Poemas de Eugénio de Andrade Lidos Pelo Autor, 1972 |
LETTERA
AMOROSA
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-d’água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
sabe ao sol dos rios,
sabe a rosa-louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Eugénio
de Andrade, Mar de setembro,
1977 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
***
Adentrando pelo título,
observa-se em “Lettera Amorosa” a configuração de uma carta de amor que,
de certa forma, é o próprio corpo lido pelo poeta que o sabe de cor e que o colore
para o leitor usando o branco (lua, cal, luz) e o rubro (sangue, cair da noite).
A construção em
redondilhas é responsável pela simetria do poema que sugere a perfeição do
corpo físico evocado. Tal construção, de fácil assimilação, envolve o leitor
num movimento rápido e ritmado, fazendo-o se sentir, também, sabedor do
corpo/poema. Às vogais fechadas do primeiro verso (Respiro o teu corpo),
sucedem, ao longo do poema, vogais abertas (sabe, d’água, molhada, nua,
rosa-louca, pedra amarga) que funcionam como a entrega do corpo físico/textual
ao poeta/leitor.
A repetição do verbo “sabe”
no início dos versos 2/4/5/6/8/10/11 promove um anelo graças ao ritmo dado ao
poema. A recorrência é um “modo tático pelo qual a linguagem procura recuperar
a sensação de simultaneidade” e demonstra que “se está a caminho e que se insiste
em prosseguir” (BOSI, 2000, p. 41). Assim, por meio da reiteração do
som/palavra materializa-se a vertigem do ato de exploração/leitura amorosa do
corpo/poema.
A cada “sabe” o
significado se condensa em saber e sabor que o poeta degusta, sinestesicamente,
com os olhos e a inteligência. Na tradição filosófica do haiku, o sentir “é alguma
coisa que está entre o pensamento e a sensação, o sentimento e a idéia” (PAZ,
1991, p. 197). Essa disposição oriental encontra-se no primeiro verso, no qual
há a integração do poeta/leitor com o corpo/texto assim que ele o “respira”, ou
seja, a sensação olfativa é distribuída ao paladar (sabor) e ao intelecto
(saber).
As imagens elementares da
terra (cal), da luz, do vento (brisa), da água (rio) são evocadas para compor
uma pluralidade na unidade harmônica do corpo/natureza/texto. Diz Eugénio que
“a terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor
de que minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulharam desde a infância no
mundo mais elemental” (1990, p. 288). Assim, as metáforas elementares são,
nesta poesia, imagensgeratrizes, pois geram uma nova imagem adjetivada, muitas
vezes dissonante racionalmente, mas sensivelmente harmônica.
É exemplar a imagem “luz
mordida” que funde a abstração da claridade ao ato concreto de morder, o qual
contém o escuro da boca fechada e a fome, imagem erótica do desejo. Já “brisa
nua” humaniza a natureza à medida que torna visual o elemento “ar” por meio da
sensação táctil: ao associar o frescor da brisa ao descritivo nua, o poeta
potencializa a sensação ao máximo, gerando a imagem de um arrepio. A
normalidade sofre um abalo com a cópula da imagem arrepio (imagem-gerada pelas
imagens-geratrizes) ao sabor, gerando uma imagem virtual da língua sobre o
corpo. Lembrando Bosi: “A realidade da imagem está no ícone. A verdade da
imagem está no símbolo” (2000, p. 46).
A imagem do nenúfar “lua
d’água ao amanhecer” recria, a partir dos elementos luz (contido em lua) e
água, uma reação quase química no poema, dando-lhe claridade (no branco da
flor) e umidade (no orvalho do amanhecer). Não se pode esquecer que na
filosofia oriental “o orvalho, a névoa, as nuvens e outros vapores estão associados
ao fluido feminino” (PAZ, 1979, p. 94). Nessa fusão surge o corpo desejado
transfigurado pelo corpo poemático: branco e molhado, acordando para o
poeta/leitor. Essa imagem é reiterada na seguinte: “cal molhada” é a parede
branca das construções portuguesas escorrendo a água da chuva, como o corpo fluindo
e sugado no poema.
Mas, a tela eugeniana
recebe, ainda, pinceladas de um vermelho vivo, dos “sangue dos rios” e
“rosa-louca”. Na primeira imagem, o sangue como essência da vida potencializa a
água doce dos rios, símbolo da vida para Bachelard, que pulsa/corre nas veias
humanas como o rio no seu leito. Nessa recriação, todo o sabor sensível e
intelectual do movimento erotizado da vida. Já em rosa-louca, a efemeridade
conferida ao termo rosa junta-se ao adjetivo que representa o desespero da
paixão, materializado na passagem do dia para a noite, do branco para o
vermelho da flor. E, passagem, também, do doce para o “amargo” da “pedra” que representa
a frieza do fim e a possibilidade do sabor e concretude em sua boca.
Geruza Almeida, “Eugénio de Andrade: um duplo erótico”. Labirintos
(UEFS), v. 2 , p. 1 - 16 , 2007. ISSN: 19808895.
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“A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
“Lettera Amorosa, Eugénio de Andrade”,
José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-18. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/lettera-amorosa-eugenio-de-andrade.html
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