sexta-feira, 28 de julho de 2023

Quem desenterrará o que é preciso esquecer? (Manuel António Pina)

  

Uma segunda e mais perigosa inocência

 

Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á.

Marcos, 8, 35

 

Quem desenterrará o que é preciso esquecer?
O escritor torna-se retórico com cega serenidade,
será preciso passar para o lado de fora, flutuar?

Escrevo aquilo que não posso,
transformo-me no que me proponho destruir.
Já não é uma Literatura, é uma Fatalidade.

Aquele que quer morrer
é aquele que quer conservar a vida,
a tristeza daquele que fala ri-se de tudo,
que sentido faz isto e que sentido não faz isto?

 

Manuel António Pina, Aquele que quer morrer, 1978 (Todas as Palavras poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p. 68)

 

No poema há uma indagação sobre renascimento e suas relações com uma ideia de arte (no caso a literatura). Partindo do mote da epígrafe, Pina inverte a equação. Em lugar daquele que perde a vida ao tentar conservá-la, temos aquele que quer conservar a vida ao querer morrer. Eis um conceito de renascimento: morrer, mas conservar a vida. O que deseja renascer precisa morrer, mas paradoxalmente manter a vida. Nietzsche fala da severa enfermidade, de um estado de quase morte, para que daí surja a segunda inocência. Já Pina trata da impossibilidade desse paradoxo (“que sentido faz isto e que sentido não faz isto?”). Aliado a isso também aparece uma ideia de arte, mas que se constrói a partir da suspeita e do paradoxo. A Literatura (escrita com maiúscula) torna-se Fatalidade, pois escreve-se na impossibilidade do dizer, nos limites do sentido e do não-sentido. Palavra ‘sentido’ que, aliás, está carregada de ambiguidade semântica: a de criar uma significação e sentir sensorialmente; pois a Literatura se confunde com a vida (essa fatalidade) e, portanto, significado e sensação (vazios ou plenos) são formas de morrer conservando a vida. “Escrevo aquilo que não posso” surge como uma constatação de suspeita tanto em relação à arte como à ideia de renascimento.

AFORISMOS 233, 236, 262 E 266, DE A GAIA CIÊNCIA (NIETZSCHE) 
O rascunho de “Uma segunda e mais perigosa inocência”
 está entremeado de uma série de excertos copiados de
 uma tradução de A gaia ciência, de Nietzsche


O poema em si estrutura-se na forma de indagação. Sintaticamente, temos cinco orações completas, sendo três delas perguntas. Apenas a segunda estrofe contém afirmações, sendo ambas asseverações da impossibilidade. Tal paradoxo da impossibilidade também é um pouco nietzschiano, pois no trecho anotado por Pina do aforismo 262 de A gaia ciência, lemos o subtítulo latino Sub specie aeterni (do ponto de vista da eternidade) e a última frase do aforismo: “o privilégio é não morrer”. Esse privilégio, segundo Nietzsche, é dos mortos e não dos vivos: “É a única maneira de partilhar o privilégio dos mortos” (NIETZSCHE, 2012, p. 164). Novamente “aquele que quer morrer/ é aquele que quer conservar a vida”. Ou ainda, no poema “Na morte de Mao”, do mesmo livro e que também aparece rascunhado nessa parte do espólio a que estamos nos referindo: “A morte é propriedade dos vivos,/ aquele que morreu já não vive nem está morto” (PINA, 2012, p. 96). A partir de uma constatação que se diria lógica – a morte só pertence aos vivos –, Pina constrói um diálogo que diz muito mais do que o lógico; aponta para a dúvida e impossibilidade como um princípio poético.

 

Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021

 

ANOTAÇÃO DO AFORISMO 182 E PARTE DO AFORISMO 183, DE A GAIA CIÊNCIA


[…]

Tal modulação de um sentido prévio de infância estaria ligada, em alguma medida, ao que, na escrita de Pina, ganha cena através do título de um de seus poemas, tomado de uma passagem de Nietzsche,18 em seu livro A gaia ciência: “Uma segunda e mais perigosa inocência19 (PINA, 2012, p. 68):


[...] voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes (NIETZSCHE, 2001, p. 13).

 

Na passagem de Nietzsche, lemos a finalização da frase que, embora não esteja no título do poema: “com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria” (grifo nosso), comparece, com alguma discrição, nos versos que esboçam uma quase contra-arte poética: uma segunda inocência na alegria – apesar de toda consciência da fatalidade e melancolia de quem escreve tardiamente perante uma modernidade que já não é possível alcançar, de uma primeira infância igualmente irrecuperável, de quem escreve, afinal, aquilo que não pode –, alegria inscrita, de algum modo, em grau mais sutil, não evidente, em forma de tristeza daquele que “ri-se de tudo”, através de uma relação irônica e risonha com o passado, com a Literatura, e a sua morte, de um exercício persistente, e não sem tormento, de despersonalização consciente de sua retórica em cega e contraditória “serenidade”, quando exercer essa segunda inocência, essa infância como gesto, modulação, procedimento, é antes de tudo brincar com o tempo, e no caso de Pina, com a biblioteca, esse “lugar anacrônico por excelência” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26).

O poema traz ainda uma epígrafe: “Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, apotegma de Marcos, de onde virá inclusive o verso-título do livro de 1978, Aquele que quer morrer (PINA, 1978). Existe uma disjunção de tempos nessa composição, uma montagem de temporalidades heterogêneas no espaço do poema, procedimento que pode se evidenciar na afirmação de Rui Lage:


O estatuto do poeta contemporâneo implícito na poesia de Pina é o de um investigador forense debruçado sobre o cadáver da Literatura. É uma criatura tardia, um recoletor de sentidos dispersados, um inventariador de ruínas, de “papéis velhos, vidas mortas, /identidade, sujidade, eternidade”. (LAGE, 2016, p. 29)

A infância em Pina surgiria antes de mais no gesto de um colecionador, perdido na biblioteca, capaz de em seus poemas “introduzir-se na Última Ceia pela mão de Quevedo, ao parafrasear Bob Dylan, ao cruzar num mesmo poema a letra de ‘Highway to hell’ do AC/DC com o despenhamento do carro do Sol às mãos de Faetonte” (LAGE, 2016, p. 28). Além do intenso trabalho de intertextualidade em seus poemas, das referências, colagens, do “recurso constante à citação, ao pastiche, a alusões, ao remake, à glosa, ao revivalismo” (SANTOS, 2004, p. 19), compondo o que Pedro Eiras chamará de “palimpsesto absoluto” (EIRAS, 2002, p. 155), tal gesto de infância se configuraria ainda na tentativa incessante de dissolução de uma voz autoral; na criação de pseudo heterônimos, como Slim da Silva e Clóvis da Silva;20 e em deslocamentos e desmontagens sintáticos, como, por exemplo, em torno do dêitico isto: “Alguma coisa em algum lugar/ de o que existe e de o que não existe/ é isto que escreve e a ciência de isto/ a pura voz sem sujeito e o fora de ela” (PINA, 2012, p. 69).

 

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18 Como bem aponta Rui Lage, Pina em entrevista à “Ciber- kiosk”, afirma de forma explícita: “Os poemas de Aquele que quer morrer radicam, fundamentalmente, em duas leituras (os livros geram outros livros): o Tao Te King e A gaia ciência, de Nietzsche” (PINA, 2016, p. 18).

19 A expressão encontra igualmente lugar numa fala de Pina sobre a infância, em entrevista dada a Luís Miguel Queirós: “A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância – a palavra ‘infância’ e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância – é, julgo eu, a melancolia da ‘primeiridão’, de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, ‘não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança’. Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzschiana ‘segunda e mais perigosa inocência’, uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência” (QUEIRÓS, 2011, s/p).

 

Entre o brinquedo e a biblioteca: a poética de Manuel António Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2020

 

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