Ilustração do poema “Urgentemente”,
por Sónia Oliveira. (in Letras & Companhia 9, C. Marques e I. Silva. Lisboa, Edições Asa, 2013) |
URGENTEMENTE
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio
de Andrade, Até amanhã, 1956
(1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
I - Linhas
de leitura do poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade
Este poema é uma mensagem da urgente
construção do amor, da permanência na unidade, imperativa em
todos os tempos e lugares e, por isso, meta-histórica e universal.
Os
elementos do discurso que a nível morfológico revelam a intensidade do apelo:
«É
urgente» (vv. 1,2,3,7,9,13);
A
utilização dos verbos «inventar», «multiplicar» e «descobrir» reforçam não só a
ideia de urgência, mas também da necessidade de construção e de multiplicação
desse amor...
Os
elementos que recriam o amor:
«Um
barco no mar» (que pode simbolizar a salvação);
«inventar
alegria»;
«multiplicar
os beijos, as searas» (aumentando a amizade, a felicidade e a fraternidade para
que frutifiquem como as searas);
«descobrir
rosas e rios e manhãs claras» (a beleza das rosas, a presença do outro, a
alegria da claridade da manhã);
«permanecer»
(não desistindo da construção desse ambiente de fraternidade e de amizade):.
Os
conceitos que se opõem ao amor:
É necessário destruir (por serem contrárias
ao amor): «certas palavras»; «ódio, solidão e crueldade»; «alguns lamentos»;
«muitas espadas»;
É preciso acabar com o «silêncio» e com a
«luz impura».
Valor semântico-simbólico de alguns vocábulos:
barco: a viagem, a
salvação;
espadas: guerra, ódio,
violência;
silêncio: solidão, falta
de comunicação;
rosas: beleza, pureza,
amizade;
manhãs claras: alegria,
pureza, paz.
Divisão em partes e assunto de cada parte:
O poema pode dividir-se em quatro momentos,
de acordo com a organização estrófica e com os verbos utilizados.
A primeira estrofe surge como apelo geral à
urgência (da descoberta das «rosas e rios / e manhãs claras») pois só ele pode
salvar (ser «um barco no mar»);
na segunda estrofe, o apelo liga-se à
necessidade de «destruir» tudo o que impede a construção desse amor – dessa
liberdade (portanto, a urgência da destruição de «certas palavras» como «ódio,
solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas»);
na terceira parte, surge a necessidade de
«inventar», «multiplicar» e «descobrir» o que é belo e dá sentido à vida – alegria,
beijos, searas, rosas e risos e manhãs claras – e que permite
construir ou reconstruir um mundo mais autêntico e fraterno (em síntese, a 3ª
estrofe marca a necessidade da invenção da «alegria» e do amor – «multiplicar
os beijos, as searas»);
a última estrofe justifica, de modo mais explícito,
a postura ética assumida, já que a imagem simbólica do silêncio abafa a
mensagem das palavras («cai o silêncio nos ombros») e a luz perde o seu
carácter benfazejo para se tornar impura, causando a dor. Portanto, na
última estrofe, em forma de conclusão, o poeta volta a referir o que impede o
amor e faz «doer», para dizer que não se pode desistir, perder a esperança, que
é forçoso «permanecer».
Linguagem:
Linguagem rica, variada e sugestiva;
Funções apelativa e emotiva;
Vocabulário utilizado (É urgente, amor,
barco, inventar alegria, multiplicar os beijos, rosas e rios, permanecer...)
transmitindo a ideia de busca do amor, de construção de paz e de liberdade;
Objetivo
a atingir: convencer da urgência do amor...
Recursos estilísticos:
anáfora (vv. l, 2,3)
repetições
metáfora (v. 2)
hipérbole (vv. 3-6) (vv.
11-12)
aliterações /s/ (vv. 3-6)
aliterações/r/(vv. 7-10)
antíteses (destruir / inventar) (amor /
ódio)
personificação (v. 12)
sinestesia («descobrir rosas e rios»)
O poema à luz do título da
obra (Até Amanhã).
Sem amor não há futuro...
Até Amanhã garante essa margem de esperança e reafirma a
persistência na invenção do amor...
(adaptado de: Português A
e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário
Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior:
preparação para a prova de exame nacional - 12º ano, pp. 187, 406, 407; Para
uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença,
1997, pp. 127-128)
II - Lê atentamente o poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade, e
responde, de modo estruturado, às perguntas abaixo apresentadas.
1. Este é um poema que com certeza já
conhecerás. Revisita-o através desta análise.
1.1. Propõe uma interpretação simbólica para o
elemento “barco no mar”.
2. Explica o sentido do verso “É urgente
destruir certas palavras”, clarificando o que “É urgente destruir”.
3. Interpreta a terceira estrofe, tendo em
conta o valor simbólico e metafórico das palavras.
4. Relê a quarta estrofe.
4.1. Explicita o significado dos dois primeiros
versos “Cai o silêncio nos ombros,/ e a luz impura até doer”, relacionando-os
com o conteúdo da estrofe anterior.
4.2. Mostra como estes dois versos se poderão
articular com a linha de leitura “Representações do contemporâneo”.
III – Comentário
de texto
Elabore um comentário
global do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- tema e sua relação com o
eufórico/disfórico;
- expressividade das formas
verbais;
- simbologia dos nomes;
- recursos estilísticos
relevantes.
Proposta de
correção do comentário de texto:
Neste poema de Eugénio de
Andrade ressalta um tom apelativo e são vários os elementos discursivos que
revelam a sua intensidade.
Tendo como tema
fundamental o apelo que lança a toda a humanidade, não será de estranhar que se
percecione, desde o título, um grito que reclama a harmonia. Além do mais, é visível
a oposição entre os aspetos negativos e os positivos, contrapondo-se, deste
modo, os elementos eufóricos e disfóricos.
Além da repetição
sistemática do vocábulo "urgente", os verbos "inventar", "multiplicar"
e "descobrir" sugerem, também, a necessidade de expandir o amor e
contribuem para reforçar a ideia que defende desde o início: espalhar a
harmonia no mundo, começando pelos homens.
Há, ainda, outras expressões
que remetem para a necessidade de fazer prevalecer o amor sobre a humanidade. É
o caso da expressão "um barco no mar", a sugerir a salvação, uma vez
que esse sentimento também pode salvar o Homem da destruição iminente; o mesmo
é sugerido pelas expressões "inventar alegria", "multiplicar os
beijos, as searas", "descobrir rosas e risos / e manhãs claras"
que, para além de simbolizarem o eufórico, servem igualmente para despertar a
vontade de aumentar a amizade, a felicidade e a fraternidade.
A última expressão
simboliza ainda a beleza, a alegria e a presença do outro.
O verbo
"permanecer" conota a insistência e a necessidade de se construir um ambiente
fraterno e amigável.
Todavia, há muitos
elementos que sugerem a oposição ao amor e que, por isso, é preciso destruir,
destacando-se o "ódio / solidão e crueldade / alguns lamentos / muitas
espadas", o "silêncio", a "luz impura". De facto, a
negatividade ou disforia que envolve este vocabulário serve para destacar,
novamente, a vantagem da sobreposição do amor, em detrimento destes aspetos
negativos que pairam no mundo.
E se os vocábulos usados
sugerem o disfórico, os verbos também adquirem valores opostos. Assim, “inventar"
e "permanecer" remetem, respetivamente, para a necessidade de voltar
a construir a amizade e a fraternidade, partindo dei nada para ai não existir impureza,
e para a ideia de persistência, de luta constante, para que a esperança não se
apague e "a luz impura" se imponha "até doer". Já o verbo
"destruir" encerra uma conotação negativa, embora no contexto se
reporte à destruição de todos os aspetos impeditivos à implantação desse amor,
assumindo, deste modo, um valor positivo.
Há outros termos que
convém descodificar, dado que o seu valor semântico se associa à mensagem que
se pretende transmitir. Destaque-se, por exemplo, o substantivo
"barco" como símbolo da viagem que permitirá a fuga e a consequente salvação,
enquanto "espadas" Indicia sentimentos contrários e sugere a guerra,
o ódio, a violência; a palavra "silêncio" remete para o isolamento, a
solidão, a falta de comunicação; já "rosas" conotam beleza, harmonia,
amor, pureza e os "risos" e as "manhãs claras" apontam para
a felicidade, a alegria e a paz.
Sendo Eugénio de Andrade
considerado o artista da palavra, não é de estranhar que utilize uma linguagem
rica e variada, selecionando o vocabulário que lhe permita transmitir o seu
apelo e as razões por que o faz. Além do mais, serve-se de um conjunto de
recursos de estilo que servem a sua intencionalidade: a anáfora e as
repetições, a traduzir a insistência do apelo; as antíteses, para apresentar duas
realidades distintas e permitir a opção pela mais benéfica para a humanidade;
as aliterações em "s" e em "r", a sugerirem a reflexão e a preocupação;
as hipérboles, usadas primeiramente como forma de acentuar a destruição e
depois para acentuar a urgência do amor; a metáfora, que serve para imprimir o
valor simbólico à mensagem.
Em conclusão, poder-se-á
afirmar que todos os processos usados pelo autor concorrem para clarificar a
mensagem que o poema encerra: sem amor não há futuro nem harmonia no mundo. O
próprio título da obra "Até amanhã" conota a esperança e a
persistência da necessidade de inventar e construir o amor.
Dossier Exame ‑
Português A, 12º ano, Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003. ISBN:
972-41-3415-6
IV - Oficina de escrita criativa
O seguinte fragmento trata-se de uma transcrição incompleta do poema de Eugénio de Andrade. Completa-o de forma expressiva.
É urgente o Amor,
É urgente ……….…….
É urgente destruir certas palavras
……….……,
alguns ……….……,
muitas ……….…….
É urgente ……….……,
multiplicar ……….……,
é urgente ……….……
e ……….…….
……….……
……….…….
É urgente o amor,
É urgente ……….…….
Poderá também gostar de:
“Urgentemente, Eugénio de
Andrade”, José Carreiro. Folha
de Poesia, 2022-11-17. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/urgentemente-eugenio-de-andrade.html
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