Mensagem, Fernando Pessoa
Terceira Parte - O Encoberto
Pax in excelsis
III – Os Tempos
“Nevoeiro”, de Fernando Pessoa. Portugal, Produções Fictícias, 2005.
Disponível e.: https://ensina.rtp.pt/artigo/nevoeiro-de-fernando-pessoa/
Quinto
NEVOEIRO
|
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Valete,
Frates. |
10-12-1928
Mensagem. Fernando
Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed.
1972). - 104. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2293
A Mensagem de Fernando Pessoa, anotada e comentada
Análise estilística do poema “Nevoeiro”, de Fernando Pessoa
Métrica: 1 Sextilha, 1 sétima e 1 verso isolado. Versos octossilábicos,
com exceção do verso isolado que tem apenas 3 sílabas.
Esquema rímico: Rima em esquemas ababba (sextilha) e
abbcddd (sétima). O verso isolado rima com o quarto verso da sétima.
Observações: Uso de antropomorfização; uso de metáforas
(por ex. “fulgor baço”) e símiles (“Como o que o fogo-fátuo…”), reforçando o
sentimento de dispersão; uso de negatividade; divisão do poema em duas partes
(1.ª estrofe fala da pessoa coletiva, a 2.ª da individual); uso de anáforas e
antíteses (por ex. “nem”); uso de paradoxos (por ex. a frase entre parêntesis
na 2.ª estrofe); uso de apóstrofe (“Valete Fratres”).
Análise do título
Fernando Pessoa termina a Mensagem com o poema “Nevoeiro”,
quinto poema dos “Tempos”. Catorze versos – como as catorze estações da cruz.
Na simbologia por nós proposta, de cinco “Tempos” – cinco
Impérios, será este poema, o que representa o Quinto Império, o Império Espiritual.
António Quadros diz-nos que este poema “define a atualidade portuguesa como decadência, dispersão e névoa
(fazendo lembrar a camoniana «austera, apagada e vil tristeza»)” (António Quadros, Poesia…, pág. 121. Cf. também António Cirurgião, Op. cit., nota 42, pág. 264).
Do último poema, esperar-se-ia um volutuoso e majestoso finale, porque afinal Pessoa exalta o
poder do futuro ainda por acontecer, exorta à ação e à esperança. Mas na realidade não podíamos estar mais longe
de uma tal apoteose.
Coerente,
como sempre, o poeta não deixa para as últimas palavras nada que não seja dito
em todas as páginas anteriores. Mensagem fecha-se
sobre si própria e quando no seu fim, parece relembrar a vontade de novo
início. Sobretudo deixa a sensação de todo, de projeto global, que é dividido
em partes, mas sem que essas partes só existam quando ligadas entre si.
“Nevoeiro” é assim um poema velado, triste mesmo quando
imperativo, como o próprio Fernando Pessoa. Não é momento de
lirismo simples, nem de evocação linear do passado. É um poema de conclusão,
que emana tristeza e sentido de missão, bem como uma ponte para o futuro, para
uma hora marcada para o nascer do Novo Sol (que destruir| o “Nevoeiro”).
Análise linha a linha da primeira estrofe:
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Nem governante nem leis, nem tempos de paz ou de
conflito.
Define com perfil e ser
Podem definir a verdade emanação – essência.
Este fulgor baço da terra
No que no presente é de um fulgor triste.
Que é Portugal a entristecer –
Portugal, país pobre, sem esperança e entristecido.
Brilho sem luz e sem arder,
Vida exterior sem luz intensa, sem fogo de paixão e
vontade.
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Como as luzes do fogo-fátuo (que surge dos materiais em
decomposição).
Análise contextual da primeira estrofe:
Pessoa
começa – numa análise macroscópica – por caracterizar o momento do país. E vê-o tão desesperado que “nem rei nem lei, nem paz nem guerra” o
“definem com perfil e ser”. Ou seja, o país está tão sem alma, sem
originalidade, que nenhum governante, nenhuma mudança pela força, o poderá regenerar verdadeiramente. Continuará a ser
“fulgor baço da terra”, um “Portugal a entristecer”.
Há
vida, certamente. Há quotidiano, quem enriqueça, quem faça uma vida, cresça, tenha família e morra. Mas toda a vida sem sentido é como “brilho sem luz e sem arder”. É mais ainda, é pior, é “como o que o fogo-fátuo encerra”, ou seja, é aparência de brilho (vida
exterior), mas sem luz interior (vida interior). Quem vive assim, não vive,
sobrevive – ambiciona,
procria e morre. Para Pessoa é claro que o brilho de uma vida assim é como o
fogo-fátuo, que é um brilho que sai dos cemitérios e dos pântanos, brilho
artificial e podre, apagado, próprio dos corpos mortos e decompostos.
É um
triste quadro o que nos pinta Pessoa e, de certa maneira, um quadro intemporal
para um país que sempre se queixa das mesmas maleitas. Não é de estranhar que
Pessoa, levado pela sua imaginação, talento e cultura, queira desenhar uma
saída deste marasmo social e intelectual. Mas
uma saída sem “rei nem lei, nem paz
nem guerra”, ou seja, uma solução de infinito, de eternidade, que não seja
transitória. Será o seu início o modernismo, como corrente literária, mas não só.
Análise linha a linha da segunda estrofe:
Ninguém
sabe que coisa quere.
Os portugueses não sabem o que verdadeiramente querem.
Ninguém
conhece que alma tem,
Não conhecem a sua alma
– o seu Destino.
Nem o
que é mal nem o que é bem.
Nem para o bem, nem
para o mal.
(Que ânsia distante
perto chora?)
Adivinha-se, no entanto, uma
ânsia neles, uma ânsia de querer.
Tudo
é incerto e derradeiro.
Mas tudo é incerto, difuso, morte.
Tudo
é disperso, nada é inteiro.
Tudo em Portugal é parcial, não há vontade de erguer,
nada.
Ó
Portugal, hoje és nevoeiro...
Portugal é no presente como o nevoeiro.
Análise contextual da segunda estrofe:
Segue-se uma análise microscópica, de pormenor. Depois de ver o
“Nevoeiro” como um todo, Pessoa analisa-o partícula a partícula.
Mas é
esta uma exortação ou uma elegia? Pessoa não se
limita, fala a fundo dos males que sente serem os males de um país. É
uma visão de alguém que, sendo
português de nascimento, traz também uma perspetiva de estrangeiro. Mal se faça
a comparação, novamente deve o poeta chamar a atenção para o corpo morto de
Portugal, para que esse corpo se possa erguer, conhecer a razão mais alta do
seu sofrimento.
É um país perdido. Onde “ninguém sabe que coisa quere”,
onde “ninguém conhece que alma tem”, sem noção
nem do que “é mal nem o que é bem”. Uma sociedade amoral,
desligada dos mais altos
valores, da nacionalidade, do espírito de unidade religiosa, sobretudo da
irmandade. No entanto, há uma esperança ténue: “ânsia distante” que “perto chora”.
Será que no íntimo de cada um reside um desejo
distante de mudança?
Mas é tudo tão “incerto e derradeiro”, “disperso”. “Nada é inteiro”.
Tal o desespero na análise que Pessoa
deixa-se finalmente a uma interjeição dolorosa:
“Ó Portugal, hoje és nevoeiro…”.
Análise linha a linha da terceira estrofe:
É a Hora!
É o momento de surgir o Quinto Império, a Nova Vida.
Análise contextual
da terceira estrofe:
Depois
de duas estrofes mortas, soturnas, Pessoa faz a sua última exortação, gritando de peito cheio de ar, ao infinito: “É a Hora!” (ver
a segunda estrofe do poema “sem título” em os “Avisos”).
A “Hora” é o fim da Obra
que se vem descrevendo. Não se percebe – porque é em rigor ainda um mistério – que hora será,
se hora humana ou hora divina, mas certamente é uma hora certa, inevitável.
Esta “Hora” de Pessoa é também uma realidade por
consumar. Isto porque Pessoa clama por um momento que – em verdade – será impossível de acontecer sem que ele o anuncie – eis o paradoxo. Por isso a “Hora” é também o momento em que Pessoa é lido até ao fim,
quando se conclui a leitura da Mensagem, do plano de Pessoa para
regenerar Portugal.
Com
esta frase final, Pessoa “foi-se”, como o “mostrengo
servo”,
deixando-nos a nós a tarefa imaterial de revelar em cada um de nós os mistérios que ele anunciou.
Para que em cada um de nós brilhe aquele relâmpago, faísca divina, que nos tira
da vil noite na direção do Novo Dia.
A mensagem da Mensagem é
essa: procurar no íntimo a razão que ilumina a vida que vale a pena ser vivida.
Incrivelmente – ou
talvez não – é uma
mensagem positiva, otimista.
Uma derradeira pista, como um
eco que se distancia, é deixada: um Valete Fratres!, um Adeus Irmãos!, sincero como um forte aperto de mão, um abraço quente.
(É um adeus, mas também um até já.
Veja-se que Pessoa se despede com uma nova elocução em latim, retirada de um ritual
maçónico, e por isso com significado hermético. Pessoa pretende comunicar que
se despede de todos aqueles iniciados, seus irmãos templários e rosa cruzes
(mesmo que só em espírito), que compreendem o significado das suas palavras e
vão agir através delas no futuro de Portugal. É, portanto, um adeus no
presente, lançado para o futuro. Quanto desse adeus é também amargura, e quanta
da nova pátria que Pessoa deseja será o impossível retorno ao seu passado de
criança (a uma pátria pura, com pai e mãe atenciosos e dedicados, sem solidão) – isso podemos
apenas conjeturar.)
Nuno Hipólito, As Mensagens da Mensagem: O Desvendar dos Mistérios: edição
anotada e comentada. Lisboa, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora,
Lda, 2007. Ed. impressa e em CD-ROM. ISBN: 978-972-8645-38-0
Linhas de leitura do poema “Nevoeiro” de Fernando Pessoa
Levantamento de palavras ou expressões do
campo lexical de «nevoeiro»:
baço
(v. 3), brilhos em luz (v.
5), incerto (v. 11), disperso (v. 12), nada é inteiro (v. 12).
Levantamento de palavras ou expressões do
campo lexical de negatividade:
- «nem» (quatro vezes no 1.º verso e
duas no 9.º, repetida com outras palavras de permeio, e contribuindo
decisivamente para caracterizar, logo no início, uma situação de inércia e
marasmo);
- «ninguém» (duas vezes e a constituir uma
anáfora, no princípio dos versos 7-8);
- «sem», repetida no 5.º verso contribuindo
para adensar o sentido dum verso paradoxal, em que o oxímoro desempenha, como em
todo o texto, um papel fundamental: «Brilho, sem luz e sem arder»;
- «nada» (v. 12) em antítese com «tudo»;
- palavras ou expressões antitéticas:
«guerra» (v. 1), «fulgor baço» (v. 3), «encerra» (v. 3), «entristecer» (v. 4),
«fogo fátuo» (v. 6), «Que ânsia distante perto chora?» (v. 10), «incerto e
derradeiro» (v. 11), «disperso» (v. 12), «nevoeiro».
O sentido expresso por «nevoeiro» é
duplo: escuridão, indefinição,
estado intervalar, por um lado, e, por outro, a esperança ligada à lenda da
vinda de D. Sebastião.
Pascoaes define Nevoeiro como
«queda-esperança». É apenas a condição negativa donde surge a redenção.
Nevoeiro como própria imagem do Portugal tão decadente que só pode estar a
renascer. Nevoeiro como uma nuvem bíblica é a prova do regresso.
Levantamento de palavras ou expressões
que reenviam para a ideia de crise:
- política: «Nem rei, nem lei, nem paz, nem guerra» (repare-se
na sucessão do advérbio de negação nem);
- de identidade: «este fulgor
baço da terra /Que é Portugal e entristecer. / Brilho sem luz e sem arder /Como
o que o fogo-fátuo encerra». (note-se o vocabulário e imagística disfórica: fulgor
baço- Portugal a entristecer - brilho sem luz e sem arder – novo oxímoro
reforçado pela preposição, marca de ausência, sem) (vv. 5-6, 11-13);
- de
valores morais, da
alma: «Ninguém
sabe que coisa quer, / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal, nem o
que é bem», [de novo as palavras que marcam a negação- os pronomes indefinidos ninguém,
o advérbio nem];
- de
unidade «Tudo é incerto e
derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro.» (vv. 11-12).
Comparação da realidade aludida em «Nevoeiro»
com a referida em «Mar Português»:
A situação, em síntese, é de incerteza, de
indefinição: «Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó
Portugal, hoje és nevoeiro...»
As queixas (o pranto) das personagens
invocadas em “Mar Português”, que não conseguem ver o significado maior para o
sofrimento que estão a passar, corresponde ao tom geral do poema “Nevoeiro”.
O sentido da interrogação na 2.ª estrofe -
«(Que ânsia distante perto chora?)»:
Esta frase parentética refere-se ao próprio
Pessoa, à voz que fala. No meio do nevoeiro que é Portugal a entristecer há uma
voz que se ergue – Fernando Pessoa.
A abertura à esperança está contida no
verso entre parêntesis (o parênteses é uma separação) e afirmada triunfalmente
no último verso.
Algo ficou consubstanciado na «ânsia distante»
que «perto chora» –, e justamente porque Portugal hoje é nevoeiro, «É (também)
a Hora! » - [teremos que ter em conta que, segundo a lenda sebastianista, o Rei
redentor regressaria numa manhã de nevoeiro]. A Hora, maiusculada, mas de
quê?
Pessoa não o diz, mas todo o livro o
significa: a Hora de partir, de novamente conquistarmos a «Distância / Do mar
ou outra, mas que seja nossa!»- [ como se dizia no poema da 2.ª parte, Prece
], - de assumirmos o sonho, cumprindo o nosso destino de sagrados
por Deus e portadores do seu gládio, do seu sinal - assim a Obra
nascerá de novo, como em Mar Português - e poderemos «viver a verdade / que
morreu D. Sebastião.»
Assim sendo, temos que ler Mensagem
justamente como a epopeia da era que há de vir, a do sonho feito realização,
a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e interrompida de D. Sebastião,
de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa.
(cf. Pais: 2001, 145-146)
A expressão latina «Valete, Frates»
era a despedida normal dos membros de certas sociedades secretas (Maçonaria...)
e dos frades de ordens religiosas. É um grito de felicidade e um apelo para que
todos lutem por um Novo Portugal.
Inserção do
poema na estrutura interna da obra:
Último poema de Mensagem, pertencente, portanto, à parte designada “O Encoberto”,
em que se fecha o ciclo da vida da Pátria, mas em que se pressente o gérmen
(embrião) sebastianista, o anúncio de um novo ciclo e a recuperação de energias
latentes para a constituição próxima de um Quinto Império, um “reino de
liberdade de espírito e de redenção”.
Características
sebastianistas do poema:
- o desânimo nacional (o
sebastianismo manifesta-se sempre numa crise, degradação, vazio de sentido);
- uma ânsia instintiva da vinda de um
salvador: “É a Hora!” – exclama o poeta, é o momento de uma nova Índia, que
se abre no horizonte do povo português; é o Quinto Império, é o super-Portugal
de que Fernando Pessoa seria o super-Poeta;
- o salvador e a sua vinda revestem-se
de mistério (“nevoeiro”), de algo transcendente (“Hora”; “Valete, Frates” –
despedida normal dos membros de certas sociedades secretas e dos frades das
ordens religiosas. Se bem que esta expressão não seja aqui como fecho do poema,
mas como fecho da obra, vem insinuar ainda mais o sentido sebastianista, mesmo
esotérico, do poema).
(Proposta de resolução
das linhas de apoio à leitura metódica sugeridas em Ser em Português 12.º
Ano, coord. Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 1999)
Aula sobre o poema “Nevoeiro” e
Sugestão: visiona o Módulo de Português do 12.º Ano respeitante à análise
e interpretação do poema “Nevoeiro”,
de Fernando Pessoa:
In: Projeto #EstudoEmCasa. O sebastianismo na Mensagem. Os poemas "O
Quinto Império" e "Nevoeiro" -Aula 23 de Português do 12.º Ano, 08-02-2021.
Disponível em: https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e522879/portugues-12-ano
(inicia no minuto 17’ 52’’)
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia,
17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“Ó Portugal, hoje és
nevoeiro... (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 04-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/o-portugal-hoje-es-nevoeiro-mensagem.html
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