[...] quando lemos versos que são realmente admiráveis, realmente
bons, temos a tendência para o fazer em voz alta. Um verso bom não permite ser
lido em voz baixa, ou em silêncio. Se pudermos fazê-lo, não é um verso válido:
o verso exige ser pronunciado. O verso recorda sempre que foi uma arte oral
antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto.
Jorge Luis Borges
VOZ REFLEXIVA
Fátima Miranda, Concierto en Canto
Madrid, Hyades Arts, 1994.
Inicialmente concertam a voz
junto aos abismos: penhascos
as mulheres preludiam à beira da rocha
e o som fica para trás
para a aldeia dos vivos
carpem quando liminarmente se deixam tocar
e como a voz ecoa elas saem de si
a respiração é orgânica instalada
a voz sólida poetada
trabalham as cordas vocais
com exercícios vários sempre apreciados
lentamente emudecem
por momentos a população quieta-se
e os aldeões assentem sem aplauso
perante a passagem da voz por caminhos milenares
a respiração é orgânica instalada
a voz sólida poetada
conduz a um só matiz
que se acerca aloja e distrai com maestria
evolui para o mesmo, a raiz, essa raiz antiga.
Como as carpideiras as mulheres alimentam
a qualidade da verdade
habitam os potros com sua voz
devolvem a memória à terra velha e larga
até tudo se integrar na linguagem de todos
e de um só
no centro do corpo, coral, sonoro
muito oral.
CANTO & ENCANTO – a música dos signos
Entre si sempre mantiveram as artes uma afortunada colaboração.
O célebre verso de Horácio “ut pictura poesis” transferiu-se para o terreno musical: “ut musica poesis”. A poesia é como a música. É rítmica como as artes do movimento que se desenvolvem no tempo: a música e também a dança.
“Ela (a música) não nos confia nem o tempo nem o eterno, mas produz o movimento; ela não afirma nem o vivido nem o conceito, mas constitui o acto de razão sensível” G. Deleuze (adaptado).
Na Idade Média peninsular, os trovadores compunham as suas cantigas e os jograis dedilhavam a cítara, acompanhados por soldadeiras que animavam a festa, bailando (e por vezes tocando instrumentos musicais).
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Cancioneiro da Ajuda: jogral com viola de arco, rapariga com pandeiro. |
Na contemporaneidade, são felizes as parcerias entre Pedro Homem de Mello/Amália; Ary dos Santos/Carlos do Carmo e ainda António Lobo Antunes/Mísia na formação do estilo musical português que é o fado.
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Fado (1910), José Malhoa. |
De acordo com o próprio Malhoa, em entrevista à Luta, em 20 de Março de 1915, “Não há nessa tela apenas um fadista e uma rameira. Há ali uma mulher encantada ao ouvir o seu melhor afecto, que lhe canta o coração”.
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“O Fado” (1923), filme mudo de Maurice Mariaud. |
Em 1997, um projecto de Rodrigo Leão, Gabriel Gomes e Manuel Hermínio Monteiro vem satisfazer o nosso gosto poético-musical. Trata-se de Os Poetas. Entre nós e as palavras.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS
Em toda a poesia existe subjacente a música em que assentam e se deslocam harmoniosamente as palavras. Desde os primórdios que a poesia nasceu para ser cantada ou recitada. Aconteceu que, em muitos casos, a poesia foi perdendo a sua melodia como as catedrais medievas perderam a euforia das cores que lhes revestiam o interior. Tivemos de chegar aos simbolistas para ver proclamada a exigência musical “de la musique avant toute chose” (Verlaine), do mesmo modo que Rimbaud preencheu de cores sonoras as vogais do poema. Parece pois claro e natural que cinco poetas portugueses de excepção se encontrem com músicos da melhor qualidade num acto tão espontâneo e cúmplice que mais parece combinado há muito pelos duplos silêncios da criação.
Neste disco, as vozes e os poemas de Cesariny, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge, AI Berto e António Franco Alexandre ganham um singularíssimo suporte musical que procura, antes de mais, libertar a estrutura rítmica intrínseca a cada um dos versos dos seus poemas.
E o processo desenvolve-se por uma disfarçada humildade dos compositores que tudo fazem para acentuar os sentidos da palavra e da voz, quer pela construção de atmosferas e serenos cromatismos musicais específicos de cada discurso poético, quer em alguns momentos, silenciando ou subalternizando a linha musical para realçar a voz do poeta, enaltecendo-a. Resulta assim um encontro inédito e feliz entre a música e a poesia revelando, simultaneamente, a diversidade da lírica portuguesa desta última metade do século XX.
O projecto musical de Rodrigo Leão, Gabriel Gomes, Francisco Ribeiro e Margarida Araújo restitui à poesia o seu sítio de eleição. Entre a música e inebriando-se desta, cada vocábulo ou verso proferidos pelos seus criadores, sobe à excepcional melodia que o cuidadoso silêncio do livro fechado abata ou guarda.
Poderia, contudo, esta aproximação da música à melhor poesia, tornar-se apenas numa interpretação como o faz cada actor com o seu particular modo de dizer. Não é assim. Entre nós e as palavras parte da audição dos poemas (mais do que da leitura). A música, que primeiro navega as palavras, deixa-se finalmente conduzir por elas até se tornar suporte ou jangada. Chegam combinados e fundidos ao outro lado e, quando a música se autonomiza, mantém o efeito do contágio poético, não deixando de sugerir certas palavras para um outro eventual poema. Em Nuevas Canciones, o poeta Antonio Machado parecia querer resumir este projecto: “Canto e conto é a poesia / canta-se uma viva história / Ao contar-lhe a melodia”. Chegamos assim exclusiva e definitivamente ante a poesia. Ela torna-se assim, e realmente, senhora de todo este disco. E que este projecto passe também pela Assírio &; Alvim, que este ano comemora 25 anos de existência e de dedicação às palavras da poesia só quer dizer que Entre nós e as palavras há metal fundente, como escreveu Cesariny.
Entre nós e as palavras dispõe dos alicerces seguros que muito ajudarão a altear e divulgar a grande poesia portuguesa.
CONCIERTO EN CANTO
Concierto en canto (1994) é uma obra-prima da música vocal contemporânea. “Ouvir cantar Fátima Miranda é participar de um ritual religioso. Porque a voz de Fátima Miranda e a mulher Fátima Miranda são uma e a mesma coisa." (Fernando Magalhães,Público, 15-IV-1998).
“Fátima Miranda invoca aqui forças ancestrais e coloca a voz ao seu serviço numa sequência de oito movimentos que percorrem toda a gama de registos vocais e estados de espírito que vão da serenidade contemplativa à histeria, da regressão à infância ao lançamento de maldições, da recriação étnica ao risco absoluto, entre o humor e a psicose, o amor e a morte [...]. Fátima Miranda é uma pura extravagância: a voz, a música, o movimento, os figurinos. Assistir a um espectáculo seu é uma experiência transcendente, para alguns, esgotante, para outros. Dotada de una capacidade vocal incomum, performer de mil recursos, trágica, paródica, desconcertante, lírica, arrepiante, macabra mesmo” (Fernando Magalhães, Público 10-IX-2000).
O canto e o encanto de Fátima Miranda realiza-se em torno da voz como instrumento de percussão e criação de uma linguagem musical que, na essência, toca as refinadas formas tradicionais de cantar.
A designação de poesia sonora para a arte de Fátima Miranda é um pleonasmo, porque poesia é música. Poesia e música convergem numa só arte, assim como no mesmo corpo convergem o poeta e o actor. E o canto de Fátima Miranda é físico, corporal, é espectáculo total que estabelece uma comunicação eficaz com o público, numa variedade vocal avassaladora, irónica e delirante.
Encantado por estes dois projectos poético-musicais, Os Poetas. Entre nós e as palavras e Concierto en canto, proponho a sua audição. Sentir-se-ão, por certo, religados ao essencial.
CARREIRO, José. “Canto & Encanto - entre nós e as palavras”.
Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 19-11-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/11/canto-encanto-entre-nos-e-as-palavras.html
(2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/11/19/canto_2D00_encanto.aspx)