sábado, 29 de julho de 2023

Neste preciso tempo, neste preciso lugar, Manuel António Pina

Manuel António Pina

 

NESTE PRECISO TEMPO, NESTE PRECISO LUGAR
 
No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos)
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3.° andar
e todo o Passado
vem exatamente desaguar
nesse preciso tempo, nesse preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?

 
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.»

 

Manuel António Pina, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, 1999 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, pp. 252-253)

 


É curta e assombrada pela dor a obra poética de Manuel António Pina. Nela a morte espreita a cada poema, de par com a reflexão sobre as palavras (inúteis) que enchem o mundo e a nostalgia do silêncio que a eternidade, no seu sono, devolve. Entretanto, e homens por cá, da vida vivida, o passado, não temos fuga, a menos que a desmemória nos atinja. Felizmente não guardamos tudo, e do que fica fala-nos o poema: «Por onde vens, Passado, / pelo vivido ou pelo sonhado? / Que parte de ti me pertence, / a que se lembra ou a que esquece?»

Saberá cada um de nós com o que conta, mas para lhe aliviar o peso lá virá o momento em que «…em vez de metafísica / ou de biologia…» nos dê para qualquer outra coisa, não necessariamente poesia, como ao poeta, mas uma atitude igualmente salutar: «…passar-lhe ao lado / deitando-lhe o enviesado / olhar da ironia».

Carlos Mendonça Lopes, https://viciodapoesia.com/2014/06/05/um-poema-de-manuel-antonio-pina/

 ***

Do discurso bíblico do Fiat lux, o poeta passa para o discurso científico. Da conceção de mundo criado pelo verbo, passa-se a matéria orgânica que o compõe. Uma forma de desviar-se, mudar de rota, típica da linguagem tropologia, tal como temos discutido. “Depois foi o que se sabe”, mas o que se sabe? Existe qualquer discurso mais adequado para explicar o surgimento do universo, se o poeta, entre metafísica e biologia, se coloca em um ainda mais inespecífico discurso: o da “nem por isso provavelmente poesia”?

Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021

***

Quando diz "Depois foi o que se sabe", o sujeito poético parece reconhecer que a história e a evolução do mundo e da humanidade são conhecidas, documentadas e estudadas.

A partir desse ponto, o poema mergulha numa reflexão pessoal e introspetiva do eu poético, que se encontra debruçado na varanda do terceiro andar, observando o passado "desaguar" no presente, nesse exato momento e local. O sujeito poético manifesta uma forma de melancolia indefinida, uma sensação de saudade ou nostalgia sem uma causa específica, que ele associa à poesia, mas também a uma poesia não necessariamente lírica ou convencional. O sujeito poético parece abraçar a ambiguidade e a complexidade da existência, encontrando a sua expressão através de uma poesia que escapa às categorias convencionais.

Quando o sujeito poético questiona "Por onde vens, Passado, pelo vivido ou pelo sonhado?", ele reflete sobre a natureza da memória e da história. Há, pois, a indagação sobre a natureza e a origem do passado, se é algo vivido ou sonhado, se é algo que se recorda ou que se esquece, se é algo que nos pertence ou que nos escapa.

A presença contínua das pessoas na rua representa a continuidade do tempo presente, contrastando com o passado que existe apenas na memória. O sujeito poético observa a rua como um cenário de movimento e de efemeridade, onde as pessoas entram e saem da sua vida  sem deixar rasto nem história. A ideia de "não ter história" e ser uma "ausência entre indiferença e indiferença" sugere uma sensação de anonimato e de insignificância pessoal no fluxo contínuo do tempo e da história.

Ao afirmar que o seu discurso é "nem por isso provavelmente poesia", o sujeito poético parece duvidar da própria natureza poética das suas palavras. Essa dúvida pode ser vista como uma forma de humildade, uma autoconsciência sobre as limitações da linguagem e da poesia em capturar a profundidade da experiência humana e do tempo.

 

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