daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que
ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe
tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era
fanado, mas, todo assim, como nós. E com isto nos tornámos e eles foram-se.
À tarde saiu o
capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus
em batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra,
porque o capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu –
ele com todos nós – em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar
fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém
lá pode ir a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem
uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro[51],
pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus já bem de noite.
[Domingo, 26 de abril]
Ao domingo de
Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele
ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele.
E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel[52], e
dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer
missa, a qual foi dita pelo padre Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com
aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual
missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali era com o
capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada,
da parte do Evangelho.
Acabada a missa,
desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa
areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao
fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se
com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e
fez muita devoção.
Enquanto estivemos
à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos
como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos,
sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação,
levantaram-se muitos deles, tangeram[53] corno
ou buzina e começaram a saltar e a dançar um pedaço. E alguns deles se metiam
em almadias – duas ou três que aí tinham –, as quais não são feitas como as que
eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou
cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão
enquanto podiam tomar pé.
Acabada a pregação,
voltou o capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta.
Embarcámos e tomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles
estavam, indo, na dianteira, por ordem do capitão, Bartolomeu Dias em seu
esquife, com um pau de uma almadia que lhe o mar levara, para lho dar; e nós
todos, obra de tiro de pedra[54], atrás
dele.
Como viram o
esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até
onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo
pôr em terra; e outros não.
Andava aí um que
falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que
lhe tinham acatamento ou medo. Este que assim os andava afastando trazia seu arco
e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris,
coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e o estômago eram de sua
própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem
desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.
Saiu um homem do
esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele
para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que
saíssem em terra.
Com isto se volveu
Bartolomeu Dias ao capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e
trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e
assim por então ficaram.
Neste ilhéu onde
fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e
muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco
e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão
grande e tão grosso como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de
berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que
comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do capitão-mor,
com os quais ele se apartou[55], e eu
na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento
desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para melhor a mandar
descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa
viagem.
E entre muitas
falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito
bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes
parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza,
deixando aqui por eles outros destes degredados.
Sobre isto
acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume
dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto
lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens
destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por
ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o
saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa
Alteza cá mandar. E que portanto não cuidassem de aqui tomar ninguém por força
nem de fazer escândalo, para todo mais os amansar e apacificar, senão somente
deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor
a todos parecer, ficou determinado.
Acabado isto, disse
o capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e
também para folgarmos.
Fomos todos nos
batéis em terra, armados e a bandeira connosco. Eles andavam ali na praia, à
boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que
dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas tanto que
os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual
não é mais largo que um jogo de mancal[56]. E mal
desembarcámos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles.
Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que
todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros
e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.
Passaram além
tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam
e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Então o capitão fez
que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.
A gente que ali
estava não seria mais que a costumada. E tanto que o capitão fez tornar a todos,
vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por senhor, pois me
parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente
nossa passara já para aquém do rio.
Ali falavam e
traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer
coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas
e contas.
Então tornou-se o
capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis[57]
galantes pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas
pernas, que, certo, pareciam bem assim.
Também andavam,
entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam
mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda
tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia
ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas
vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia
vergonha alguma.
Também andava aí
outra mulher moça, com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei
de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as
pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.
Depois andou o
capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou
um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o capitão
esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós
quantas lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra
havia.
Trazia este velho o
beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida
nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O capitão lha fez
tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direto ao capitão, para lha
meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o
capitão e deixou-o, e um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não
por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o capitão, segundo
creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.
Andámos por aí
vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas,
não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Então tornou-se o
capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.
Além do rio,
andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem
pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife
que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um
gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas
mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita.
Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e
salto real[58],
de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito
os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza[59] como de
animais monteses, e foram-se para cima.
E então o capitão
passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis,
assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto
com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada[60] por
cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de
passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se
recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou,
lhes levou e lançou na praia.
Bastará dizer-vos
que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão que para
a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro[61]. Homem
não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como
eles querem, para os bem amansar.
O capitão, ao
velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre
ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de
passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.
Os outros dois, que
o capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram –
do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e
com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda
mais que são como aves ou alimárias[62]
monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque
os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser.
Isto me fez
presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam,
os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas.
Mandou o capitão
àquele degredado Afonso Ribeiro que se fosse outra vez com eles. Ele foi e
andou lá um bom pedaço, mais à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o
quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma
coisa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas,
que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e
lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira
lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes,
como de Entre Douro e Minho.
E assim nos
tornámos às naus, já quase noite, a dormir.
[Segunda-feira, 27 de abril]
À segunda-feira,
depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas
não tantos com as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim
um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se connosco.
Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns
arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha vermelha ou qualquer coisa.
Em tal maneira isto se passou que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se
foram com eles, onde outros muito estavam com moças e mulheres. E trouxeram de
lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos
quais, segundo creio, o capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.
E, segundo diziam
esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais
à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas
tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de
armal[63], e
todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns
ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora
mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagados entre
os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto
mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados
até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as
testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da
largura de dois dedos.
E o capitão mandou
àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem lá andar
entre eles, e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo[64], com
que eles folgavam. Aos degredados mandou que lá ficassem esta noite.
Foram-se lá todos,
e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma
povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada
uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e
cobertas de palha, de razoada altura; todas numa só peça, sem nenhum
repartimento, tinham dentro muitos esteios[65]; e, de
esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo,
para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma
num cabo e outra no outro.
Diziam que em cada
casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que
lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame[66] e
outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde,
fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda,
segundo diziam, queriam vir com eles.
Resgataram lá por
cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos,
muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos[67] e
carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de
tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o
capitão vo-los há de mandar, segundo ele disse.
E com isto vieram;
e nós tornámo-nos às naus.
[Terça-feira, 28 de abril]
À terça-feira,
depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia,
quando chegámos, obra de sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegámos,
vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem
duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto connosco que alguns nos
ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e
tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos
a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande cruz, dum pau, que ontem para isso
se cortou.
Muitos deles vinham
ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta
de ferro com que a faziam, do que por verem a cruz, porque eles não têm coisa que
de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas com cunhas,
metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam
fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas
viram lá.
Era já a
conversação deles connosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de
fazer.
O capitão mandou a
dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e a outras, se houvessem
novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles
os mandassem. E assim se foram.
Enquanto andávamos
nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores,
deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece
haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras
aves então não vimos, somente algumas pombas seixas[68], e
pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram
rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de
infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
Cerca da noite nos
volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu, creio, Senhor,
que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os
arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de
canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio – o capitão
a Ela[69] há de
enviar.
[Quarta-feira, 29 de abril]
À quarta-feira não
fomos em terra, porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a
despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à
praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi,
seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso
Ribeiro, o degredado, aos quais o capitão ontem mandou que em toda maneira lá
dormissem, volveram-se já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram
papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o
bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de
Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão
dois mancebos dispostos[70] e
homens de prol[71].
Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda[72] que
lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e
folgaram aquela noite.
E assim não houve
mais este dia que para escrever seja.
[Quinta-feira, 30 de abril]
À quinta-feira,
derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais
lenha e água. E, em querendo o capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com
seus dois hóspedes. E, por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas.
Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E
de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão[73] cozido,
frio e arroz.
Não lhes deram
vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer,
metemo-nos no batel e eles connosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande
de porco-montês[74],
bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não
queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu
adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta[75] para cima.
E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande joia. E tanto que
saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Andariam na praia,
quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E
parece-me que viriam este dia à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta.
Traziam alguns
deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que
lhes davam. Comiam connosco do que lhes dávamos. Bebiam, alguns deles, vinho;
outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem[76], o
beberão de boa vontade.
Andavam todos tão
dispostos, tão bem feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam
dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.
Andavam já mais
mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles.
Foi o capitão com
alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita
água, que a nosso parecer era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós
tomámos água.
Ali ficámos um
pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto,
tamanho, tão basto e de tantas prumagens[77], que
homem as não pode contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e
bons palmitos[78].
Quando saímos do
batel, disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz, que estava
encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é
sexta-feira, e que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos para eles
verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que
aí estavam acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de
tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos,
porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os
degredados, que aqui hão de ficar, aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não
duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos
e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque,
certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E, imprimir-se-á ligeiramente
neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu
bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que
não foi sem causa.
Portanto Vossa
Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação.
E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram,
nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem
qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem
senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e
as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o
não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto
ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos
nossos, maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem
acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira
que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite
às naus, senão quatro ou cinco, a saber; o capitão-mor, dois; Simão de Miranda,
um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o
capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando
aqui chegámos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão;
e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de
colchões e lençóis, para os mais amansar.
[Sexta-feira, 1 de maio]
E hoje, que é
sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira;
e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria
melhor chantar[79]
a cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o capitão o lugar, onde fizessem a
cova para a chantar.
Enquanto a ficaram
fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz abaixo do rio, onde ela
estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em
maneira de procissão.
Eram já aí alguns
deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se
foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passámos o rio, ao longo da praia, e
fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta[80].
Andando ali nisto, vieram bem cento e cinquenta ou mais.
Chantada a cruz,
com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram
altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique[81], a qual
foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram connosco a ela obra de
cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.
E quando veio ao
Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se
levantaram connosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então
tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de
joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos
levantados, e em tal maneira sossegados, que certifico a Vossa Alteza nos fez
muita devoção.
Estiveram assim
connosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e
sacerdotes e o capitão com alguns de nós outros.
Algum deles, por o
sol ser grande[82],
quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um
deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles
que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda
chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para
o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de
bem; e nós assim o tomámos.
Acabada a missa
tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva[83], e
assim se subiu junto com o altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e
dos Apóstolos[84],
cujo é o dia, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão
santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.
Esses, que
estiveram sempre à pregação, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquilo, que
digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E,
acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com
crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda[85],
houveram por bem que se lançasse uma ao pescoço de cada um. Pelo que o padre
Frei Henrique se assentou ao pé da cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada
em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a
isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta.
Isto acabado – era
já bem uma hora depois do meio-dia – viemos a comer às naus, trazendo o capitão
consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o
Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca[86] e ao
outro uma camisa destoutras[87].
E, segundo que a
mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda
cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer,
como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem
adoração têm[88].
E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre mais devagar ande, que
todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não
deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais
conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os
quais hoje também comungaram ambos.
Entre todos estes
que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à
missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém,
ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim,
Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, quanto a
vergonha.
Ora veja Vossa
Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que
pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos
assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, Senhor, que
com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram
desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão
aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui partida.
Esta terra, Senhor,
me parece que da ponta mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o
norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem
vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes,
grandes barreiras[89], delas
vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos.
De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão
nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos
ver senão arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora,
não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro;
nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados,
como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como
os de lá.
Águas são muitas;
infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela
tudo, por bem das águas que tem.
Porém, o melhor
fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve
ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que aí não
houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecut, isso
bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa
Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
E nesta maneira,
Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco
me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer mo fez
pôr assim pelo miúdo.
E pois que, Senhor,
é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de
vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que,
por me fazer graça especial, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório,
meu genro[90]
– o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de
Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro,
da vossa ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
PÊRO
VAZ DE CAMINHA
Documento original depositado na Torre do Tombo,
Gavetas, Gav. 15, mç. 8, n.º 2
Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei
D. Manuel sobre o achamento do Brasil, estudo introdutório
e notas de Maria Paula Caetano e Neves Águas. Mem-Martins: Publicações
Europa-América, s/d
[24]Recife:
Rochedo, que corresponde ao atual topónimo Coroa Vermelha.
[25]Amainaram:
Recolheram as velas e pararam o barco.
[26]Almadia:
Embarcação comprida e estreita usada pelos indígenas.
[27]Bons
rostos […] sem cobertura alguma: Esta perfeição física dos indígenas
teria impressionado bastante quem com eles lidou nestes primeiros anos de
contacto. Assim, a sua nudez demonstraria a sua inocência, pois, como não
tinham sido corrompidos pela civilização, eram naturalmente bons, tal como Deus
os tinha criado, vivendo ainda no seio de uma natureza sã e acolhedora.
Estavam, então, isentos do pecado, e aguardavam apenas que até eles fosse
levada a palavra de Deus para que se tornassem bons cristãos. Pelo menos era o
que se pensava. (M. Viegas Guerreiro, Carta a El-Rei D. Manuel sobre o Achamento
do Brasil).
[28]Ossos
brancos: Adorno de ponta fina que se prolongava para fora dos lábios e com
uma base larga a segurar. «[…] ainda hoje o usam os índios do Brasil, que, por
isso, se designam Botocudos. Outras populações do globo se enfeitam com ele,
como os Macondes de Moçambique e de Tanganhica, mas estes introduzem-no no
lábio superior.» (M. Viegas Guerreiro, op. cit.)
[29]Roque
de xadrez: Nome dado às quatro torres do xadrez.
[31]Solapa:
Modo de os indígenas usarem os cabelos, parte caindo sobre a testa e parte
sobre o resto do crânio, que era rapado.
[32]Como
cera: Segundo Jaime Cortesão (op. cit.), «esta cera era 'almácega', ou
seja, a resina da 'pistácia lentisco'... Como essa goma era branda e a
cabeleira de penas muito basta e unida, podia facilmente levantar-se ou
separar-se dos cabelos, sem lavagem».
[33]Ali
havia ouro: Pelo menos foi o que os portugueses quiseram entender pelos
gestos dos índios.
[34]Fartéis:
Bolos de açúcar e amêndoas envoltos em capa de farinha e trigo.
[35]Albarrada:
Vasilha própria para beber água e vinho.
[40]Saber
do seu viver e maneiras: Era costume irem condenados à morte integrados nas
armadas. Eram ainda enviados pelos soberanos para que desempenhassem as missões
mais arriscadas e para realizarem os primeiros contactos com os nativos,
chegando a ficar entre eles para aí aprenderem a língua e colherem informações,
que seriam de grande utilidade aquando da chegada de outras frotas. Assim
aconteceu com estes dois condenados à morte que acompanhavam a frota de Cabral.
[80]Tiros
de besta: Nos séculos XV e XVI era esta medida usual da distância, correspondente,
possivelmente, a cerca de 140 m ou 150 m, que as setas de uma besta vulgar de
peão conseguiam alcançar.
[81] Frei
Henrique Soares, de Coimbra, que ia a Calecute como guardião dos oito frades da
Ordem de S. Francisco que integravam a armada de Pedro Álvares Cabral.
[82]Por
o sol ser grande: Cerca do meio-dia, pois o Sol ia alto.
[83]Ficou
em alva: Ficou só com uma túnica branca, sobre a qual tinha vestido e
estola.
[84]Apóstolos:
S. Filipe e S. Tiago Menor, festejados pela Igreja a 1 de maio.
[85]Ficaram
ainda da outra vinda: Nicolau Coelho tinha sido o capitão da nau Bérrio, da
frota de Vasco da Gama, aquando do descobrimento do caminho marítimo para a
Índia.
[86]Camisa
mourisca: Comprida e larga, idêntica à dos Árabes.
[87]Camisa
destoutras: Vulgar, mais curta e chegada ao corpo.
[88]Nenhuma
idolatria, nem adoração têm: Mais do que os negros, os indígenas
brasileiros tornavam-se, assim, um bom campo para espalhar a fé cristã, pelo
que para isso apenas careciam de uma pronta atenção da parte de D. Manuel, para
que lhes fossem enviados missionários.
[89]Barreiras:
Termo muito utilizado nos roteiros da época, para conhecimento das costas,
designando a parte alcantilada – a pique ou com um declive muito acentuado.
[90]Jorge
de Osório: Genro de Pêro Vaz de Caminha, que se encontrava degredado em São
Tomé, pelas justiças de D. Manuel.
Texto de apoio: verbete sobre a Carta do Achamento do Brasil
Carta de Pero
Vaz de Caminha, escrita a D. Manuel I em 1500, por altura da descoberta do
Brasil pelo navegador Pedro Álvares Cabral. Este é um documento essencial e
curiosíssimo de um momento supremo da História e da cultura portuguesas, e,
como tal, um paradigma da literatura de viagens do Renascimento e da cultura
nova, de base experimental e tendência crítica, na qual, segundo Jaime
Cortesão, está contido o «fermento crítico» responsável pelo espírito
filosófico do século XVIII.
Trata-se de
uma verdadeira carta-narrativa, na qual são descritos a geografia, a fauna, a
flora do Brasil, a aparência e a psicologia dos nativos, os métodos e
experiências de contacto dos portugueses e as reações mútuas, obviamente a
partir de uma perspetiva etnocêntrica que estuda a nova terra e a população com
o objetivo de colher algum proveito: «[Nesta terra] não pudemos saber que haja
ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro, nem lho vimos. A terra,
porém, em si é de muito bons ares [...]. Mas o melhor fruto que dela se pode
tirar me parece que será salvar esta gente».
A própria
«salvação» religiosa da população nativa é capitalizável, na medida em que os
portugueses acalentavam então a noção de que a grandiosidade dos seus
empreendimentos derivaria do facto de os feitos da sua História se relacionarem
com a expansão da fé cristã, e portanto beneficiarem sempre da proteção de
Deus. É a mesma conceção providencialista da História portuguesa que
encontramos em Os Lusíadas. A expansão era encarada, não só como o
alargamento da civilização e da cultura em que o Homem de então mais
perfeitamente realizava as suas potencialidades - a portuguesa -, mas também
Deus mais dilatava no mundo a sua lei. Numa perspetiva humanista e
neoplatónica, portanto, era através da expansão portuguesa que o Homem se
aproximava cada vez mais do estatuto divino, o qual, aliás, se cumpre
metaforicamente nos cantos finais de Os Lusíadas.
Deste modo, a
Carta do Achamento do Brasil é um documento fundamental para a
compreensão do Renascimento português, logo, também da História do mundo.
CARREIRO, José. “Carta de
Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil”. Portugal, Folha
de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 02-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/carta-de-pero-vaz-de-caminha-el-rei-d.html