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segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Retrato: No teu rosto começa a madrugada. (Eugénio de Andrade)



RETRATO

 

No teu rosto começa a madrugada.

Luz abrindo,

de rosa em rosa,

transparente e molhada.

 

Melodia

distante mas segura;

irrompendo da terra,

quente, redonda, madura.

 

Mar imenso,

praia deserta, horizontal e calma.

Sabor agreste.

Rosto da minha alma.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª ed.)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

Linhas de leitura do poema “Retrato”, de Eugénio de Andrade

Note que o poema diz o «rosto», mas se chama «Retrato», marcando assim a mediação entre o tempo em que se vive e o tempo em que se escreve.

É a fixação do rosto na moldura, o retrato, portanto, que torna o passado irremediavelmente perdido.

O «rosto» é metaforicamente representado nos elementos, numa harmonia cósmica de «luz», «melodia», «mar», «praia», «sabor», ou seja, um somatório complexo ligado aos elementos água e terra, a uma paisagem arcaica, infantil, ao «elemental», como diz Oscar Lopes.

O «rosto» é ainda o começo da «madrugada», predecessor do dia, plenitude a atingir. O «teu rosto» é, pois, o «rosto da minha alma», é, afinal, o retrato do próprio Eu – o que implica um não distinguir do Eu e do Tu

Eugénio de Andrade é um poeta apolíneo, da luz, da claridade e da transparência, em que o límpido apelo dos sentidos deixa perceber essa celebração dos momentos de plenitude, por efémeros que possam ser.

Em todo poema, observa-se o campo semântico da transparência, quer nas imagens da "madrugada", de "luz", de "transparente" ou no "mar imenso", quer na "melodia" e em toda a sua franqueza.

Note-se a aproximação do rosto do ser amado» que se abre de "rosa em rosa" ao estímulo que vem da terra "cálida e madura", e se torna "mar imenso" a indicar essa transparência e a inspirar a possível fecundidade, mas sobretudo a vida natural.

Recorde-se que a água é um referente eufórico na poesia de Eugénio de Andrade. Associa-se à imagem materna, pura e acolhedora, sugerindo o líquido amniótico que alimenta e mantém o feto seguro.

«Luz», «melodia», «mar» e «praia» são metáforas do corpo que cresce e se desenvolve; a «melodia» é dita explicitamente «irrompendo da terra», ou seja, como tendo origem na terra-mãe, «quente, redonda», como o ventre da mãe prestes a dar à luz («madura»).

Observe-se ainda, o rosto como "sabor agreste" insinuando o fruto, vindo da Natureza. Percorre todo o poema uma verdadeira metáfora da relação amorosa onde a sensualidade se revela diáfana, provocando um privilegiado momento eufórico.

 

(Adaptado de: Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 75; Português A e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior: preparação para a prova de exame nacional - 12º ano)

  

Poderá também gostar de:




“Retrato: No teu rosto começa a madrugada. (Eugénio de Andrade)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-14. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/retrato-no-teu-rosto-comeca-madrugada.html



domingo, 13 de novembro de 2022

Metamorfoses da palavra, Eugénio de Andrade


 

METAMORFOSES DA PALAVRA

 

A palavra nasceu:

nos lábios cintila.

 

Carícia ou aroma,

mal pousa nos dedos.

 

De ramo em ramo voa,

na luz se derrama.

 

A morte não existe:

tudo é canto ou chama.

 

Eugénio de Andrade, Até amanhã, 1956 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 

Linhas de leitura do poema “Metamorfoses da palavra”, de Eugénio de Andrade

O poeta, em quatro dísticos alternadamente hexassílabos e pentassílabos, canta o nascimento cintilante da palavra como um acontecimento primordial, genesíaco (1º dístico).

O seu carácter delicado e sensível está bem patente no 2.º dístico, que aparenta com a sinestesia metafórica do tato («Carícia», «mal poisa os dedos») ou do olfato («aroma»).

E enquanto o 3.º dístico assinala a sua marca dinâmica, transformacional, a partir das metáforas do pássaro que «De ramo em ramo voa» e do líquido que «na luz de derrama», o último contorna o grande obstáculo da morte, cuja existência eufemisticamente nega, em face da sedução poética do canto e da chama.

Poeta da esperança e da metamorfose construtiva, Eugénio de Andrade reanima a nossa coragem de viver, na essencialidade e na pureza do Belo.

 

António Moniz, Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Ed. Presença, 1997, pp. 131

 

*** 

Texto de apoio

No quadro da poética eugeniana, a “chama” é essencialmente criadora, embora não deixe também de recuperar a vasta memória das contradições cósmicas do “fogo”. Como temos visto desde o primeiro livro de Poemas, a “luz”, máxima transubstanciação do fogo, aproxima-se do poder genesíaco da palavra. Figura o excesso de realidade e é metáfora da transformação de toda expressão poética. Em Até amanhã, há uma verdadeira cosmogonia da luz: desde seu elemento mais primitivo até a energia transubstanciada nas diversas manifestações de claridade. Em todas as suas etapas, a luz participa no trabalho de abertura da linguagem. Em diversos momentos, como no sexto e no décimo terceiro poemas do livro, que transcrevemos abaixo, compõe-se uma verdadeira “poética do fogo”.

Breve, fugidia, a palavra eugeniana nasce do corpo, dos “lábios”, dos “dedos”, para esvaecer-se em “fogo”, “chama” ou “luz que se derrama”, traçando novo movimento de ascese, a recuperar, de certa maneira, a vivência do absoluto – ainda que revertida para uma perspetiva imanentista. Assim, desde sua primeira manifestação, a palavra é luminosa e se expande gradualmente, envolvendo os sentidos, como o tato (“carícia”), o paladar (“lábios”), o olfato (“aroma”) e a visão (“cintilar”), em comunhão com os elementos. No cume, o “canto” final da palavra ao infinito é descrito em termos de “chama”: fusão metafísica do instante ampliado, linguagem absoluta, ascensão do ser: “Parece que um tempo cósmico vem aqui ampliar o tempo subalterno, esse tempo que encadeia e não produz. O poema eleva-se a um nível de acontecimento do universo para conhecer o instante de um clarão” (BACHELARD, 1990, p. 57).

 

Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012

 

 

Poderá também gostar de:

 

 


“Metamorfoses da palavra, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-13. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/metamorfoses-da-palavra-eugenio-de.html


sábado, 12 de novembro de 2022

As palavras, Eugénio de Andrade

 


 

 

 

 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

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20

AS PALAVRAS

 

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.

 

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.

 

Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.

 

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

 

Eugénio de Andrade, Coração do dia, 1958 (1.ª ed.)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 
"As palavras", de Eugénio de Andrade. Produções Fictícias, 2005


I - Linhas de leitura do poema “As palavras”, de Eugénio de Andrade:

O sujeito poético propõe, a partir de um jogo metafórico e metalinguístico, uma reflexão sobre o valor polissémico das palavras. Este poema reflete, portanto, sobre o seu próprio processo de construção, sobre as possibilidades criadoras da palavra.

 

1.ª estrofe

«São como um cristal, / as palavras.» – nesta frase existe um hipérbato e a razão dessa inversão está na ênfase posta no primeiro membro da comparação, que tem o valor de um verso; nela assenta a expectativa criada pelo primeiro verso.

Quatro imagens visuais organizadas numa combinação antitética sugerem a primeira tentativa definitória das palavras:

um cristal

 

- luz (brilho das palavras = sentidos)

- reflexo (da realidade)

- qualidade (valor das palavras)

- transparência (as palavras devem transmitir a verdade, pureza interior, inocência)

- múltiplas faces (os vários sentidos das palavras, que podem ser abordadas de vários ângulos)

 

um punhal

 

- agressividade

- crueldade

- morte

- sofrimento

um incêndio

 

- destruição

- violência impetuosa

- purificação

orvalho

 

- suavidade, delicadeza sensorial

- esperança

- acalmia

 

O sentido da oposição positividade vs. negatividade tem a ver com as próprias contradições que as palavras contêm. Quer dizer, as palavras são ambíguas, assumem valores diversificados, consoante a intencionalidade dos falantes.

 

2.ª estrofe

«Secretas vêm, cheias de memória.» – as palavras são condensadoras de um saber antigo: atravessam os tempos, recebem novos significados, evoluem, carregam os segredos da história dos homens e acompanham os seres falantes como instrumento indispensável de comunicação.

 

«Inseguras navegam: / barcos ou beijos, / as águas estremecem» – Que relação se pode estabelecer entre palavras e barcos e palavras e beijos?

entre palavras e barcos pode-se estabelecer estabelece-se a relação de viagem (insegurança, quer das palavras, quer dos barcos; as palavras agitam as pessoas; os barcos as águas);

entre palavras e beijos pode-se estabelecer a relação de amor (ninguém fica indiferente às palavras nem as pessoas aos beijos).

 

A 2ª estrofe assenta em duas imagens («barcos» e «beijos»), numa associação metonímica (elementos interatuantes) com «águas». A intimidade do passado («secretas», «cheias de memória»), ao ser revelada («vêm», «navegam»), introduz insegurança («Inseguras»), medo («as águas estremecem»). A oposição, tecida na 1ª estrofe entre inocência e crueldade, é agora ampliada através de efeitos antagónicos: o percurso positivo do passado («secretas», «cheias de memória») versus a insegurança do presente e do futuro («Inseguras navegam», «as águas estremecem»).

 

3.ª estrofe

Os versos 11, 12 e 13 são formados apenas por adjetivos dando destaque às qualidades. Na sequência de «Inseguras navegam», o poeta caracteriza-as como:

- desamparadas = ao alcance de todos,

- inocentes = de per si não contêm qualquer mal, este advém do uso e do abuso,

- leves = sem a carga conotativa que alcançam no texto.

 

Assim, caracterizadas, em gradação decrescente, com uma tripla adjetivação («Desamparadas, inocentes, / leves»), as palavras surgem, na 3ª estrofe, novamente marcadas pela ambiguidade, através do paradoxo simbólico diurno/noturno: «Tecidas são de luz / e são a noite». Note-se que as palavras – e consequentemente o poema – são dadas como «tecidas», formadas pelo imbricar da teia e trama, cruzamento produtivo de elementos de origem diversa, originando a multiplicidade, a riqueza material. As palavras alcançam sentido quando colocadas num texto (Texto, do lat. textu-, «tecido», part. pass. de texâre, «tecer; entrelaçar»), que é um tecido, uma teia, onde se cruzam os vários sentidos.

 

Luz no texto, noite na ausência do texto.

 

Os versos 15 e 16 reforçam a antítese temporal presente / passado («lembram ainda»), já anunciada na 2ª estrofe. A palidez, associada à imagem visual da «noite», opõe-se à evocação simbólica da felicidade antiga: «E mesmo pálidas / verdes paraísos lembram ainda». Podendo ter perdido algum dos seus sentidos, trazem todavia memória e por isso evocam um passado criador.

 

4.ª estrofe

A dupla interrogação retórica da última estrofe constitui uma forte interpelação ao destinatário do poema: «Quem as escuta? Quem / as recolhe?» São os leitores que vão abrir as conchas, que são as palavras (cofres cheios de sentidos). A interrogação apela para a releitura das palavras.

 

Mas não satisfeito com a recorrente caracterização das palavras, ao longo das estrofes anteriores, o sujeito sublinha, numa constância de sentido, a sua ambiguidade ética e pragmática: «assim, /cruéis, desfeitas, / nas suas conchas puras?»

 

Tal como a vida humana, as palavras são boas e más, alegres e tristes, belas e feias: estimulam e desmotivam, são portadoras de amor e ódio, de paz e guerra, de felicidade e infelicidade.

 

(Bibliografia: Aula Viva Port. B 12º, 1999, p. 448; Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 125-126, Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 89)

 

II – Questionário sobre o poema “As palavras”, de Eugénio de Andrade:

Disponível aqui.

 



 

III - Proposta de escrita de um texto de opinião:

 

«Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca.»

Alexandre O’Neill

 

«São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.»

Eugénio de Andrade

 

Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas e cinquenta palavras, defenda uma perspetiva pessoal sobre o poder das palavras nas relações humanas.

No seu texto:

– explicite, de forma clara e pertinente, o seu ponto de vista, fundamentando-o em dois argumentos, cada um deles ilustrado com um exemplo significativo;

– utilize um discurso valorativo (juízo de valor explícito ou implícito).

 

(Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE, 2018, 1.ª Fase)

 

 

INTERTEXTUALIDADE

 

AS PALAVRAS, por José Saramago

 

«A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.» José Saramago publicou esta crónica dos seus tempos de jornalista no vespertino “A Capital”, em livro lançado, em 1971, sob a chancela da Editorial Arcádia.

 

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário. E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que não se oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.

Fonte: Crónica publicada no livro Deste Mundo e do Outro. Lisboa, Editorial Caminho, 4.ª edição, 1997. Disponível em Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, <https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/as-palavras/746> [consultado em 08-06-2021]

*** 

 

A RAPARIGA QUE ROUBAVA LIVROS, Markus Zusak


ERA UMA VEZ um estranho homem baixo. Ele decidiu três importantes pormenores a respeito da sua vida:

1. Faria a risca do cabelo do lado contrário ao de toda a gente.

2. Deixaria crescer um pequeno bigode estranho.

3. Um dia governaria o mundo.

O jovem vagueou durante algum tempo, a pensar, a planear, e a calcular exatamente como poderia tornar o mundo seu. Depois, um dia, sem mais nem menos, ocorreu-lhe: o plano perfeito. Vira uma mãe a passear com o filho. A dada altura, ela repreendera o garoto até que, finalmente, ele começou a chorar. Daí a alguns minutos, ela falou-lhe docemente, e então ele acalmou e até sorriu.

O jovem correu para a mulher e abraçou-a. – Palavras! – exclamou ele com uma careta sorridente.

– O quê? Mas não obteve resposta. Ele já desaparecera.

Sim, o Führer decidiu que governaria o mundo com palavras.

Plantou-as dia e noite, e tratou-as cuidadosamente.

Viu-os crescer, até que por fim se tinham erguido por toda a Alemanha grandes florestas de palavras… Era uma nação de pensamentos cultivados.

As pessoas que trepavam às árvores chamavam-se sacudidores de palavras.

OS MELHORES sacudidores de palavras eram os que compreendiam o verdadeiro poder das palavras.

Eram esses que conseguiam trepar mais alto. Um desses sacudidores de palavras era uma rapariga pequena e franzina. Era conhecida como o melhor sacudidor de palavras da sua região porque sabia como uma pessoa pode ficar impotente SEM palavras. Um dia, contudo, conheceu um homem que era desprezado pela pátria dela, embora tivesse nascido lá. Tornaram-se bons amigos, e quando o homem adoeceu, a sacudidora de palavras permitiu que uma única lágrima caísse na cara dele. A lágrima era feita de amizade – uma simples palavra – e secou e transformou-se numa semente, e da próxima vez que a rapariga esteve na floresta plantou essa semente no meio das outras árvores. Regava-a todos os dias.

A árvore crescia todos os dias, mais depressa do que tudo o resto, até se tornar na árvore mais alta da floresta. Toda a gente foi vê-la. Todos sussurravam a respeito dela, e esperavam… pelo Führer.

Furioso, ele ordenou imediatamente o abate da árvore. Foi então que a sacudidora de palavras abriu caminho por entre a multidão. Tombou de joelhos.

– Por favor – exclamou ela –, não podem cortá-la.


"O caderno de desenho escondido" in A rapariga que roubava livrosMarkus Zusak.  Lisboa: Presença, 2018 (texto com supressões) 

 

     Proposta de comentário :

Comenta os últimos dois parágrafos do excerto, seguindo os seguintes tópicos de aplicação, organizados segundo o nível de profundidade de leitura:

Nível 1 - Síntese objetiva do conteúdo dos últimos dois parágrafos do texto.

Nível 2 - Interpretação do conteúdo.

Nível 3 - Relação do conteúdo com o contexto histórico.

Nível 4 - Opinião acerca do conteúdo.

 

Sugestão de resposta:

No final do texto, a sacudidora de palavras tenta impedir que o Führer faça cair a árvore mais alta da floresta, que nasceu da amizade entre ela e um rapaz.

Esta atitude de resistência por parte da rapariga contra a opressão do Führer reforça a importância das palavras, pois a árvore das palavras simboliza a liberdade.

Historicamente, a atitude da menina representa, durante a Segunda Guerra Mundial, a oposição ao regime nazi.

Concluo, assim, que esta história pretende transmitir uma lição de vida para que atualmente tenhamos a coragem de lutar pela liberdade, resistindo aos regimes totalitários e antidemocráticos.


Poderá também gostar de:

 

 

 


“As palavras, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-12. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/as-palavras-eugenio-de-andrade.html



sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Tu és a esperança, a madrugada. Eugénio de Andrade


 

XXIX

 

Tu és a esperança, a madrugada.

Nasceste nas tardes de setembro,

quando a luz é perfeita e mais doirada,

e há uma fonte crescendo no silêncio

da boca mais sombria e mais fechada.

 

Para ti criei palavras sem sentido,

inventei brumas, lagos densos,

e deixei no ar braços suspensos

ao encontro da luz que anda contigo.

 

Tu és a esperança onde deponho

meus versos que não podem ser mais nada.

Esperança minha, onde meus olhos bebem,

fundo, como quem bebe a madrugada.

 

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos, 1948 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017



 


Lê atentamente o poema “XXIX" ["Tu és a esperança, a madrugada"], de Eugénio de Andrade, e responde de modo estruturado às perguntas abaixo apresentadas.

 

1. O poema vinca a relação Eu – tu. A primeira estrofe apresenta a caracterização do destinatário das palavras do sujeito poético.

1.1. Explicita o valor metafórico dos dois primeiros versos, integrando-os na caracterização do destinatário.

2. A segunda estrofe refere a relação sujeito poético / destinatário (tu).

2.1. Explicita o poder criador do amor aí expresso poeticamente.

2.2. Interpreta o sentido dos dois últimos versos desta estrofe.

2.3. A terceira estrofe centra-se novamente no “tu”, agora, em relação com a própria criação poética.

2.4. Explica, em que medida, esta estrofe apresenta implicitamente uma conceção da conceção da poesia já desenhada na estrofe anterior.

3. O poema apresenta uma circularidade.

3.1. Demonstre como este aspeto se evidencia no texto e explicite a sua intencionalidade.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade, 2021-04-07. Anexo disponível em https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/12o/portugues/35

 

Texto de apoio

(…) se no poema XXIX encontramos um cenário diferente, pois o ser amado apresenta-se novamente como símbolo de vida e esperança, também esta composição deixa perceber que a falta de energia começa a ferir o sujeito lírico. Apesar de o outro continuar a suscitar o deleite do “eu, este encaminha-se para a esterilidade própria do fim do ciclo.

O “tu”, fonte e motivo da sua criação poética, é não só associado à madrugada, ou se quisermos à esperança, mas também às tardes de setembro, com a imanente doçura da luz outonal a caracterizá-lo. Em contraste, o “eu, outrora criador adâmico, é apenas o autor de palavras sem sentido, de brumas” e lagos densos e que se limita a esperar a luz do ser amado. A superioridade do tu não nos surpreende, pois o poeta a ela nos habituara. A transfiguração das personagens ao longo do livro revela-nos um ser amado que se metamorfoseia em elementos invariavelmente conotados com vida e fertilidade, como referimos atrás, ao passo que o sujeito poético ora se apresenta contemplativo e sabedor da sua inferioridade perante o outro, como, em rasgos de criatividade, é capaz de inventar paraísos terrestres para deleite e enaltecimento do ser amado. A vida, luz e frescura inventadas no poema VIII destoam do tom sombrio que a sua criação emana neste poema. Assim, os ribeiros serão substituídos por “lagos densos, a lua por brumas e o corpo, estendido sugestivamente no chão, será agora representado apenas pelos seus braços suspensos. A incapacidade inventiva do sujeito lírico serve para realçar a fonte de toda a esperança que é o outro, mas também nos anuncia o declínio da relação amorosa que se irá sentir particularmente nas composições que se seguem, criando um ambiente que evoca o derradeiro ciclo da vida.

A primeira estrofe, a mais longa, refere-se exclusivamente ao ser amado e o campo semântico aí presente está em sintonia com a imagem de esperança e de amor a ele associada, ao passo que a segunda se centra no “eu e tem como finalidade realçar, por contraste e oposição, as características e superioridade do outro. A última estrofe apresenta-se como a conclusão do que foi dito, estabelecendo, uma vez mais, a desigualdade entre os dois amantes e atribuindo ao outro a origem da vida e da criação poética.

O sentido da visão será o protagonista neste poema e, agora, são os olhos, não as mãos, que possibilitam a ligação dos amantes, união que culmina na imagem final dos dois últimos versos com a associação dos olhos ao ato de beber, confundindo deliberadamente as faculdades dos sentidos, o que empresta ênfase à ideia de comunhão que se pretende transmitir.

Da mesma forma, o sujeito lírico partilha com as aves e as fontes o ato de beber, verbo da predileção do poeta, que culmina a fusão plena do homem na natureza. Este verbo adquire na poesia de Eugénio de Andrade um significado muito especial e intimamente ligado à união dos amantes, como vimos. Esta ideia de que os seres ou coisas bebem algo é bastante usual ao logo do livro. Já no poema III, as fontes bebem a face do ser amado e, nos poemas V e XVI, são as aves que bebem dos seus dedos, como se fossem fontes, ou o “teu grito que pede a não sei que deus o seu destino. Também no poema XIX, as raízes, que seriam tecidas pelas suas mãos, hão de, um dia, beber o corpo do amado, para, no poema XXVIII, ser o sujeito poético quem bebe os horizontes. Beber torna-se, assim, uma forma plena de comunhão, uma fusão intensa entre os seres, uma vontade deliberada de integrar o outro ou apenas aquilo que o evoca. Este ato pressupõe uma identificação total entre os dois termos, entre aquele que bebe e o que sofre a ação, tornando-os um só elemento numa tentativa de união ascética através da união física.

Ana Oliveira, As Mãos e os Frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010

 

 

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“Tu és a esperança, a madrugada. Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-11. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/tu-es-esperanca-madrugada-eugenio-de.html