Manuel António Pina |
NESTE PRECISO TEMPO, NESTE PRECISO LUGAR
No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos)
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3.° andar
e todo o Passado
vem exatamente desaguar
nesse preciso tempo, nesse preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!
Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.»
Manuel
António Pina, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, 1999 (Todas as
Palavras ‒
poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012,
pp. 252-253)
É
curta e assombrada pela dor a obra poética de Manuel António Pina. Nela a morte
espreita a cada poema, de par com a reflexão sobre as palavras (inúteis) que
enchem o mundo e a nostalgia do silêncio que a eternidade, no seu sono,
devolve. Entretanto, e homens por cá, da vida vivida, o passado, não temos
fuga, a menos que a desmemória nos atinja. Felizmente não guardamos tudo, e do
que fica fala-nos o poema: «Por onde vens, Passado, / pelo vivido ou pelo
sonhado? / Que parte de ti me pertence, / a que se lembra ou a que esquece?»
Saberá
cada um de nós com o que conta, mas para lhe aliviar o peso lá virá o momento
em que «…em vez de metafísica / ou de biologia…» nos dê para qualquer outra coisa,
não necessariamente poesia, como ao poeta, mas uma atitude igualmente salutar:
«…passar-lhe ao lado / deitando-lhe o enviesado / olhar da ironia».
Carlos
Mendonça Lopes, https://viciodapoesia.com/2014/06/05/um-poema-de-manuel-antonio-pina/
***
Do discurso bíblico do Fiat
lux, o poeta passa para o discurso científico. Da
conceção de mundo criado pelo verbo, passa-se a matéria orgânica que o compõe.
Uma forma de desviar-se, mudar de rota, típica da linguagem tropologia, tal
como temos discutido. “Depois foi o que se sabe”, mas o que se sabe? Existe
qualquer discurso mais adequado para explicar o surgimento do universo, se o
poeta, entre metafísica e biologia, se coloca em um ainda mais inespecífico
discurso: o da “nem por isso provavelmente poesia”?
Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando
Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021
***
Quando
diz "Depois foi o que se sabe", o sujeito poético parece reconhecer
que a história e a evolução do mundo e da humanidade são conhecidas,
documentadas e estudadas.
A
partir desse ponto, o poema mergulha numa reflexão pessoal e introspetiva do eu
poético, que se encontra debruçado na varanda do terceiro andar, observando o
passado "desaguar" no presente, nesse exato momento e local. O sujeito poético manifesta uma forma de melancolia indefinida, uma sensação de saudade ou
nostalgia sem uma causa específica, que ele associa à poesia, mas também a uma
poesia não necessariamente lírica ou convencional. O sujeito poético parece
abraçar a ambiguidade e a complexidade da existência, encontrando a sua
expressão através de uma poesia que escapa às categorias convencionais.
Quando
o sujeito poético questiona "Por onde vens, Passado, pelo vivido ou pelo
sonhado?", ele reflete sobre a natureza da memória e da história. Há,
pois, a indagação sobre a natureza e a origem do passado, se é algo vivido ou
sonhado, se é algo que se recorda ou que se esquece, se é algo que nos pertence
ou que nos escapa.
A
presença contínua das pessoas na rua representa a continuidade do tempo
presente, contrastando com o passado que existe apenas na memória. O sujeito
poético observa a rua como um cenário de movimento e de efemeridade, onde as
pessoas entram e saem da sua vida sem deixar rasto nem história. A ideia
de "não ter história" e ser uma "ausência entre indiferença e
indiferença" sugere uma sensação de anonimato e de insignificância pessoal
no fluxo contínuo do tempo e da história.
Ao
afirmar que o seu discurso é "nem por isso provavelmente poesia", o sujeito
poético parece duvidar da própria natureza poética das suas palavras. Essa
dúvida pode ser vista como uma forma de humildade, uma autoconsciência sobre as
limitações da linguagem e da poesia em capturar a profundidade da experiência
humana e do tempo.
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