LEMBRANÇA DO MUNDO
ANTIGO
Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de
Andrade, Sentimento do Mundo, 1940
À primeira vista o leitor depara-se com figurações
idílicas, aparentemente bucólicas. Mas o poema em análise, ainda que evoque,
numa leitura apressada, o mundo ingênuo, configura o olhar de um homem em face
à realidade dissoluta e caótica, marcada pela instabilidade da 2.ª Guerra
Mundial. O Brasil vivia tempos da ditadura de Vargas; inaugurava-se um dos
períodos mais autoritários da vida política nacional, o Estado Novo; os bens de
consumo estavam escassos e caros; a morte e a destruição rondavam o homem – a
esperança era uma palavra rara.
No poema, o jardim-mundo do presente revela a
tensão do sujeito com a paisagem a seu entorno. Os versos rumam a uma derrisão
interior, sem que isso atinja, em nenhum instante, o domínio sobre a palavra ou
comprometa sua sensibilidade intelectual. Nitidamente, o poeta refreia a
emoção; seus versos funcionam como um embate lúdico para vigiar a emotividade
que o acomete, e que desnorteia uma conclusão apressada, tal como se vê na
imagem da menina que pisa a grama para pegar o pássaro.
Assim sendo, esse poema deixa entrever um (outro)
campo de encontro, prefigurado no espaço perdido e no espaço que não há. Os
versos operam no sentido de instaurar, por entre o jardim, aquela outra ordem
em que seja possível perscrutar um deserto às avessas. Refiro-me a uma ordem
poética capaz de deixar a linguagem encontrar, depois da depuração a que foi
submetida, a abertura necessária, por meio da qual seja possível nomear o
conflito da experiência. O poema deixa figurar o correlato objetivo e sensível
da nomeação poética, por meio de elementos que, sendo tudo no jardim imaginado,
resvalam no nada e na carência do jardim presente, roubando-lhe até mesmo as
manhãs.
O leitor encontra, no jardim do presente, as
imagens do jardim do passado do eu lírico, percebendo como sua memória
seleciona imagens de um tempo de paz e liberdade, para contrastá-las com as
imagens do tempo de guerra e ditadura, do momento. Observamos,
progressivamente, que o sentimento de desajuste do eu-lírico no mundo não
encontra, nem mesmo no espaço do jardim – que poderia figurar como locus
amoenus – imagem de conforto e alívio.
“Nos
jardins: reflexões sobre a poética de Carlos Drummond de Andrade”, Ivana Rebello.
Revista Araticum (Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos
Literários da Unimontes) v.16, n.2, 2017. ISSN: 2179-6793. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/araticum/article/view/759/751
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Sugestão de exercício do domínio da educação literária sobre a leitura do poema “Lembrança do mundo antigo” disponível em: https://armazemdetexto.blogspot.com/2018/11/poema-lembrancas-do-mundo-antigo-carlos.html
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