sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Tu és a esperança, a madrugada. Eugénio de Andrade


 

XXIX

 

Tu és a esperança, a madrugada.

Nasceste nas tardes de setembro,

quando a luz é perfeita e mais doirada,

e há uma fonte crescendo no silêncio

da boca mais sombria e mais fechada.

 

Para ti criei palavras sem sentido,

inventei brumas, lagos densos,

e deixei no ar braços suspensos

ao encontro da luz que anda contigo.

 

Tu és a esperança onde deponho

meus versos que não podem ser mais nada.

Esperança minha, onde meus olhos bebem,

fundo, como quem bebe a madrugada.

 

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos, 1948 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017



 


Lê atentamente o poema “XXIX" ["Tu és a esperança, a madrugada"], de Eugénio de Andrade, e responde de modo estruturado às perguntas abaixo apresentadas.

 

1. O poema vinca a relação Eu – tu. A primeira estrofe apresenta a caracterização do destinatário das palavras do sujeito poético.

1.1. Explicita o valor metafórico dos dois primeiros versos, integrando-os na caracterização do destinatário.

2. A segunda estrofe refere a relação sujeito poético / destinatário (tu).

2.1. Explicita o poder criador do amor aí expresso poeticamente.

2.2. Interpreta o sentido dos dois últimos versos desta estrofe.

2.3. A terceira estrofe centra-se novamente no “tu”, agora, em relação com a própria criação poética.

2.4. Explica, em que medida, esta estrofe apresenta implicitamente uma conceção da conceção da poesia já desenhada na estrofe anterior.

3. O poema apresenta uma circularidade.

3.1. Demonstre como este aspeto se evidencia no texto e explicite a sua intencionalidade.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade, 2021-04-07. Anexo disponível em https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/12o/portugues/35

 

Texto de apoio

(…) se no poema XXIX encontramos um cenário diferente, pois o ser amado apresenta-se novamente como símbolo de vida e esperança, também esta composição deixa perceber que a falta de energia começa a ferir o sujeito lírico. Apesar de o outro continuar a suscitar o deleite do “eu, este encaminha-se para a esterilidade própria do fim do ciclo.

O “tu”, fonte e motivo da sua criação poética, é não só associado à madrugada, ou se quisermos à esperança, mas também às tardes de setembro, com a imanente doçura da luz outonal a caracterizá-lo. Em contraste, o “eu, outrora criador adâmico, é apenas o autor de palavras sem sentido, de brumas” e lagos densos e que se limita a esperar a luz do ser amado. A superioridade do tu não nos surpreende, pois o poeta a ela nos habituara. A transfiguração das personagens ao longo do livro revela-nos um ser amado que se metamorfoseia em elementos invariavelmente conotados com vida e fertilidade, como referimos atrás, ao passo que o sujeito poético ora se apresenta contemplativo e sabedor da sua inferioridade perante o outro, como, em rasgos de criatividade, é capaz de inventar paraísos terrestres para deleite e enaltecimento do ser amado. A vida, luz e frescura inventadas no poema VIII destoam do tom sombrio que a sua criação emana neste poema. Assim, os ribeiros serão substituídos por “lagos densos, a lua por brumas e o corpo, estendido sugestivamente no chão, será agora representado apenas pelos seus braços suspensos. A incapacidade inventiva do sujeito lírico serve para realçar a fonte de toda a esperança que é o outro, mas também nos anuncia o declínio da relação amorosa que se irá sentir particularmente nas composições que se seguem, criando um ambiente que evoca o derradeiro ciclo da vida.

A primeira estrofe, a mais longa, refere-se exclusivamente ao ser amado e o campo semântico aí presente está em sintonia com a imagem de esperança e de amor a ele associada, ao passo que a segunda se centra no “eu e tem como finalidade realçar, por contraste e oposição, as características e superioridade do outro. A última estrofe apresenta-se como a conclusão do que foi dito, estabelecendo, uma vez mais, a desigualdade entre os dois amantes e atribuindo ao outro a origem da vida e da criação poética.

O sentido da visão será o protagonista neste poema e, agora, são os olhos, não as mãos, que possibilitam a ligação dos amantes, união que culmina na imagem final dos dois últimos versos com a associação dos olhos ao ato de beber, confundindo deliberadamente as faculdades dos sentidos, o que empresta ênfase à ideia de comunhão que se pretende transmitir.

Da mesma forma, o sujeito lírico partilha com as aves e as fontes o ato de beber, verbo da predileção do poeta, que culmina a fusão plena do homem na natureza. Este verbo adquire na poesia de Eugénio de Andrade um significado muito especial e intimamente ligado à união dos amantes, como vimos. Esta ideia de que os seres ou coisas bebem algo é bastante usual ao logo do livro. Já no poema III, as fontes bebem a face do ser amado e, nos poemas V e XVI, são as aves que bebem dos seus dedos, como se fossem fontes, ou o “teu grito que pede a não sei que deus o seu destino. Também no poema XIX, as raízes, que seriam tecidas pelas suas mãos, hão de, um dia, beber o corpo do amado, para, no poema XXVIII, ser o sujeito poético quem bebe os horizontes. Beber torna-se, assim, uma forma plena de comunhão, uma fusão intensa entre os seres, uma vontade deliberada de integrar o outro ou apenas aquilo que o evoca. Este ato pressupõe uma identificação total entre os dois termos, entre aquele que bebe e o que sofre a ação, tornando-os um só elemento numa tentativa de união ascética através da união física.

Ana Oliveira, As Mãos e os Frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010

 

 

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“Tu és a esperança, a madrugada. Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-11. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/tu-es-esperanca-madrugada-eugenio-de.html


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