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quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Ó Portugal, hoje és nevoeiro... (Mensagem, Fernando Pessoa)

Mensagem, Fernando Pessoa

Terceira Parte - O Encoberto

Pax in excelsis

III – Os Tempos

 

 


“Nevoeiro”, de Fernando Pessoa. Portugal, Produções Fictícias, 2005. 
Disponível e.: https://ensina.rtp.pt/artigo/nevoeiro-de-fernando-pessoa/ 

 

Quinto

NEVOEIRO

 





5





10







Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

 

Valete, Frates.

10-12-1928

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 104. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2293

  

 

A Mensagem de Fernando Pessoa, anotada e comentada

 

Análise estilística do poema “Nevoeiro”, de Fernando Pessoa

Métrica: 1 Sextilha, 1 sétima e 1 verso isolado. Versos octossilábicos, com exceção do verso isolado que tem apenas 3 sílabas.

Esquema rímico: Rima em esquemas ababba (sextilha) e abbcddd (sétima). O verso isolado rima com o quarto verso da sétima.

Observações: Uso de antropomorfização; uso de metáforas (por ex. “fulgor baço”) e símiles (“Como o que o fogo-fátuo…”), reforçando o sentimento de dispersão; uso de negatividade; divisão do poema em duas partes (1.ª estrofe fala da pessoa coletiva, a 2.ª da individual); uso de anáforas e antíteses (por ex. “nem”); uso de paradoxos (por ex. a frase entre parêntesis na 2.ª estrofe); uso de apóstrofe (“Valete Fratres”).

 

Análise do título

Fernando Pessoa termina a Mensagem com o poema “Nevoeiro”, quinto poema dos “Tempos”. Catorze versos como as catorze estações da cruz.

Na simbologia por nós proposta, de cinco “Tempos” – cinco Impérios, será este poema, o que representa o Quinto Império, o Império Espiritual.

António Quadros diz-nos que este poema “define a atualidade portuguesa como decadência, dispersão e névoa (fazendo lembrar a camoniana «austera, apagada e vil tristeza»)” (António Quadros, Poesia…, pág. 121. Cf. também António Cirurgião, Op. cit., nota 42, pág. 264).

Do último poema, esperar-se-ia um volutuoso e majestoso finale, porque afinal Pessoa exalta o poder do futuro ainda por acontecer, exorta à ação e à esperança. Mas na realidade não podíamos estar mais longe de uma tal apoteose.

Coerente, como sempre, o poeta não deixa para as últimas palavras nada que não seja dito em todas as páginas anteriores. Mensagem fecha-se sobre si própria e quando no seu fim, parece relembrar a vontade de novo início. Sobretudo deixa a sensação de todo, de projeto global, que é dividido em partes, mas sem que essas partes só existam quando ligadas entre si.

“Nevoeiro” é assim um poema velado, triste mesmo quando imperativo, como o próprio Fernando Pessoa. Não é momento de lirismo simples, nem de evocação linear do passado. É um poema de conclusão, que emana tristeza e sentido de missão, bem como uma ponte para o futuro, para uma hora marcada para o nascer do Novo Sol (que destruir| o “Nevoeiro”).

 

Análise linha a linha da primeira estrofe:

     Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Nem governante nem leis, nem tempos de paz ou de conflito.

     Define com perfil e ser
Podem definir a verdade emanação essência.

     Este fulgor baço da terra
No que no presente é de um fulgor triste.

     Que é Portugal a entristecer
Portugal, país pobre, sem esperança e entristecido.

     Brilho sem luz e sem arder,
Vida exterior sem luz intensa, sem fogo de paixão e vontade.

     Como o que o fogo-fátuo encerra.
Como as luzes do fogo-fátuo (que surge dos materiais em decomposição).

 

Análise contextual da primeira estrofe:

Pessoa começa numa análise macroscópica por caracterizar o momento do país. E vê-o tão desesperado que “nem rei nem lei, nem paz nem guerra” o “definem com perfil e ser”. Ou seja, o país está tão sem alma, sem originalidade, que nenhum governante, nenhuma mudança pela força, o poderá regenerar verdadeiramente. Continuará a ser “fulgor baço da terra”, um “Portugal a entristecer”.

Há vida, certamente. Há quotidiano, quem enriqueça, quem faça uma vida, cresça, tenha família e morra. Mas toda a vida sem sentido é como “brilho sem luz e sem arder”. É mais ainda, é pior, é “como o que o fogo-fátuo encerra”, ou seja, é aparência de brilho (vida exterior), mas sem luz interior (vida interior). Quem vive assim, não vive, sobrevive ambiciona, procria e morre. Para Pessoa é claro que o brilho de uma vida assim é como o fogo-fátuo, que é um brilho que sai dos cemitérios e dos pântanos, brilho artificial e podre, apagado, próprio dos corpos mortos e decompostos.

É um triste quadro o que nos pinta Pessoa e, de certa maneira, um quadro intemporal para um país que sempre se queixa das mesmas maleitas. Não é de estranhar que Pessoa, levado pela sua imaginação, talento e cultura, queira desenhar uma saída deste marasmo social e intelectual. Mas uma saída sem “rei nem lei, nem paz nem guerra”, ou seja, uma solução de infinito, de eternidade, que não seja transitória. Será o seu início o modernismo, como corrente literária, mas não só.


 

Análise linha a linha da segunda estrofe:

     Ninguém sabe que coisa quere.
Os portugueses não sabem o que verdadeiramente querem.

     Ninguém conhece que alma tem,
Não conhecem a sua alma o seu Destino.

     Nem o que é mal nem o que é bem.
Nem para o bem, nem para o mal.

      (Que ânsia distante perto chora?)

Adivinha-se, no entanto, uma ânsia neles, uma ânsia de querer.

     Tudo é incerto e derradeiro.
Mas tudo é incerto, difuso, morte.

     Tudo é disperso, nada é inteiro.
Tudo em Portugal é parcial, não há vontade de erguer, nada.

     Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
Portugal é no presente como o nevoeiro.

 

Análise contextual da segunda estrofe:

Segue-se uma análise microscópica, de pormenor. Depois de ver o “Nevoeiro” como um todo, Pessoa analisa-o partícula a partícula.

Mas é esta uma exortação ou uma elegia? Pessoa não se limita, fala a fundo dos males que sente serem os males de um país. É uma visão de alguém que, sendo português de nascimento, traz também uma perspetiva de estrangeiro. Mal se faça a comparação, novamente deve o poeta chamar a atenção para o corpo morto de Portugal, para que esse corpo se possa erguer, conhecer a razão mais alta do seu sofrimento.

É um país perdido. Onde “ninguém sabe que coisa quere”, onde “ninguém conhece que alma tem”, sem noção nem do que “é mal nem o que é bem”. Uma sociedade amoral, desligada dos mais altos valores, da nacionalidade, do espírito de unidade religiosa, sobretudo da irmandade. No entanto, uma esperança ténue: “ânsia distante” que “perto chora”. Será que no íntimo de cada um reside um desejo distante de mudança?

Mas é tudo tão “incerto e derradeiro”, “disperso”. “Nada é inteiro”. Tal o desespero na análise que Pessoa deixa-se finalmente a uma interjeição dolorosa: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro…”.


 

Análise linha a linha da terceira estrofe:

     É a Hora!

É o momento de surgir o Quinto Império, a Nova Vida.

 

Análise contextual da terceira estrofe:

Depois de duas estrofes mortas, soturnas, Pessoa faz a sua última exortação, gritando de peito cheio de ar, ao infinito: “É a Hora!” (ver a segunda estrofe do poema “sem título” em os “Avisos”).

A “Hora” é o fim da Obra que se vem descrevendo. Não se percebe porque é em rigor ainda um mistério que hora será, se hora humana ou hora divina, mas certamente é uma hora certa, inevitável.

Esta “Hora” de Pessoa é também uma realidade por consumar. Isto porque Pessoa clama por um momento que em verdade será impossível de acontecer sem que ele o anuncie eis o paradoxo. Por isso a “Hora” é também o momento em que Pessoa é lido até ao fim, quando se conclui a leitura da Mensagem, do plano de Pessoa para regenerar Portugal.

Com esta frase final, Pessoa foi-se, como o mostrengo servo, deixando-nos a nós a tarefa imaterial de revelar em cada um de nós os mistérios que ele anunciou. Para que em cada um de nós brilhe aquele relâmpago, faísca divina, que nos tira da vil noite na direção do Novo Dia.

A mensagem da Mensagem é essa: procurar no íntimo a razão que ilumina a vida que vale a pena ser vivida. Incrivelmente ou talvez não é uma mensagem positiva, otimista.

Uma derradeira pista, como um eco que se distancia, é deixada: um Valete Fratres!, um Adeus Irmãos!, sincero como um forte aperto de mão, um abraço quente.

(É um adeus, mas também um até já. Veja-se que Pessoa se despede com uma nova elocução em latim, retirada de um ritual maçónico, e por isso com significado hermético. Pessoa pretende comunicar que se despede de todos aqueles iniciados, seus irmãos templários e rosa cruzes (mesmo que só em espírito), que compreendem o significado das suas palavras e vão agir através delas no futuro de Portugal. É, portanto, um adeus no presente, lançado para o futuro. Quanto desse adeus é também amargura, e quanta da nova pátria que Pessoa deseja será o impossível retorno ao seu passado de criança (a uma pátria pura, com pai e mãe atenciosos e dedicados, sem solidão) isso podemos apenas conjeturar.)

 

Nuno Hipólito, As Mensagens da Mensagem: O Desvendar dos Mistérios: edição anotada e comentada. Lisboa, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, Lda, 2007. Ed. impressa e em CD-ROM. ISBN: 978-972-8645-38-0

 



 

Linhas de leitura do poema “Nevoeiro” de Fernando Pessoa

 

Levantamento de palavras ou expressões do campo lexical de «nevoeiro»:

baço (v. 3), brilhos em luz (v. 5), incerto (v. 11), disperso (v. 12), nada é inteiro (v. 12).

 

Levantamento de palavras ou expressões do campo lexical de negatividade:

- «nem» (quatro vezes no 1.º verso e duas no 9.º, repetida com outras palavras de permeio, e contribuindo decisivamente para caracterizar, logo no início, uma situação de inércia e marasmo);

- «ninguém» (duas vezes e a constituir uma anáfora, no princípio dos versos 7-8);

- «sem», repetida no 5.º verso contribuindo para adensar o sentido dum verso paradoxal, em que o oxímoro desempenha, como em todo o texto, um papel fundamental: «Brilho, sem luz e sem arder»;

- «nada» (v. 12) em antítese com «tudo»;

- palavras ou expressões antitéticas: «guerra» (v. 1), «fulgor baço» (v. 3), «encerra» (v. 3), «entristecer» (v. 4), «fogo fátuo» (v. 6), «Que ânsia distante perto chora?» (v. 10), «incerto e derradeiro» (v. 11), «disperso» (v. 12), «nevoeiro».

 

O sentido expresso por «nevoeiro» é duplo: escuridão, indefinição, estado intervalar, por um lado, e, por outro, a esperança ligada à lenda da vinda de D. Sebastião.

Pascoaes define Nevoeiro como «queda-esperança». É apenas a condição negativa donde surge a redenção. Nevoeiro como própria imagem do Portugal tão decadente que só pode estar a renascer. Nevoeiro como uma nuvem bíblica é a prova do regresso.

 

Levantamento de palavras ou expressões que reenviam para a ideia de crise:

- política: «Nem rei, nem lei, nem paz, nem guerra» (repare-se na sucessão do advérbio de negação nem);

- de identidade: «este fulgor baço da terra /Que é Portugal e entristecer. / Brilho sem luz e sem arder /Como o que o fogo-fátuo encerra». (note-se o vocabulário e imagística disfórica: fulgor baço- Portugal a entristecer - brilho sem luz e sem arder – novo oxímoro reforçado pela preposição, marca de ausência, sem) (vv. 5-6, 11-13);

- de valores morais, da alma: «Ninguém sabe que coisa quer, / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal, nem o que é bem», [de novo as palavras que marcam a negação- os pronomes indefinidos ninguém, o advérbio nem];

- de unidade «Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro.» (vv. 11-12).

 

Comparação da realidade aludida em «Nevoeiro» com a referida em «Mar Português»:

A situação, em síntese, é de incerteza, de indefinição: «Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...»

As queixas (o pranto) das personagens invocadas em “Mar Português”, que não conseguem ver o significado maior para o sofrimento que estão a passar, corresponde ao tom geral do poema “Nevoeiro”.

 

O sentido da interrogação na 2.ª estrofe - «(Que ânsia distante perto chora?)»:

Esta frase parentética refere-se ao próprio Pessoa, à voz que fala. No meio do nevoeiro que é Portugal a entristecer há uma voz que se ergue – Fernando Pessoa.

A abertura à esperança está contida no verso entre parêntesis (o parênteses é uma separação) e afirmada triunfalmente no último verso.

Algo ficou consubstanciado na «ânsia distante» que «perto chora» –, e justamente porque Portugal hoje é nevoeiro, «É (também) a Hora! » - [teremos que ter em conta que, segundo a lenda sebastianista, o Rei redentor regressaria numa manhã de nevoeiro]. A Hora, maiusculada, mas de quê?

Pessoa não o diz, mas todo o livro o significa: a Hora de partir, de novamente conquistarmos a «Distância / Do mar ou outra, mas que seja nossa!»- [ como se dizia no poema da 2.ª parte, Prece ], - de assumirmos o sonho, cumprindo o nosso destino de sagrados por Deus e portadores do seu gládio, do seu sinal - assim a Obra nascerá de novo, como em Mar Português - e poderemos «viver a verdade / que morreu D. Sebastião.»

Assim sendo, temos que ler Mensagem justamente como a epopeia da era que há de vir, a do sonho feito realização, a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e interrompida de D. Sebastião, de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa. (cf. Pais: 2001, 145-146)

A expressão latina «Valete, Frates» era a despedida normal dos membros de certas sociedades secretas (Maçonaria...) e dos frades de ordens religiosas. É um grito de felicidade e um apelo para que todos lutem por um Novo Portugal.

 

Inserção do poema na estrutura interna da obra:

Último poema de Mensagem, pertencente, portanto, à parte designada “O Encoberto”, em que se fecha o ciclo da vida da Pátria, mas em que se pressente o gérmen (embrião) sebastianista, o anúncio de um novo ciclo e a recuperação de energias latentes para a constituição próxima de um Quinto Império, um “reino de liberdade de espírito e de redenção”.

 

Características sebastianistas do poema:

- o desânimo nacional (o sebastianismo manifesta-se sempre numa crise, degradação, vazio de sentido);

- uma ânsia instintiva da vinda de um salvador: “É a Hora!” – exclama o poeta, é o momento de uma nova Índia, que se abre no horizonte do povo português; é o Quinto Império, é o super-Portugal de que Fernando Pessoa seria o super-Poeta;

- o salvador e a sua vinda revestem-se de mistério (“nevoeiro”), de algo transcendente (“Hora”; “Valete, Frates” – despedida normal dos membros de certas sociedades secretas e dos frades das ordens religiosas. Se bem que esta expressão não seja aqui como fecho do poema, mas como fecho da obra, vem insinuar ainda mais o sentido sebastianista, mesmo esotérico, do poema).

 

(Proposta de resolução das linhas de apoio à leitura metódica sugeridas em Ser em Português 12.º Ano, coord. Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 1999)

 

Aula sobre o poema “Nevoeiro” e o sebastianismo na Mensagem, de Fernando Pessoa

 

Sugestão: visiona o Módulo de Português do 12.º Ano respeitante à análise e interpretação do poema “Nevoeiro”, de Fernando Pessoa:

 




 

In: Projeto #EstudoEmCasa. O sebastianismo na Mensagem. Os poemas "O Quinto Império" e "Nevoeiro" -Aula 23 de Português do 12.º Ano, 08-02-2021. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e522879/portugues-12-ano (inicia no minuto 17’ 52’’)

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 


“Ó Portugal, hoje és nevoeiro... (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 04-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/o-portugal-hoje-es-nevoeiro-mensagem.html


terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Noite (Mensagem, Fernando Pessoa)

Mensagem, Fernando Pessoa

Terceira Parte - O Encoberto

Pax in excelsis

III – Os Tempos

 

Para a terceira subdivisão da Terceira Parte, Pessoa escolheu o título “Os Tempos”.

Não nos parece de todo inocente esta decisão. De facto, e após cuidada análise, vemos que Fernando Pessoa usara já esta expressão “Tempos”, anteriormente, no poema “Quinto Império” em “Os Símbolos”. Na 4.ª estrofe do referido poema ele diz-nos: “passados os quatro / Tempos do ser que sonhou”.

São pois, segundo a nossa opinião, “Os Tempos”, os Impérios, os quatro passados e o quinto, futuro, ainda por acontecer, mas já anunciado em profecia. Confirma-se também, pelo menos em parte, esta opinião pela simples razão de os “Tempos” serem cinco, como os Impérios.

Poderá não se encontrar sempre uma correlação direta entre os cinco Impérios e o conteúdo de cada um dos poemas dos “Tempos”, mas é clara a simbologia, sobretudo no Quinto Império (Quinto Tempo) a que corresponde o poema “Nevoeiro”.

Nuno Hipólito, As Mensagens da Mensagem: O Desvendar dos Mistérios: edição anotada e comentada. Lisboa, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, 2007

 



Primeiro

NOITE

 





5





10





15





20




25





30

A nau de um deles tinha-se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.

Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
O enigma que fizera.
Então o terceiro a El-Rei rogou
Licença de os ir buscar, e El-Rei negou.

Como a um cativo, o ouvem a passar
Os servos do solar.
E, quando o veem, veem a figura
Da febre e da amargura,
Com fixos olhos rasos de ânsia
Fitando a proibida azul distância.

Senhor, os dois irmãos do nosso Nome
O Poder e o Renome –
Ambos se foram pelo mar da idade
À tua eternidade;
E com eles de nós se foi
O que faz a alma poder ser de herói.
Queremos ir buscá-los, desta vil
Nossa prisão servil:
É a busca de quem somos, na distância
De nós; e, em febre de ânsia,
A Deus as mãos alçamos.

Mas Deus não dá licença que partamos.

 

 

Este poema, também dividido em três momentos, toma por base a história mitificada de três irmãos navegadores, os Corte-Real, dois dos quais (Gaspar e Miguel) se perderam no mar em busca um do outro, tendo, segundo Pessoa, o terceiro ficado impedido de ir em busca dos outros dois.

Pessoa conta a história nos dois primeiros momentos do poema e extrai a conclusão no último: os dois irmãos são agora os irmãos - símbolos do nosso nome: o Poder e o Renome que são, já, passado. Compete-nos a nós ir buscá-los, libertando-nos «desta vil /Nossa prisão servil.» Só que, tal como outrora o rei não dera licença de partir ao terceiro dos irmãos, também agora «Deus não dá licença que partamos.»

É assim, com esta amarga reflexão sobre o presente, que vai terminar Mensagem. - com Nevoeiro.

Amélia Pinto Pais, Para compreender Fernando Pessoa: uma aproximação a Fernando Pessoa e heterónimos: ensino secundário - [1.ª ed., 9.ª reimp.]. - Porto: Areal Editores, 2011

 

A Mensagem de Fernando Pessoa, anotada e comentada

 

Análise estilística do poema “Noite”, de Fernando Pessoa

Métrica: 5 sextilhas (o último verso da última sextilha está destacado). O primeiro, terceiro e sexto versos de cada estrofe são decassilábicos, o segundo e o quarto são hexassilábicos e o quinto é octossilábico. Há uma exceção: o quinto verso da última estrofe é hexassilábico.

 

Esquema rímico: Rima emparelhada, de ritmo irregular.

 

Observações: Cada estrofe tem dois versos agudos; poema mais longo da Mensagem; forma narrativa nas duas primeiras estrofes e invocativa nas restantes; uso abundante de encavalgamentos (ausência de pontuação que sugere confusão e pendor trágico do discurso); uso de transferência (num sentido psicológico e poético); uso de alegorias; uso de redundâncias e duplicações (por ex. “mar indefinido”, “mar sem fim”), que complementam o sentido de angústia e dificuldade da viagem (num sentido genérico).

 

Análise do título: “Noite” é a primeira fase do que será o desenvolvimento do Quinto Império. É na noite que se começa a desenhar a luz que virá a surgir mais tarde.

Pessoa escolhe para início um drama trágico-marítimo que vitimou os irmãos Corte Real. Gaspar Corte Real e Miguel Corte Real morreram em expedições marítimas na América. Eram filhos de João Vaz Corte Real, que em 1472 descobriu a Terra Nova. Vasco Anes Corte Real, o irmão que restou, quis ir em socorro dos outros, mas o rei não o permitiu. Fala-nos Pessoa portanto de uma espécie de morte tripartida (dois mortos + 1 morto em vida).

 

Análise linha a linha da primeira estrofe:

     A nau de um deles tinha-se perdido
A nau de Gaspar, primeiro filho, perdeu-se.

     No mar indefinido.
No mar das Américas.

     O segundo pediu licença ao Rei
Miguel, o segundo filho pediu permissão ao rei para procurar o irmão.

     De, na fé e na lei
Confiando na sua fé e conhecimentos.

     Da descoberta, ir em procura
E partiu então na sua procura.

     Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
Nos mares ainda mal conhecidos da América do Norte.

 

Análise contextual da primeira estrofe:

Em 1501 Gaspar Corte Real partiu para o Continente Americano, na direção da Terra Nova (New Found Land) e nunca mais foi visto. O seu irmão Miguel, partiu em 1502, em busca do seu irmão, mas foi também dado como perdido.

A primeira estrofe relata assim a morte do primeiro irmão e o início da busca pelo segundo: “A nau de um deles tinha-se perdido / No mar indefinido. / O segundo pediu licença ao Rei / na lei / Da descoberta, ir em procura / Do irmão”.

Não é claro por que Pessoa escolhe este episódio da história trágico-marítima portuguesa para ilustrar o que ele pensa ser a “Noite”. Pensamos que Pessoa terá ficado impressionado mais pela história do irmão que fica (abandonado e sozinho com a sua dor como o próprio Pessoa), do que propriamente com a morte dos outros dois. Veremos de seguida se é esse o caso.


 

Análise linha a linha da segunda estrofe:

     Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
Tempo passou, não aparecendo nenhum dos irmãos.

     Volveu do fim profundo
Nenhum regressando do fim dos mares.

     Do mar ignoto à pátria por quem dera
Esse mar inconsciente da existência de Portugal.

     O enigma que fizera.

E de ter dado a Portugal um enigma, no desaparecimento dos irmãos.

     Então o terceiro a El-Rei rogou
Vasco, o terceiro irmão, pediu ao rei que o deixasse ir também.

     Licença de os buscar, e El-Rei negou.
Queria ir buscar os irmãos, mas o rei não lhe deu as naus para essa empresa.

 

Análise contextual da segunda estrofe:

A história completa-se. Pessoa conta como depois de algum tempo (“tempo foi”), “nem primeiro nem segundo” dos irmãos aparecendo “do fim profundo”, “o terceiro a El-Rei rogou / Licença de os buscar, e El-Rei negou”. Em princípios de 1500 é rei D. Manuel I.

O desaparecimento dos irmãos, classifica-o Pessoa, como um “enigma”. Ou seja, um mistério, futuro por se cumprir. Não é por isso só um desaparecimento, mas mortes por explicar, que eventualmente se enredam num Destino maior, que ainda não se conhece. A frase complexa “mar ignoto à pátria por quem dera / O enigma que fizera”, pode traduzir-se como “o próprio mar era inconsciente da existência de Portugal, quando faz o mistério do desaparecimento dos seus navegadores”. O mar é também ele um instrumento de Deus, que opera pelos mistérios no Destino dos homens.

O enigma, porém, não é a única parte importante desta história. Isto porque o irmão Vasco fica sozinho e sem poder resgatar os seus irmãos. Ele passa a sofrer na solidão o seu Destino (como antes o Infante D. Fernando o fizera – ver poema “D. Fernando Infante de Portugal” em “As Quinas”). É também o poeta que sofre, por transferência. O símbolo serve para todos os sofrimentos, quiçá mesmo o de Portugal enquanto nação.


 

Análise linha a linha da terceira estrofe:

     Como a um cativo, o ouvem a passar
Como um preso – que caminha na sua cela – ouvem-no passar.

     Os servos do solar.

Os criados no seu solar de capitão-donatário de Angra.

     E, quando o veem, veem a figura
Quando olham para a figura dele.

     Da febre e da amargura,
Veem doença e amargura.

     Com fixos olhos rasos de ânsia
Os olhos perdidos e ansiosos.

     Fitando a proibida azul distância.
Fitam o mar, em busca ainda dos seus irmãos perdidos.

 

Análise contextual da terceira estrofe:

Vasco, agora sozinho, é eleito sucessor de seu pai, ganha o seu alto cargo (capitão donatário) e passa a residir na "Casa do Capitão" em Angra do Heroísmo. É uma grande casa, senhorial, de pedra, fria, ainda mais agora que a ocupa o coração vazio do novo capitão.

Casa do Capitão Donatário - Cerca de 1474, João Vaz Corte-Real, Capitão do Donatário, mandou construir em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, do arquipélago dos Açores, as suas casas, estrategicamente colocadas na base do morro da Memória, onde edificara um castelo, e no topo da Rua Direita, em ligação rápida com o Porto. O edifício ainda conserva estruturas dessa época. https://angradoheroismo.pt/casa-do-capitao-donatario/


“Como (…) um cativo, o ouvem a passar / Os servos do solar”. Ele percorre o espaço do seu grande solar. Como um cativo porque tem certamente um passo preocupado, como um cativo porque percorre de um lado ao outro salas e corredores, sem ter para onde ir, perturbado com as suas memórias, a sua culpa. Está febril, amargurado e ainda fixa, doentio, “com olhos (…) rasos de ânsia / (…) a proibida azul distância”, na esperança infantil de ver regressar os seus irmãos.


 

Análise linha a linha da quarta estrofe:

     Senhor, os dois irmãos do nosso Nome –
Pessoa fala a Deus dos irmãos, mas já mitos.

     O Poder e o Renome –
Chama-lhes poder e renome.

     Ambos se foram pelo mar da idade
Diz-Lhe que ambos se perderam no mar.

     À tua eternidade;
Em direção da morte – eternidade.

     E com eles de nós se foi
E levaram com eles.

     O que faz a alma poder ser de herói.
A coragem.

 

Análise contextual da quarta estrofe:

Na fase final do poema, Pessoa vai aproveitar para elaborar uma metáfora. Pegando na matéria-prima que foi a morte dos dois irmãos, e que depois de morte, foi feita um mistério, um enigma, o poeta vai incorporar no mistério os elementos da revelação.

“Senhor, os dois irmãos do nosso Nome / – O Poder e o Renome –“. Note-se como Pessoa torna a tragédia pessoal de uma família – os Corte Real – na tragédia Universal de uma nação. Como se a morte que os atingiu, fosse – pelo mistério – passível de uma interpretação superior, reveladora do Destino. Gaspar e Miguel deixam de ter nome humano, para serem “O Poder e o Renome”. Mais uma vez Pessoa aniquila o indivíduo em favor da humanidade.

A comparação segue-se, logicamente: “Ambos se foram pelo mar da idade / E com eles de nós se foi / O que faz a alma poder ser de herói”. Ou seja, como eles morreram, também morreu o poder de Portugal e o nosso renome, a nossa fama esmoreceu, em mistério.


 

Análise linha a linha da quinta estrofe:

     Queremos ir buscá-los, desta vil
Há um desejo de os ir socorrer.

     Nossa prisão servil:
De ir com eles na procura, na viagem.

     É a busca de quem somos, na distância
Essa busca é imaterial, sempre na distância, mas de nós mesmos.

De nós; e, em febre de ânsia,
Nessa busca impossível, febril.

     A Deus as mãos alçamos.
Nessa busca é que também alcançamos Deus.

 

     Mas Deus não dá licença que partamos.

Mas a procura tem de ser iniciada em Deus, pela sua permissão e caminho.

 

Análise contextual da quinta estrofe:

“Queremos ir buscá-los, desta vil / Nossa prisão servil: / É a busca de quem somos, na distância / De nós”. Pessoa aqui transfere por completo o drama para a Nação, e não para o indivíduo. Isto embora Vasco, na sua solidão, na sua angústia e intranquilidade, represente todos os portugueses. O que Pessoa deseja, o que pensa ser a salvação, uma saída para o marasmo do país, que se lamenta na saudade, é empreender “a busca”, sair da “prisão servil” em que nos encontramos. A busca, no entanto, não é material, mas pessoal, espiritual: é “de nós”.

Só assim, na “febre de ânsia, / A Deus as mãos alçamos”. Isto porque na procura da verdade pessoal, vamos encontrar a verdade Universal que é Deus.

“Em febre de ânsia, / A Deus as mãos alçamos. / Mas Deus não dá licença que partamos”. Veja-se com que beleza Pessoa conclui o poema “Noite”. Beleza triste, é certo, mas aqui chora o coração do poeta, vendo na sua inteira dimensão a dificuldade de cumprir o sonho da conquista pessoal, sem ter a ajuda de Deus.

Poder-se-ia perguntar porque não pode a procura pessoal existir sem Deus. Mas essa pergunta não faz sentido, porque Pessoa sabe que o acesso à Verdade tem de passar pelo infinito. Uma procura pessoal sem essa Verdade seria diminuída, insignificante. Por isso mesmo não basta a morte, o sofrimento, tem de haver a revelação, a via crucis do conhecimento oculto. Para além de Deus há o significado de Deus e do homem.

É pois a “Noite” um poema de morte, mas de início de compreensão. Se quisermos do surgir da inteligência, comparável ao Império Grego.

 

Nuno Hipólito, As Mensagens da Mensagem: O Desvendar dos Mistérios: edição anotada e comentada. Lisboa, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, Lda, 2007. Ed. impressa e em CD-ROM. ISBN: 978-972-8645-38-0

 

 

Questionário sobre o poema “Noite”, de Fernando Pessoa:

1. Identifique o tema da composição poética.

2. Indique as dimensões temporais que o poeta salienta no poema. Justifique a resposta com citações.

3. Faça corresponder as características do povo português a cada uma dessas dimensões temporais. Comprove as suas afirmações com exemplos textuais.

4. Comente a invocação feita a Deus.

5. Estabeleça uma relação significativa entre a «vil nossa prisão servil» (vv.25-26) e a «busca de quem somos» (v. 27).

6. Interprete o último verso do poema, revelando os sentimentos expressos pelo sujeito poético.

7. Justifique a integração deste poema na terceira parte da Mensagem, atendendo ao significado do título do poema.

 

Proposta de resolução do questionário sobre o poema “Noite”, de Fernando Pessoa:

1. A temática do poema é sobre o sofrimento e a mágoa, porque falta cumprir-se Portugal.

2. Duas dimensões temporais sobressaem no poema:

Passado: «tinha», «pediu», «tempo foi».

Presente: «ouvem», «vêem», «alçamos»

3. Cada uma das dimensões temporais do poema correspondem a características específicas do povo português, a saber:

Passado – aventura, realização heróica: no texto personificada pelo «Poder» e «Renome» (fama); «A nau de um deles tinha-se perdido no mar indefinido» (vv.1-2).

Presente – longo período de letargia/decadência: «mar da idade» que seguiu momentos heróicos; dor, «Portugal a entristecer»: «amargura»; grandeza de alma insatisfeita e febre de navegar dos eleitos (ânsia da distância): «Com os olhos fixos rasos de ânsia / Fitando a proibida azul distância» (vv. 17-18).

[Um passado de heroicidade, de coragem de um povo (o português) tornou-se, pelos obstáculos que foram aparecendo, num presente de decadência, mas de permanente ânsia do desconhecido, que o Futuro não promete satisfazer.]

4. A invocação feita a Deus significa:

- lamentação da perda de heroicidade (4.ª estrofe);

- súplica com palavras e gestos, pedindo permissão para ir de novo em busca de heroicidade.

[A invocação feita a Deus é um pedido de ajuda/licença divina para que o povo português recupere o Nome e o Poder de outros tempos desgastados e “mortos” pelo tempo (“Ambos se foram pelo mar da idade / À tua eternidade”). É, no fundo, um pedido de permissão e iluminação do caminho que leva à recuperação dos feitos heroicos e identidade portuguesas.]

5. A expressão «vil nossa prisão servil» (vv.24-25) diz respeito ao corpo; à sensação elementar de existir; ao país em decadência.

Por sua vez, a expressão «busca de quem somos» (v. 27) tem a ver com a  convicção de que toda a viagem em busca da Verdade (identidade coletiva, a alma portuguesa ou a arte de ser português) é uma peregrinação interior que nos liberta da «prisão servil» em que vivemos.

 

6. No último verso do poema estão revelados os sentimentos de resignação/conformismo do sujeito poético à vontade divina, contendo em si a voluntariedade de heroicidade, porque reconhece que não é ainda a Hora. Terá, portanto, de esperar pela hora astrologicamente determinada para resgatar os irmãos, libertando-nos também da «prisão servil» em que vivemos.

7. Justificação da integração deste poema na terceira parte da Mensagem, atendendo ao significado do título do poema:

- Na noite como no nevoeiro está o encoberto que pulsa à espera do momento da revelação. É na noite que o dia claro do Quinto Império se começa a desenhar, muito embora não seja ainda a Hora. Estado intervalar.

 -Terceira Parte – O Encoberto (a imagem do Império moribundo, a fé de que a morte contenha em si o gérmen da ressurreição, capaz de provocar o nascimento do império espiritual, moral e civilizacional na diáspora lusíada. A esperança do Quinto Império).

Na 3.ª parte aparece a desintegração, havendo, por isso, um presente de sofrimento e de mágoa, pois «falta cumprir-se Portugal». É preciso acontecer a regeneração que será anunciada por símbolos e avisos

  

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“Noite (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 03-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/noite-mensagem-fernando-pessoa.html