No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos)
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3.° andar
e todo o Passado
vem exatamente desaguar
nesse preciso tempo, nesse preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!
Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.»
Manuel
António Pina, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, 1999 (Todas as
Palavras ‒
poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012,
pp. 252-253)
É
curta e assombrada pela dor a obra poética de Manuel António Pina. Nela a morte
espreita a cada poema, de par com a reflexão sobre as palavras (inúteis) que
enchem o mundo e a nostalgia do silêncio que a eternidade, no seu sono,
devolve. Entretanto, e homens por cá, da vida vivida, o passado, não temos
fuga, a menos que a desmemória nos atinja. Felizmente não guardamos tudo, e do
que fica fala-nos o poema: «Por onde vens, Passado, / pelo vivido ou pelo
sonhado? / Que parte de ti me pertence, / a que se lembra ou a que esquece?»
Saberá
cada um de nós com o que conta, mas para lhe aliviar o peso lá virá o momento
em que «…em vez de metafísica / ou de biologia…» nos dê para qualquer outra coisa,
não necessariamente poesia, como ao poeta, mas uma atitude igualmente salutar:
«…passar-lhe ao lado / deitando-lhe o enviesado / olhar da ironia».
Do discurso bíblico do Fiat
lux, o poeta passa para o discurso científico. Da
conceção de mundo criado pelo verbo, passa-se a matéria orgânica que o compõe.
Uma forma de desviar-se, mudar de rota, típica da linguagem tropologia, tal
como temos discutido. “Depois foi o que se sabe”, mas o que se sabe? Existe
qualquer discurso mais adequado para explicar o surgimento do universo, se o
poeta, entre metafísica e biologia, se coloca em um ainda mais inespecífico
discurso: o da “nem por isso provavelmente poesia”?
Quando
diz "Depois foi o que se sabe", o sujeito poético parece reconhecer
que a história e a evolução do mundo e da humanidade são conhecidas,
documentadas e estudadas.
A
partir desse ponto, o poema mergulha numa reflexão pessoal e introspetiva do eu
poético, que se encontra debruçado na varanda do terceiro andar, observando o
passado "desaguar" no presente, nesse exato momento e local. O sujeito poético manifesta uma forma de melancolia indefinida, uma sensação de saudade ou
nostalgia sem uma causa específica, que ele associa à poesia, mas também a uma
poesia não necessariamente lírica ou convencional. O sujeito poético parece
abraçar a ambiguidade e a complexidade da existência, encontrando a sua
expressão através de uma poesia que escapa às categorias convencionais.
Quando
o sujeito poético questiona "Por onde vens, Passado, pelo vivido ou pelo
sonhado?", ele reflete sobre a natureza da memória e da história. Há,
pois, a indagação sobre a natureza e a origem do passado, se é algo vivido ou
sonhado, se é algo que se recorda ou que se esquece, se é algo que nos pertence
ou que nos escapa.
A
presença contínua das pessoas na rua representa a continuidade do tempo
presente, contrastando com o passado que existe apenas na memória. O sujeito
poético observa a rua como um cenário de movimento e de efemeridade, onde as
pessoas entram e saem da sua vida sem deixar rasto nem história. A ideia
de "não ter história" e ser uma "ausência entre indiferença e
indiferença" sugere uma sensação de anonimato e de insignificância pessoal
no fluxo contínuo do tempo e da história.
Ao
afirmar que o seu discurso é "nem por isso provavelmente poesia", o sujeito
poético parece duvidar da própria natureza poética das suas palavras. Essa
dúvida pode ser vista como uma forma de humildade, uma autoconsciência sobre as
limitações da linguagem e da poesia em capturar a profundidade da experiência
humana e do tempo.
Quem desenterrará o que é preciso
esquecer?
O escritor torna-se retórico com cega serenidade,
será preciso passar para o lado de fora, flutuar?
Escrevo aquilo que não posso,
transformo-me no que me proponho destruir.
Já não é uma Literatura, é uma Fatalidade.
Aquele que quer morrer
é aquele que quer conservar a vida,
a tristeza daquele que fala ri-se de tudo,
que sentido faz isto e que sentido não faz isto?
Manuel
António Pina, Aquele que quer morrer, 1978 (Todas as Palavras ‒
poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p.
68)
No poema há uma indagação sobre renascimento e
suas relações com uma ideia de arte (no caso a literatura). Partindo do mote da
epígrafe, Pina inverte a equação. Em lugar daquele que perde a vida ao tentar
conservá-la, temos aquele que quer conservar a vida ao querer morrer. Eis um
conceito de renascimento: morrer, mas conservar a vida. O que deseja renascer
precisa morrer, mas paradoxalmente manter a vida. Nietzsche fala da severa
enfermidade, de um estado de quase morte, para que daí surja a segunda
inocência. Já Pina trata da impossibilidade desse paradoxo (“que sentido faz
isto e que sentido não faz isto?”). Aliado a isso também aparece uma ideia de
arte, mas que se constrói a partir da suspeita e do paradoxo. A Literatura
(escrita com maiúscula) torna-se Fatalidade, pois escreve-se na impossibilidade
do dizer, nos limites do sentido e do não-sentido. Palavra ‘sentido’ que,
aliás, está carregada de ambiguidade semântica: a de criar uma significação e
sentir sensorialmente; pois a Literatura se confunde com a vida (essa
fatalidade) e, portanto, significado e sensação (vazios ou plenos) são formas de
morrer conservando a vida. “Escrevo aquilo que não posso” surge como uma constatação
de suspeita tanto em relação à arte como à ideia de renascimento.
AFORISMOS 233, 236, 262 E 266, DE A GAIA CIÊNCIA
(NIETZSCHE) O rascunho de “Uma segunda e mais perigosa inocência” está
entremeado de uma série de excertos copiados de uma tradução de A gaia
ciência, de Nietzsche
O poema em si estrutura-se na forma de indagação.
Sintaticamente, temos cinco orações completas, sendo três delas perguntas.
Apenas a segunda estrofe contém afirmações, sendo ambas asseverações da
impossibilidade. Tal paradoxo da impossibilidade também é um pouco
nietzschiano, pois no trecho anotado por Pina do aforismo 262 de A gaia ciência, lemos o subtítulo latino Sub specie aeterni (do ponto de vista da eternidade) e a última
frase do aforismo: “o privilégio é não morrer”. Esse privilégio, segundo
Nietzsche, é dos mortos e não dos vivos: “É a única maneira de partilhar o
privilégio dos mortos” (NIETZSCHE, 2012, p. 164). Novamente “aquele que quer
morrer/ é aquele que quer conservar a vida”. Ou ainda, no poema “Na morte de
Mao”, do mesmo livro e que também aparece rascunhado nessa parte do espólio a
que estamos nos referindo: “A morte é propriedade dos vivos,/ aquele que morreu
já não vive nem está morto” (PINA, 2012, p. 96). A partir de uma constatação
que se diria lógica – a morte só pertence aos vivos –, Pina constrói um diálogo
que diz muito mais do que o lógico; aponta para a dúvida e impossibilidade como
um princípio poético.
ANOTAÇÃO DO AFORISMO 182 E PARTE DO AFORISMO 183, DE A GAIA CIÊNCIA
[…]
Tal modulação de um sentido prévio de
infância estaria ligada, em alguma medida, ao que, na escrita de Pina, ganha
cena através do título de um de seus poemas, tomado de uma passagem de
Nietzsche,18 em seu
livro A gaia ciência:
“Uma segunda e mais perigosa
inocência”19 (PINA,
2012, p. 68):
[...] voltamos renascidos, de pele
mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria,
com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos,
com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis
e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes (NIETZSCHE, 2001, p.
13).
Na passagem de Nietzsche, lemos a
finalização da frase que, embora não esteja no título do poema: “com uma
segunda, mais perigosa inocência na
alegria” (grifo nosso), comparece, com alguma
discrição, nos versos que esboçam uma quase contra-arte poética: uma segunda
inocência na alegria
– apesar de toda consciência da fatalidade
e melancolia de quem escreve
tardiamente perante uma modernidade que já não é possível alcançar, de uma primeira
infância igualmente irrecuperável, de
quem escreve, afinal, aquilo que não pode
–, alegria inscrita, de algum modo, em grau mais sutil, não evidente, em forma
de tristeza daquele que “ri-se de tudo”, através de uma relação irônica e risonha
com o passado, com a Literatura, e a
sua morte, de um exercício persistente, e não sem tormento, de
despersonalização consciente de sua retórica em cega e contraditória “serenidade”,
quando exercer essa segunda inocência,
essa infância como gesto, modulação, procedimento, é antes de tudo brincar
com o tempo, e no caso de Pina, com a biblioteca,
esse “lugar anacrônico por excelência” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26).
O poema traz ainda uma epígrafe:
“Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, apotegma de Marcos, de onde virá
inclusive o verso-título do livro de 1978, Aquele
que quer morrer (PINA, 1978). Existe uma disjunção de
tempos nessa composição, uma montagem de temporalidades heterogêneas no espaço
do poema, procedimento que pode se evidenciar na afirmação de Rui Lage:
O estatuto do poeta
contemporâneo implícito na poesia de Pina é o de um investigador forense
debruçado sobre o cadáver da Literatura. É uma criatura tardia, um recoletor de
sentidos dispersados, um inventariador de ruínas, de “papéis velhos, vidas
mortas, /identidade, sujidade, eternidade”. (LAGE, 2016, p. 29)
A infância em Pina surgiria antes de
mais no gesto de um colecionador,
perdido na biblioteca, capaz de em seus poemas “introduzir-se na Última Ceia
pela mão de Quevedo, ao parafrasear Bob Dylan, ao cruzar num mesmo poema a
letra de ‘Highway to hell’ do AC/DC com o despenhamento do carro do Sol às mãos
de Faetonte” (LAGE, 2016, p. 28). Além do intenso trabalho de intertextualidade
em seus poemas, das referências, colagens, do “recurso constante à citação, ao pastiche,
a alusões, ao remake,
à glosa, ao revivalismo” (SANTOS, 2004, p. 19), compondo o que Pedro Eiras
chamará de “palimpsesto absoluto” (EIRAS, 2002, p. 155), tal gesto de infância
se configuraria ainda na tentativa incessante de dissolução de uma voz autoral;
na criação de pseudo heterônimos, como Slim da Silva e Clóvis da Silva;20
e em deslocamentos e desmontagens sintáticos, como, por
exemplo, em torno do dêitico isto:
“Alguma coisa em algum lugar/ de o que existe e de o que não existe/ é isto que
escreve e a ciência de isto/ a pura voz sem sujeito e o fora de ela” (PINA,
2012, p. 69).
_______
18 Como
bem aponta Rui Lage, Pina em entrevista à “Ciber- kiosk”, afirma de forma
explícita: “Os poemas de Aquele que quer morrer radicam,
fundamentalmente, em duas leituras (os livros geram outros livros): o Tao
Te King e A gaia ciência,
de Nietzsche” (PINA, 2016, p. 18).
19
A expressão encontra igualmente lugar numa fala de Pina sobre a
infância, em entrevista dada a Luís Miguel Queirós: “A infância é algo que só
se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para
se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância – a palavra
‘infância’ e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância
– é, julgo eu, a melancolia da ‘primeiridão’, de um tempo mítico em que olhámos
o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e
de memória, isto é, ‘não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança’.
Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma
nietzschiana ‘segunda e mais perigosa inocência’, uma inocência que se sabe
inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência” (QUEIRÓS, 2011,
s/p).
Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua, que atravesso. E quantas coisas
que há no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.
Visito o banco. Para quê
esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo
do que foi meu peito e está aberto.
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estivai.
Não obstante caminho para a morte.
Passo nos escritórios. Nos espelhos,
nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas
que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula
seu bafo e sua tática.
Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés
que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro do velho hospital em sombra.
Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa,
embora vá morrer.
O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros
a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.
Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana.
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.
Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas. Desfalece o comércio de atacados,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas. A cidade
muda de mão, num golpe.
Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.
Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.
Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.
A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicklets, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.
Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
de sopros robustos prestes a desfazer-se.
E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.
Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há mui; os anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefreável,
onde não houvesse pausas, síncopes, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cada vez maiores de ar.
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico,
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
Carlos
Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, 1945
Entre
a “vida besta” e o “vasto mundo” há um poeta melancólico
No poema quase crônica “Morte no avião”
(OC, 2002, p. 176-179), dado o seu caráter narrativo de um facto do cotidiano,
deparamo-nos com a alienação do indivíduo, preso a seus afazeres domésticos,
com a consciência próxima do fim. Vivemos uma vida inautêntica no mundo, pois
nele somos lançados sem nos terem consultado sobre nossas pretensões e nossos desejos,
motivo pelo qual nos coisificamos e nos tornamos angustiados.
O primeiro verso remete-nos ao “Ser-para-a
morte”, expressão cunhada pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) que
concebia a morte como um fenômeno existencial entranhado ao ser do homem como “ser-no-mundo”
e como “ser-de-projeto”.
O mistério e a incerteza caracterizam a
morte. Desde que a humanidade existe, pensar a morte é recorrente. Ela é
representada em seu sentido mais negativo: monstros em pântanos sombrios,
esqueletos e corpos putrefatos. Afinal, o homem é o único animal que tem consciência
da própria morte. É também aquele dotado de linguagem. A relação entre linguagem
e morte foi estudada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (1942), na obra A
linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade21(2006). Ele concebe o homem como um
animal dotado da faculdade da linguagem e da consciência da morte, ou melhor, o
homem é falante e mortal.
Morrer representa o medo do homem por
aquilo que não se pode conhecer; um desafio para as mais diferentes culturas
que buscam respostas nos mitos, nas artes, na filosofia e na religião, para
tornar compreensível o incompreensível. Para os cristãos e parte dos judeus que
acreditavam na ressurreição, a morte era vista como a passagem para uma outra
dimensão, a transposição ao eterno sofrimento e a expiação, ou o acesso ao
eterno gozo, reservados a um pequeno grupo de bem-aventurados.
A morte é um dos grandes temas de
discussão do Existencialismo, corrente filosófica da qual o filosofo alemão
Martin Heidegger faz parte. O autor de Ser e tempo (1927) acreditava que
é na morte que o homem se totaliza. Ele argumentava que devemos manter um estado
de vigília constante em relação a tudo aquilo que nos afeta em nosso cotidiano.
Não só. Enquanto “ser-no-mundo”, o homem busca o significado do que é o Ser.
“Morte no avião” é um longo poema formado
de treze estrofes de versos livres prosaicos, isto é, “quase se confundindo com
o ritmo na prosa, para mostrar que a poesia está na essência no que é dito e na
sugestão, ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais”
(CANDIDO; CASTELLO, 1981, p. 20), aponta para essa totalização com a chegada da
morte. O eu lírico narra de forma banal (“Barbeio-me, visto-me, calço-me”) seu último
dia de vida: “Almoço. Para quê?”. A terceira estrofe retrata o cotidiano
agitado do homem moderno: “O telefone. / A fatura. / A carta. Faço mil coisas /
que criarão outras mil coisas [...]”. Produto de guerras, de autoritarismo,
como uma mera engrenagem do mundo trabalho, o homem se compromete com várias
atividades que o sufocam e, em muitos casos, não consegue realizar.
É perceptível o vazio que domina essa
voz que narra seu dia (presente) com o pensamento preso em sua morte (futuro).
O eu lírico ainda olha a cidade e ainda tem a oportunidade de “adiar a morte”.
Somos regidos pelo livre arbítrio, ou melhor, em tudo o que fazemos temos
escolhas. A viagem rumo à morte, como uma simples etapa da vida, é triste e instaura
um sentimento de vazio na alma humana, motivo pelo qual o eu-lírico questiona: “Por
que nascemos para amar, se vamos morrer?” (OC, 2002, p. 1242). A morte em
Drummond não é vista como algo mórbido, triste ou fantasmagórico. É tão somente
uma travessia.
Heidegger afirmava que “a essência da
linguagem nos intima e nos alcança e, com isso, nos sustenta, se é que a morte
faz parte do que nos intima” (2003, p. 170). O filósofo acreditava que a morte
não deveria ser tratada como um fenômeno natural, mas como um fenômeno
existencial, ou seja, inerente ao homem. A morte não é sinônimo de morbidez ou desesperança.
O “ser-para-a-morte” entende que ela não é um desejo ou uma escolha, mas uma condição
irreversível e intransferível. Ele compreende que ela é libertação e completude
da existência humana.
O homem moderno tem em si a sensação do
desamparo, pois está inserido em ambiente apartado de elementos sagrados. Esse “ser-para-a-morte”
é o único que tem experiência com a linguagem. É através dela que se expressa
e, dessa forma, nos possibilita conhecê-lo.
Nessa busca pelo entendimento das
questões que envolvem a natureza humana, morte e poesia, Martin Heidegger
valeu-se do questionamento de um outro alemão, o poeta Friedrich Hölderlin22
(1770-1843) - “Y para qué poetas en tempos de penuria?” – para refletir sobre
“a la era a la que nosotros mismos pertenecemos todavía”23 (HEIDEGGER,
2010, p.199). Com o desaparecimento de “Hércules, Dioniso y Cristo” (idem, p.199),
a noite e a escuridão abateram-se sobre os homens, pois houve um apagamento de
“un esplendor de divinidad”24(idem, p.199). Trata-se, pois,
de um período tão pobre da humanidade que “cada vez se torna más indigente”25
(idem, ibidem) que, nem mesmo se consegue sentir a falta de Deus e
o mundo “queda privado del fundamento como aquel que funda”26 (idem,
ibidem), como por exemplo, “Amar Deus sobre todas as coisas”, já que
“Deus só pede nosso amor” (BIBLIA SAGRADA, Mt. 22, 34-40, 1994, p. 1058-1059).
Uma sociedade sem princípios, valores e fundamentos é uma sociedade suspensa em
um precipício. Quando os homens se afastam da dimensão do sagrado, eles
adentram para outra: a do desengano, da solidão e do desamparo. A morte passa,
então, a ser um desejo vital, como expresso no poema “Morte no avião”. Ela
passa a ser interpretada como um processo de salvação do homem em meio a um
ambiente impregnado pela escuridão.
Um poeta moderno como Drummond cantou a
morte, porque experienciou um tempo de penúria, indigência, desigualdades e
fuga dos deuses. Sua arte volta-se para si mesma, porque a reflexão é o caminho
mais viável para compreender uma sociedade em meio à falta e à ausência de
valores que possam nortear a humanidade. Em um ambiente marcado por tensões, conflitos
e combates, em que grupos querem fazer da Ditadura uma regra e não um “estado
de exceção”, a morte é cantada, portanto, como uma solução para sair de um
mundo em que a indigência prevalece.
Uma pergunta ainda carece de ser
respondida: para que poetas em tempos de penúria? Heidegger responde-nos:
cantar, “prestar atención al rastro de los deuses huidos”27
(idem, p. 201). O canto é o
único meio que o poeta dispõe, mas em Drummond “Ele é tão baixo que sequer o
escuta / ouvido rente ao chão”. Ao mesmo tempo “é tão alto / que as pedras o absorvem”
(OC, 2002, p.115-116). Os poetas eternizam sentimentos e pessoas, relevam opressões,
criam espaços de fabulação, provocam os leitores, comovem e fazem refletir por meio
da palavra, mas sobretudo resgatam a consciência daqueles que perderam a
esperança de um mundo mais justo. “Es por eso por lo que los poetas en tiempos
de penuria deben decir expresa y poéticamente la esencia de la poesía. Donde
ocurre esto se puede presumir una poesía que se acomoda al destino de la era”28
(idem, p. 201-202). A poesia drummondiana foi uma voz reflexiva no
século XX.
Além do trabalho com a palavra,
condição sine qua non para ser poeta, Drummond a usou para interrogar os
homens e suas ações, para ponderar seu estar no mundo, para exaltar os
excluídos, para se opor às injustiças e denunciar o “medo da morte e o medo de
depois da morte” (OC, 2002, p. 73). Embora seja uma tarefa penosa o retorno às
raízes primitivas humanas - esperança, solidariedade, amor ao próximo, comunhão
com a natureza – ainda é possível mediante a reflexão filosófica da poesia.
Como a humanidade não está pronta ou acabada no continuum da história, o
poeta mesmo depois de morto tem no seu canto seu bem mais precioso, capaz de
humanizar seus semelhantes.
As reflexões drummondianas se dão por
meio da linguagem e o trabalho erigido com ela impressiona, por isso, é
imprescindível destacá-lo, já que a linguagem está em toda parte e fala, ela é,
portanto, a matéria-prima da poesia e do poeta. Somos animais racionais, simbólicos
e detentores de linguagem. E mais do que ninguém, os poetas são criadores de palavras,
contempladores sensíveis e críticos do mundo e produtores do pensar poético.
Em Carta sobre o humanismo (2005),
Heidegger declara que estamos longe de pensar o agir e que sua essência é o
consumar. Somente se pode consumir aquilo que já é – o ser. O pensar é, então,
o mecanismo que “consuma a relação do ser com a essência do homem” (p. 7), ou
seja, o pensamento é “um compromisso do ser”, tal compromisso se efetiva na
ação para a verdade do Ser.
O pensar não produz, tampouco efetua
esta relação, mas é através dele que o ser tem acesso à linguagem. “A linguagem
é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem” (idem, p.8). Sendo
assim, a linguagem faz parte da dimensão constitutiva do ser, é o homem, pois,
o único animal dotado de linguagem. Tudo aquilo que existe, só existe porque
pode ser dito. São os intelectuais e os poetas que nos dizem e nos clamam a
também dizer, eles são os responsáveis por manter e preservar esta habitação.
Isso porque “a linguagem cai sob a ditadura da opinião pública. Esta decide o
que é compreensível e o que deve ser desprezado como incompreensível” (idem,
p.14). Depois que os meios de comunicação legitimam ou não uma dada linguagem é
difícil desconstruí-la.
A rosa do povo (1945)
foi um esmerado e profundo trabalho com a linguagem e sua publicação se deu em
um dos momentos mais tristes de nossa História, período em que os fluxos
comunicativos eram filtrados, domesticados e manipulados pela classe dominante.
Torna-se preocupante, assim, o esvaziamento e a corrosão da linguagem em si. A
consequência desse facto é drástica: “[...] uma ameaça à essência do homem” (idem,
p. 15). Sem linguagem, perderíamos nossa condição humana, já que ela é uma
instância de mediação entre o homem e o mundo. Falar em linguagem artística é
nos encaminharmos para a compreensão da existência humana. O pensamento é o elo
entre o Ser com a essência do homem e esse encontro só é possível por meio da
linguagem.
[…]
____________
21
Nesta obra, Giorgio Agamben, parte da ideia de que o homem é falante e mortal.
Para embasar sua teoria recorre ao Dasein (ser-para-a-morte), ser projetado de
Martin Heidegger, em que é através da experiência da morte que o homem encontra
suas possibilidades de existência, já que a morte não é apenas um fator
biológico, mas uma passagem, e por meio dela a vida inautêntica de extingue. A
negatividade advém do não sentido existencial do ser que será lançado para o
desconhecido. A negatividade da linguagem é, portanto, fruto da própria
negatividade do ser preservando cada um (homem e linguagem) e sua própria voz.
22
Martin Heidegger, em 1936, escreveu Hölderlin e a Essência da Poesia, além
de inúmeros ensaios, dentre eles “Para que poetas?”, presente coletânea Holzwege
(1950). O interesse pela poesia de Friedrich Hölderlin, poeta alemão,
que cantou o mito grego do mediador entre o homem e o sagrado. Postumamente,
foi publicado um volume das obras completas que o filósofo alemão dedicou ao
poeta: Zu Hölderlin – Griechenlandreisen.
23
“E para que poetas em tempos difíceis?” - para refletir sobre “a era que nós
próprios ainda pertencemos”. (Tradução nossa)
24
“ um esplendor da divindade” (Tradução nossa)
25
“ cada vez se torna mais pobre” (Tradução nossa)
26
“é privado do fundamento daquele que cria” (Tradução nossa)
27
“ficar atento ao rastro dos deuses em fuga” ( Tradução nossa)
28
“É por isso que os poetas em tempos de pobreza devem dizer expressa e poeticamente
a essência da poesia. Quando isso acontece, entende-se que a poesia retrata o
destino de uma época” (Tradução nossa)
O horror calculado: violência e autoritarismo em “Morte
no avião”
Na
presente análise do poema “Morte no avião”, nosso objetivo central será a discussão de alguns traços formais que
guardem pontos de contato com o problema do autoritarismo. A hipótese defendida
sustenta que o poema constitui-se em uma aguda e inquietante reflexão do sujeito lírico sobre
sua condição fragmentária frente à vida homogeneizada do Estado Novo e, de um
modo geral, frente aos impasses do processo
capitalista no Brasil. Nesse sentido, “Morte no avião”, assim como
outros poemas de A rosa do povo,
permite uma interpretação que, em termos alegóricos, dialoga diretamente com as condições sociais e políticas dos anos 30 e
40.
Adentremos
o poema “Morte no avião”. O texto narra um dia comum de um homem em uma grande cidade, que irá pegar um avião
ao final da tarde; o assunto não traria em si
nenhuma novidade não fosse um detalhe central intencionalmente
explícito: ele irá morrer, o avião irá
explodir e ele tem consciência do fato desde o primeiro verso, o qual causa um
efeito de choque no leitor:
Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia:
um dia cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre. Saio para a rua. Vou morrer.
Pelo trecho citado, vemos, desde o
princípio, uma contínua marcha do sujeito- lírico rumo à destruição de maneira
demarcada: “Acordo para a morte”, “Vou morrer”. O próprio “enredo”, por assim
dizer, nos parece estranho, inverosímil, na medida em que seu desenvolvimento é
repleto não de tentativas de evitar a morte, mas de um caminhar ininterrupto e
consciente para ela. O horror é tratado em tom burocrático, sem alterações de tom,
como indica a ausência de recursos capazes de revelar tensão, a exemplo de
pontos de exclamação ou interjeições.
O fim da existência, apontado friamente
pela futura vítima, é marcado por uma consciência por demais lúcida frente a
sua própria ruína, resultando em uma indiferença à vida, como se esta em nada
fosse diversa da morte. Trata-se de um comportamento estranho, por não haver
dados no texto capazes de mostrar sequer um desejo de suicídio, ato significativo
diante do desajuste do mundo e do ser frente ao mundo desajustado; mas, para nossa
sorte (ou azar) em nossa análise, nem de longe o suicídio se apresentaria em “Morte
no avião” como hipótese interpretativa180,
pois a morte não é tomada como superação, solução ou interrupção dos problemas
trazidos pelo sujeito lírico. Os passos narrados daquele homem sobre seu
cotidiano não alcançam um final na explosão da aeronave; percebe-se que
dia-a-dia vida e morte se assemelham assustadoramente, característica que causa
choque nos leitores.
Assim, ao longo de suas dezasseis
estrofes, de versos sem rima e sem metrificação, tarefas corriqueiras são, como
tais, refeitas durante mais um dia, como se nada fosse ocorrer, embora aquele
que as realiza saiba de antemão o desfecho trágico e o antecipe para os leitores.
Interessante que as únicas estrofes a demonstrarem uma mudança no comportamento
do sujeito lírico frente ao fim, mudança em seu cotidiano, são as relativas aos
preparativos para a morte, como é o caso da sétima estrofe:
Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha estou sereno.
Seu comportamento rompe bruscamente com
nossas expectativas sobre os valores dados à vida, estimada como um bem que
deve ser tratado com todos os cuidados, e à morte, vista como algo contra o que
devemos lutar e fugir. O problema reside no fato de que no poema não se
enaltece a vida, não se foge da vida, ao mesmo tempo em que também não se valoriza
a morte como uma saída para o fastio proporcionado pela existência vazia da modernidade.
As referências comuns do leitor são rompidas bruscamente, e não seria exagero notar
pontos em comum com situações estranhas, próximas das narrativas de Franz Kafka
no tocante ao jogo entre o absurdo e o inverosímil. Exemplo dessa visão
inusitada aparece na segunda estrofe, na qual nos deparamos com a ansiedade do
sujeito lírico pela hora do vôo, desejo este que nos causa um mal estar ainda
maior:
Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. [...] Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos.
Tais exemplos demonstram uma narração
cujo protagonista conhece o desenlace pelo qual irá passar, no caso, sua
destruição. Como afirmado, esta primeira característica rompe logo no início do
poema com um possível entendimento da morte como transcendência e, por conseguinte,
superação dos impasses da vida.
Ora, é de se perguntar um dos possíveis
sentidos implícitos nessa perspectiva inovadora em “Morte no avião”. Um caminho
talvez esteja em perceber a profusão de imagens, indubitavelmente ligadas ao
cotidiano do espaço urbano moderno, povoado e solitário, a um só tempo
funcional e sem significação de experiência para o sujeito lírico: “Saio para a
rua”; “Quantos passos/ na rua, que atravesso”; “Visito o banco”; “Passo
nos escritórios.”; “Ainda não é a morte, é a sombra/ sobre edifícios fatigados,[...]”.
O ritmo contínuo, duro, do poema se
casa com as ações do homem que vai rumo à morte; a predominância de orações
simples e coordenadas, crueza rítmica recheada por frases nominais (“O
telefone./A fatura. A carta.”), sobre uma estrutura básica de sujeito, verbo e objeto,
dão-lhe um movimento repetido e maquinal, semelhante à rápida passante baudelaireana181,
cuja duração nos olhos do sujeito é de apenas uns poucos segundos, instantes
imprecisos melhor dizendo:
Declino com a tarde, minha cabeça dói,
defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.
A ultra-consciência no tocante à
chegada da morte (que, reiteramos, não deve ser entendida como final da
existência) causa uma cegueira devido ao grau de conhecimento sobre os meandros
destrutivos do modus vivendi no qual ele se encontra; na profusão de
cenas burocráticas e assustadoras, surgem, na quinta estrofe, dois versos
notáveis pelo seu tom didático: “Estou na cidade grande e sou um homem/na
engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer”.
O trecho confirma o esvaziamento da
possibilidade de existir por meio experiências significativas, de onde a
ausência de diferenças entre estar vivo e morrer; encontramos, pois, em um
primeiro plano, uma situação fantasmagórica das relações entre ser humano e trabalho,
a mais importante, a nosso ver, da reificação182 a
que a vida social e biológica se transforma dentro da máquina à qual ela serve.
O excerto destaca-se por, ao contrário
dos demais versos, não conter ações, mas explicações; ele carrega, de algum
modo, uma função didática sobre os motivos para a coisificação da vida. Com sua
clareza “o homem que está na cidade grande e na engrenagem” destoa de ações
quase kafkianas, que se desenrolam na primeira estrofe:
Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
A ruptura com a idéia de uma
constituição plena é confirmada também por não haver na voz lírica sinais de
desespero, tristeza ou mesmo alívio devido ao desastre. Essa consciência in
extremis, passível de ser intitulada de fria, aparece em relevo através de adjetivos
que conotam serenidade e lucidez, posto que o sujeito lírico já sabia de todo o
desfecho de seu dia sem nenhum pressentimento, outra razão pela qual ele dispensa
sentimentos de desespero, posse ou desejo de prolongamento da vida justamente
na concretização da morte, ou seja, nas imagens de dilaceramento de seu corpo e
dos demais passageiros. Seu discurso, do verso inicial ao encerramento,
assemelha-se a uma profecia que se realizará inevitavelmente, uma vez que nada
o demoverá:
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaços de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
E mais adiante:
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.
Realça-se no trecho acima o
despreendimento do sujeito para com a “vida menor”, que se espraia em elementos
concretos (corpos, materiais do avião, lugares); a imagem causa uma sensação de
profundo estranhamento por beirar, na sua configuração, uma situação non-sense,
semelhante a quadros surrealistas de Salvador Dali. Contudo, se a forma guarda
pontos de contato com experimentações estéticas de vanguarda, seu poder de
impacto se dá para além da capacidade de romper com valores e preceitos de determinado
contexto de produção conservador, como o fizeram as diversas correntes de
vanguarda na Europa da primeira metade do século XX. No caso de “Morte no avião”,
o contraste advém de uma resposta, menos à literatura brasileira ou a seus
pares mais próximos (poetas seus contemporâneos), e mais à aberração a que a
vida foi transformada no mundo de mercadorias e melancolias, na conhecida
imagem final de “A flor e a náusea”, terceiro poema de A rosa do povo: “É
feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o tédio.”
O fundamental de “Morte no avião” é o
mal estar que ele traz, não por seus versos apelarem para a dor, mas sim, e aí
resida seu traço ímpar, pela ausência de dor frente à morte iminente e ao
doloroso contexto de produção; a resistência se dá pela anestesia; morrer nada significa
diante da vida danificada. Ainda que no poema o sujeito lírico tenha
consciência disso, ele apenas expressa a tragédia que já se processa no próprio
cotidiano; os impasses que ele aponta com sua narração da vida controlada
demonstram que esta se tornou fantasmagórica, problema que não diz respeito a
um indivíduo somente, no caso, de nosso sujeito lírico, mas a toda uma
coletividade:
A morte dispôs poltronas para o
conforto
da espera. Aqui se encontram os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.
Passando a outras questões formais,
podemos afirmar que o poema se debate com o controle da vida, cujo resultado
constante é o esvaziamento simbólico e político do ser humano — a ponto de a
morte se tornar alegoricamente a concretização do que não existe e não existirá
neste jogo de cartas marcadas, ou seja, plenitude, totalidade, felicidade em
vida. Nesse ponto, concordamos com Antonio Candido, quando afirma que “Morte no
avião”, “Morte do leiteiro” e “Desaparecimento de Luísa Porto” conseguem “extrair
do acontecimento ainda quente uma vibração profunda que o liberta do
transitório, inscrevendo-o no campo da expressão”183.
O controle do indivíduo pelo capital se
apresenta no tema, finamente casado com o ritmo do poema; com seu tom
narrativo, “Morte no avião” dispensa rimas ou metrificação, seu andamento é
construído por meio de orações curtas, marcadas por intensa pontuação, construindo
um andamento controlado, tenso. Necessário lembrar o conteúdo:
Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem
ir ao cassino, ler um livro.
Há poucas orações subordinadas, seu
modo de composição predominante é a coordenação, o que, devido ao fato de o
poema ser narrativo, soa como uma de justaposição de atos, o que dá ao poema um
ritmo constante, organizado e de pouca variação:
Almoço. Para quê? Almoço um peixe em
ouro e creme.
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio,
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
No trecho acima, encontramos diversas
imagens em seqüência construídas por frases nominais muito curtas: “É o sol. Os
bondes cheios. O trabalho.”, as quais aumentam ainda mais a tensão advinda do
controle sobre o sujeito lírico. Em alguns momentos, o ritmo chega a ser tão preso
que diversas frases são subitamente interrompidas: “Não tomar esse carro. Não seguir
para.” Não é à toa que, estrofes antes, ele afirmara: “Estou na cidade grande e
sou um homem/na engrenagem.” Há aqui uma ruptura no plano não apenas das
expectativas do conteúdo, mas também de linguagem. A sintaxe comum do leitor
não é utilizada, mas quebrada pelo sujeito lírico.
Estes traços de composição, marcados
pelo controle, se alinham ao conteúdo também atravessado pelo signo da vida
reificada. O ápice deste controle está no final do poema, quando, mesmo após a
explosão da nave, o eu lírico continua a narrar e mostra que a tragédia dele e
de tantas outras pessoas se transforma em notícia, ou seja, em produto venal, mercadoria.
A existência se transforma, por um lado, em um simples repetir mecânico, alienado,
enquanto a morte rende dividendos aos que se crêem vivos, no caso, os meios de comunicação.
Tendo em vista os versos aqui brevemente discutidos, observa-se uma história terrível
que, no contexto da modernização conservadora brasileira, se transforma em um ‘horror
calculado’.
Concluímos, portanto, que a morte neste
poema é apenas um detalhe, uma espécie de fato esperado e inócuo na vida
automatizada; na verdade, se fizermos uma leitura alegórica deste poema com seu
contexto de produção e recepção, veremos que seu alcance crítico é enorme. Seu
caráter de “resistência”184 figura
muito além da história do avião em si; seu diálogo se trava de maneira tensa
com o Brasil autoritário dos anos 30 e 40 e de séculos antes, o qual leva as
pessoas a um cotidiano desvinculado de espaços simbólicos, de criação ou debate
políticos, enfim, ações capazes de nos tornar bem mais interessante do que consumidores
com direitos garantidos em um cemitério vivaz de mercadorias humanas.
_____________
180
Cf. o perspicaz trabalho de A. Alvarez sobre o assunto, em especial, a Parte
IV, Suicídio e literatura. In: _____ . O deus selvagem: um estudo sobre
o suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
181
“[...] Um relâmpago, e após a noite! — Aérea beldade,/E cujo olhar me fez
renascer de repente,/Só te verei um dia e já na eternidade?//Bem longe, tarde,
além jamais provavelmente!/Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,/Tu que
eu teria amado — e o sabias demais!” (BAUDELAIRE, Charles. A uma passante. In: ______.
As flores do mal. São Paulo: Círculo do livro, s/d).
182
MARX, Karl. Fetichismo e reificação. In: IANNI, Octavio. (Org.). Marx.
7.ed. São Paulo: Ática, 1992.
183
CANDIDO. Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: _____ . Vários
escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p.129.
184
BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In: _____. O ser e o tempo da poesia.
São Paulo: Cultrix, 1983.
Lírica e autoritarismo em A rosa do povo, de Carlos Drummond de
Andrade, Cristiano Jutgla. São Paulo, Universidade
de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas - Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira,
2008