XXIX
Tu
és a esperança, a madrugada.
Nasceste
nas tardes de setembro,
quando
a luz é perfeita e mais doirada,
e
há uma fonte crescendo no silêncio
da
boca mais sombria e mais fechada.
Para
ti criei palavras sem sentido,
inventei
brumas, lagos densos,
e
deixei no ar braços suspensos
ao
encontro da luz que anda contigo.
Tu
és a esperança onde deponho
meus
versos que não podem ser mais nada.
Esperança
minha, onde meus olhos bebem,
fundo,
como quem bebe a madrugada.
Lê atentamente o poema “XXIX" ["Tu és a esperança, a madrugada"], de
Eugénio de Andrade, e responde de modo estruturado às perguntas abaixo
apresentadas.
1. O poema vinca a relação Eu – tu. A primeira
estrofe apresenta a caracterização do destinatário das palavras do sujeito
poético.
1.1. Explicita o valor
metafórico dos dois primeiros versos, integrando-os na caracterização do
destinatário.
2. A segunda estrofe refere a relação sujeito poético
/ destinatário (tu).
2.1. Explicita o poder criador
do amor aí expresso poeticamente.
2.2. Interpreta o sentido dos
dois últimos versos desta estrofe.
2.3. A terceira estrofe
centra-se novamente no “tu”, agora, em relação com a própria criação poética.
2.4. Explica, em que medida,
esta estrofe apresenta implicitamente uma conceção da conceção da poesia já
desenhada na estrofe anterior.
3. O poema apresenta uma circularidade.
3.1. Demonstre como este aspeto
se evidencia no texto e explicite a sua intencionalidade.
Fonte:
Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que
fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade,
2021-04-07. Anexo disponível em https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/12o/portugues/35
Texto de apoio
(…) se no poema XXIX
encontramos um cenário diferente, pois o ser amado apresenta-se novamente como
símbolo de vida e esperança, também esta composição deixa perceber que a falta
de energia começa a ferir o sujeito lírico. Apesar de o outro continuar a suscitar
o deleite do “eu”, este encaminha-se para a
esterilidade própria do fim do ciclo.
O “tu”, fonte e motivo da
sua criação poética, é não só associado à “madrugada”, ou se quisermos à “esperança”, mas também às “tardes de setembro”, com a imanente doçura da
luz outonal a caracterizá-lo. Em contraste, o “eu”, outrora criador adâmico, é apenas o autor de “palavras sem sentido”, de “brumas” e “lagos densos” e que se limita a esperar
a “luz” do ser amado. A
superioridade do “tu” não nos surpreende, pois o
poeta a ela nos habituara. A transfiguração das personagens ao longo do livro
revela-nos um ser amado que se metamorfoseia em elementos invariavelmente
conotados com vida e fertilidade, como referimos atrás, ao passo que o sujeito
poético ora se apresenta contemplativo e sabedor da sua inferioridade perante o
outro, como, em rasgos de criatividade, é capaz de inventar paraísos terrestres
para deleite e enaltecimento do ser amado. A vida, luz e frescura inventadas no
poema VIII destoam do tom sombrio que a sua criação emana neste poema. Assim,
os ribeiros serão substituídos por “lagos densos”, a lua por “brumas” e o corpo, estendido
sugestivamente no chão, será agora representado apenas pelos seus “braços suspensos”. A incapacidade inventiva
do sujeito lírico serve para realçar a fonte de toda a esperança que é o outro,
mas também nos anuncia o declínio da relação amorosa que se irá sentir
particularmente nas composições que se seguem, criando um ambiente que evoca o
derradeiro ciclo da vida.
A primeira estrofe, a mais
longa, refere-se exclusivamente ao ser amado e o campo semântico aí presente
está em sintonia com a imagem de esperança e de amor a ele associada, ao passo
que a segunda se centra no “eu” e tem como finalidade realçar, por contraste e
oposição, as características e superioridade do outro. A última estrofe
apresenta-se como a conclusão do que foi dito, estabelecendo, uma vez mais, a
desigualdade entre os dois amantes e atribuindo ao outro a origem da vida e da
criação poética.
O sentido da visão será o
protagonista neste poema e, agora, são os olhos, não as mãos, que possibilitam
a ligação dos amantes, união que culmina na imagem final dos dois últimos
versos com a associação dos olhos ao ato de beber, confundindo deliberadamente
as faculdades dos sentidos, o que empresta ênfase à ideia de comunhão que se
pretende transmitir.
Da mesma forma, o sujeito
lírico partilha com as aves e as fontes o ato de beber, verbo da predileção do
poeta, que culmina a fusão plena do homem na natureza. Este verbo adquire na
poesia de Eugénio de Andrade um significado muito especial e intimamente ligado
à união dos amantes, como vimos. Esta ideia de que os seres ou coisas bebem
algo é bastante usual ao logo do livro. Já no poema III, as fontes bebem a face
do ser amado e, nos poemas V e XVI, são as aves que bebem dos seus dedos, como
se fossem fontes, ou o “teu grito” que pede “a não sei que deus o seu
destino”. Também no poema XIX, as raízes, que seriam tecidas
pelas suas mãos, hão de, um dia, beber o corpo do amado, para, no poema XXVIII,
ser o sujeito poético quem bebe os horizontes. Beber torna-se, assim, uma forma
plena de comunhão, uma fusão intensa entre os seres, uma vontade deliberada de
integrar o outro ou apenas aquilo que o evoca. Este ato pressupõe uma
identificação total entre os dois termos, entre aquele que bebe e o que sofre a
ação, tornando-os um só elemento numa tentativa de união ascética através da
união física.
Ana Oliveira,
As
Mãos e os Frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça. Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2010
Poderá também gostar de:
“Tu
és a esperança, a madrugada. Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de
Poesia, 2022-11-11. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/tu-es-esperanca-madrugada-eugenio-de.html
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