Uma
segunda e mais perigosa inocência
Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á.
Marcos, 8, 35
Quem desenterrará o que é preciso
esquecer?
O escritor torna-se retórico com cega serenidade,
será preciso passar para o lado de fora, flutuar?
Escrevo aquilo que não posso,
transformo-me no que me proponho destruir.
Já não é uma Literatura, é uma Fatalidade.
Aquele que quer morrer
é aquele que quer conservar a vida,
a tristeza daquele que fala ri-se de tudo,
que sentido faz isto e que sentido não faz isto?
Manuel
António Pina, Aquele que quer morrer, 1978 (Todas as Palavras ‒
poesia reunida. Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p.
68)
No poema há uma indagação sobre renascimento e
suas relações com uma ideia de arte (no caso a literatura). Partindo do mote da
epígrafe, Pina inverte a equação. Em lugar daquele que perde a vida ao tentar
conservá-la, temos aquele que quer conservar a vida ao querer morrer. Eis um
conceito de renascimento: morrer, mas conservar a vida. O que deseja renascer
precisa morrer, mas paradoxalmente manter a vida. Nietzsche fala da severa
enfermidade, de um estado de quase morte, para que daí surja a segunda
inocência. Já Pina trata da impossibilidade desse paradoxo (“que sentido faz
isto e que sentido não faz isto?”). Aliado a isso também aparece uma ideia de
arte, mas que se constrói a partir da suspeita e do paradoxo. A Literatura
(escrita com maiúscula) torna-se Fatalidade, pois escreve-se na impossibilidade
do dizer, nos limites do sentido e do não-sentido. Palavra ‘sentido’ que,
aliás, está carregada de ambiguidade semântica: a de criar uma significação e
sentir sensorialmente; pois a Literatura se confunde com a vida (essa
fatalidade) e, portanto, significado e sensação (vazios ou plenos) são formas de
morrer conservando a vida. “Escrevo aquilo que não posso” surge como uma constatação
de suspeita tanto em relação à arte como à ideia de renascimento.
O poema em si estrutura-se na forma de indagação.
Sintaticamente, temos cinco orações completas, sendo três delas perguntas.
Apenas a segunda estrofe contém afirmações, sendo ambas asseverações da
impossibilidade. Tal paradoxo da impossibilidade também é um pouco
nietzschiano, pois no trecho anotado por Pina do aforismo 262 de A gaia ciência, lemos o subtítulo latino Sub specie aeterni (do ponto de vista da eternidade) e a última
frase do aforismo: “o privilégio é não morrer”. Esse privilégio, segundo
Nietzsche, é dos mortos e não dos vivos: “É a única maneira de partilhar o
privilégio dos mortos” (NIETZSCHE, 2012, p. 164). Novamente “aquele que quer
morrer/ é aquele que quer conservar a vida”. Ou ainda, no poema “Na morte de
Mao”, do mesmo livro e que também aparece rascunhado nessa parte do espólio a
que estamos nos referindo: “A morte é propriedade dos vivos,/ aquele que morreu
já não vive nem está morto” (PINA, 2012, p. 96). A partir de uma constatação
que se diria lógica – a morte só pertence aos vivos –, Pina constrói um diálogo
que diz muito mais do que o lógico; aponta para a dúvida e impossibilidade como
um princípio poético.
Entre nomes supostos: ceticismo linguístico na poesia de
Fernando Pessoa e Manuel António Pina, Thiago Queiroz. Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas, 2021
ANOTAÇÃO DO AFORISMO 182 E PARTE DO AFORISMO 183, DE A GAIA CIÊNCIA |
[…]
Tal modulação de um sentido prévio de
infância estaria ligada, em alguma medida, ao que, na escrita de Pina, ganha
cena através do título de um de seus poemas, tomado de uma passagem de
Nietzsche,18 em seu
livro A gaia ciência:
“Uma segunda e mais perigosa
inocência”19 (PINA,
2012, p. 68):
[...] voltamos renascidos, de pele
mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria,
com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos,
com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis
e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes (NIETZSCHE, 2001, p.
13).
Na passagem de Nietzsche, lemos a
finalização da frase que, embora não esteja no título do poema: “com uma
segunda, mais perigosa inocência na
alegria” (grifo nosso), comparece, com alguma
discrição, nos versos que esboçam uma quase contra-arte poética: uma segunda
inocência na alegria
– apesar de toda consciência da fatalidade
e melancolia de quem escreve
tardiamente perante uma modernidade que já não é possível alcançar, de uma primeira
infância igualmente irrecuperável, de
quem escreve, afinal, aquilo que não pode
–, alegria inscrita, de algum modo, em grau mais sutil, não evidente, em forma
de tristeza daquele que “ri-se de tudo”, através de uma relação irônica e risonha
com o passado, com a Literatura, e a
sua morte, de um exercício persistente, e não sem tormento, de
despersonalização consciente de sua retórica em cega e contraditória “serenidade”,
quando exercer essa segunda inocência,
essa infância como gesto, modulação, procedimento, é antes de tudo brincar
com o tempo, e no caso de Pina, com a biblioteca,
esse “lugar anacrônico por excelência” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26).
O poema traz ainda uma epígrafe:
“Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, apotegma de Marcos, de onde virá
inclusive o verso-título do livro de 1978, Aquele
que quer morrer (PINA, 1978). Existe uma disjunção de
tempos nessa composição, uma montagem de temporalidades heterogêneas no espaço
do poema, procedimento que pode se evidenciar na afirmação de Rui Lage:
O estatuto do poeta
contemporâneo implícito na poesia de Pina é o de um investigador forense
debruçado sobre o cadáver da Literatura. É uma criatura tardia, um recoletor de
sentidos dispersados, um inventariador de ruínas, de “papéis velhos, vidas
mortas, /identidade, sujidade, eternidade”. (LAGE, 2016, p. 29)
A infância em Pina surgiria antes de
mais no gesto de um colecionador,
perdido na biblioteca, capaz de em seus poemas “introduzir-se na Última Ceia
pela mão de Quevedo, ao parafrasear Bob Dylan, ao cruzar num mesmo poema a
letra de ‘Highway to hell’ do AC/DC com o despenhamento do carro do Sol às mãos
de Faetonte” (LAGE, 2016, p. 28). Além do intenso trabalho de intertextualidade
em seus poemas, das referências, colagens, do “recurso constante à citação, ao pastiche,
a alusões, ao remake,
à glosa, ao revivalismo” (SANTOS, 2004, p. 19), compondo o que Pedro Eiras
chamará de “palimpsesto absoluto” (EIRAS, 2002, p. 155), tal gesto de infância
se configuraria ainda na tentativa incessante de dissolução de uma voz autoral;
na criação de pseudo heterônimos, como Slim da Silva e Clóvis da Silva;20
e em deslocamentos e desmontagens sintáticos, como, por
exemplo, em torno do dêitico isto:
“Alguma coisa em algum lugar/ de o que existe e de o que não existe/ é isto que
escreve e a ciência de isto/ a pura voz sem sujeito e o fora de ela” (PINA,
2012, p. 69).
_______
18 Como
bem aponta Rui Lage, Pina em entrevista à “Ciber- kiosk”, afirma de forma
explícita: “Os poemas de Aquele que quer morrer radicam,
fundamentalmente, em duas leituras (os livros geram outros livros): o Tao
Te King e A gaia ciência,
de Nietzsche” (PINA, 2016, p. 18).
19
A expressão encontra igualmente lugar numa fala de Pina sobre a
infância, em entrevista dada a Luís Miguel Queirós: “A infância é algo que só
se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para
se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha a infância – a palavra
‘infância’ e a ideia de infância mais do que a concreta memória de uma infância
– é, julgo eu, a melancolia da ‘primeiridão’, de um tempo mítico em que olhámos
o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e
de memória, isto é, ‘não embaciados de nenhuma palavra/ e nenhuma lembrança’.
Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma
nietzschiana ‘segunda e mais perigosa inocência’, uma inocência que se sabe
inocente, ou então apenas uma espécie de vontade de inocência” (QUEIRÓS, 2011,
s/p).
Entre o brinquedo e a biblioteca: a poética de Manuel António
Pina, Paloma Roriz Espínola. Niterói,
Universidade Federal Fluminense, 2020
Sem comentários:
Enviar um comentário