METAMORFOSES
DA PALAVRA
A
palavra nasceu:
nos
lábios cintila.
Carícia
ou aroma,
mal
pousa nos dedos.
De
ramo em ramo voa,
na
luz se derrama.
A
morte não existe:
tudo
é canto ou chama.
Eugénio
de Andrade, Até amanhã, 1956
(1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
Linhas de
leitura do poema “Metamorfoses da palavra”, de Eugénio de Andrade
O poeta, em quatro dísticos alternadamente
hexassílabos e pentassílabos, canta o nascimento cintilante da palavra como um
acontecimento primordial, genesíaco (1º dístico).
O seu carácter delicado e sensível está bem
patente no 2.º dístico, que aparenta com a sinestesia metafórica do tato
(«Carícia», «mal poisa os dedos») ou do olfato («aroma»).
E enquanto o 3.º dístico assinala a sua
marca dinâmica, transformacional, a partir das metáforas do pássaro que «De
ramo em ramo voa» e do líquido que «na luz de derrama», o último contorna o
grande obstáculo da morte, cuja
existência eufemisticamente nega, em face da sedução poética do canto e da chama.
Poeta da esperança e da metamorfose
construtiva, Eugénio de Andrade reanima a nossa coragem de viver, na essencialidade e na
pureza do Belo.
António Moniz, Para
uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Ed. Presença, 1997, pp.
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***
Texto de apoio
No
quadro da poética eugeniana, a “chama” é essencialmente criadora, embora não
deixe também de recuperar a vasta memória das contradições cósmicas do “fogo”. Como
temos visto desde o primeiro livro de Poemas, a “luz”, máxima transubstanciação
do fogo, aproxima-se do poder genesíaco da palavra. Figura o excesso de
realidade e é metáfora da transformação de toda expressão poética. Em Até amanhã,
há uma verdadeira cosmogonia da luz: desde seu elemento mais primitivo até a energia
transubstanciada nas diversas manifestações de claridade. Em todas as suas etapas,
a luz participa no trabalho de abertura da linguagem. Em diversos momentos, como
no sexto e no décimo terceiro poemas do livro, que transcrevemos abaixo, compõe-se
uma verdadeira “poética do fogo”.
Breve,
fugidia, a palavra eugeniana nasce do corpo, dos “lábios”, dos “dedos”, para
esvaecer-se em “fogo”, “chama” ou “luz que se derrama”, traçando novo movimento
de ascese, a recuperar, de certa maneira, a vivência do absoluto – ainda que revertida
para uma perspetiva imanentista. Assim, desde sua primeira manifestação, a palavra
é luminosa e se expande gradualmente, envolvendo os sentidos, como o tato (“carícia”),
o paladar (“lábios”), o olfato (“aroma”) e a visão (“cintilar”), em comunhão com
os elementos. No cume, o “canto” final da palavra ao infinito é descrito em
termos de “chama”: fusão metafísica do instante ampliado, linguagem absoluta,
ascensão do ser: “Parece que um tempo cósmico vem aqui ampliar o tempo
subalterno, esse tempo que encadeia e não produz. O poema eleva-se a um nível
de acontecimento do universo para conhecer o instante de um clarão” (BACHELARD,
1990, p. 57).
Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de
Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012
Poderá também gostar de:
- “A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
“Metamorfoses
da palavra, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia,
2022-11-13. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/metamorfoses-da-palavra-eugenio-de.html
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