domingo, 16 de julho de 2023

Lembrança do mundo antigo, Carlos Drummond de Andrade


 

LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

 

Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo, 1940

 

À primeira vista o leitor depara-se com figurações idílicas, aparentemente bucólicas. Mas o poema em análise, ainda que evoque, numa leitura apressada, o mundo ingênuo, configura o olhar de um homem em face à realidade dissoluta e caótica, marcada pela instabilidade da 2.ª Guerra Mundial. O Brasil vivia tempos da ditadura de Vargas; inaugurava-se um dos períodos mais autoritários da vida política nacional, o Estado Novo; os bens de consumo estavam escassos e caros; a morte e a destruição rondavam o homem – a esperança era uma palavra rara.

No poema, o jardim-mundo do presente revela a tensão do sujeito com a paisagem a seu entorno. Os versos rumam a uma derrisão interior, sem que isso atinja, em nenhum instante, o domínio sobre a palavra ou comprometa sua sensibilidade intelectual. Nitidamente, o poeta refreia a emoção; seus versos funcionam como um embate lúdico para vigiar a emotividade que o acomete, e que desnorteia uma conclusão apressada, tal como se vê na imagem da menina que pisa a grama para pegar o pássaro.

Assim sendo, esse poema deixa entrever um (outro) campo de encontro, prefigurado no espaço perdido e no espaço que não há. Os versos operam no sentido de instaurar, por entre o jardim, aquela outra ordem em que seja possível perscrutar um deserto às avessas. Refiro-me a uma ordem poética capaz de deixar a linguagem encontrar, depois da depuração a que foi submetida, a abertura necessária, por meio da qual seja possível nomear o conflito da experiência. O poema deixa figurar o correlato objetivo e sensível da nomeação poética, por meio de elementos que, sendo tudo no jardim imaginado, resvalam no nada e na carência do jardim presente, roubando-lhe até mesmo as manhãs.

O leitor encontra, no jardim do presente, as imagens do jardim do passado do eu lírico, percebendo como sua memória seleciona imagens de um tempo de paz e liberdade, para contrastá-las com as imagens do tempo de guerra e ditadura, do momento. Observamos, progressivamente, que o sentimento de desajuste do eu-lírico no mundo não encontra, nem mesmo no espaço do jardim – que poderia figurar como locus amoenus – imagem de conforto e alívio.

 

“Nos jardins: reflexões sobre a poética de Carlos Drummond de Andrade”, Ivana Rebello. Revista Araticum (Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes) v.16, n.2, 2017. ISSN: 2179-6793. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/araticum/article/view/759/751

 

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Sugestão de exercício do domínio da educação literária sobre a leitura do poema “Lembrança do mundo antigo” disponível em: https://armazemdetexto.blogspot.com/2018/11/poema-lembrancas-do-mundo-antigo-carlos.html

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