sábado, 7 de setembro de 2013

Cancioneiro Joco-Marcelino (Natália Correia)


Em 1989, Lisboa teve uma campanha eleitoral excêntrica:
Marcelo Rebelo de Sousa mergulhou no Tejo, guiou um táxi e varreu o lixo.



O poema de Natália Correia que arrasou Marcelo por visitar bairros de lata

 

Os bairros sociais não são uma novidade para Marcelo. Em criança acompanhava a mãe, já jovem fazia voluntariado, mas como político nem sempre correu tudo bem. Até foi brindado com poemas de escárnio.

 

 

Ainda criança, o pequeno Marcelo acompanhava a mãe no trabalho, como assistente social, aos bairros mais desfavorecidos de Lisboa. Já no liceu, em colaboração com as Conferências de São Vicente de Paulo, visitava bairros de lata para distribuir comida pelos mais pobres. Anos mais tarde, em 1990, chegou a vez de o fazer como político, como candidato do PSD à câmara municipal de Lisboa e, aí, as coisas já não correram tão bem: primeiro porque ninguém quis saber o que propunha para aquelas zonas, depois porque a ideia que circulou — de que pretendia dormir nesses bairros de lata durante a campanha — foi imortalizada por Natália Correia no poema jocoso “Marcelo e as tágides“.

Apoiante de Jorge Sampaio, Natália Correia fez uns poemas — quase cantigas de escárnio e mal-dizer — sobre o candidato da direita. No jornal O Corvo — nome do jornal da campanha eleitoral da Coligação por Lisboa — a poetisa escreveu um “Cancioneiro Joco-Marcelino”, que foi publicado em novembro e dezembro de 1989 e mais tarde em várias antologias poéticas. Numa das quadras, a poetisa fala de um prodígio que Marcelo com superpoderes “congemina”: dormir nos bairros e acabar com os males de quem ali vive.




MARCELO E AS TÁGIDES


Marcelo, em cupidez municipal

de coroar-se com louros alfacinhas,

atira-se valoroso – ó bacanal! –

ao leito húmido das Tágides daninhas.

 

Para conquistar as Musas de Camões

lança a este, Marcelo, um desafio:

Jogou-se ao verso o épico? Ilusões!…

Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

 

E em eleitorais estrofes destemidas,

do autárquico sonho, o nadador

diz que curara as ninfas poluídas

com o milagre do seu corpo em flor.

 

Outros prodígios – dizem – congemina:

ir aos bairros da lata e ali, sem medo,

dormir para os limpar da vil vérmina

e triunfal ficar cheio de pulguedo.

 

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão

de asa delta a fazer de passarela,

sobrevoa Lisboa o passarão

e perde a pena que é de galinhola.



 

in INÉDITOS 1979/91 Cancioneiro Joco-Marcelino, POESIA COMPLETA

 

Mais tarde, quando publica este e outros poemas sobre Marcelo em livro, Natália Correia explica que nada tem contra o agora Presidente, mas que não podia abdicar de registar estas irresistíveis “piruetas marcelinas“.  Numa “recomendação introdutória” começa por dizer: “Não se leia neste parodístico registo das traquinices com que Marcelo Rebelo de Sousa extravagantemente singularizou a sua campanha de candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa uma condenação dessas travessuras.” E acrescenta: “Saiba-se antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas marcelinas uma irresistível simpatia posta em humor por travessuras para mim ainda mais atraentes dado o enfadamento que a solenidade me provoca num magister de reconhecido mérito em Direito.”

Ainda na campanha a Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa apresentava “300 medidas para salvar Lisboa” e — segundo o livro Marcelo Rebelo de Sousa, de Vítor Matos — uma das medidas mais emblemáticas que tinha era um “plano de erradicação de barracas e bairros de lata, que visita durante o mês de outubro à chuva e pelo meio da lama”. Mas — segundo o próprio confessou anos mais tarde ao autor do livro — “a classe média estava-se a borrifar para isso”, recorda o ex-candidato. No dia em que apresentou as propostas, cometeu, aliás, um pecado capital: foi ao circo e, no dia seguinte, ao invés das medidas, os jornais só falavam de como Marcelo colocou a cabeça dentro e fora da jaula de uma leoa chamada Aida.

A poesia de Natália não se ficou por ali. A poetisa acabaria por brindar Marcelo com outros poemas. Um deles comparando-o a Batman, como se vê pela primeira quadra de “Batma(n)rcelíade“:

Sempre sôfrego do último modelo
pela batmania agora cego,
deixa de ser taxista e eis que Marcelo
troca o volante por asas de morcego

 

Já em “O Fado do Coveiro“, mais um poema dedicado a Marcelo, é exposto o desespero de Cavaco Silva por ter um candidato tão excêntrico à maior câmara do país. A última quadra desse poema rezava assim:

Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo”

 

Em “Marcelo até Almeida“, o tom é mais duro

Chorando pérolas amargas no chiqueiro
num andar aos papéis que não tem fim,
a Santo António da Lisbia milagreiro
Marcelo oferece o derreado rim

 

O último episódio polémico da ida a um bairro problemático, aconteceu na última segunda-feira. Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Bairro da Jamaica e conversou com uma família que tinha estado em confrontos com a PSP. O sindicato da polícia considerou que o Presidente estava a discriminar os polícias.

Marcelo deixou de lado a poesia e os afetos e respondeu com estrondo, dizendo não querer acreditar que a polícia se está a pôr no “mesmo plano” de uma comunidade desfavorecida.

Rui Pedro Antunes, https://observador.pt/2019/02/05/o-poema-de-natalia-correia-que-arrasou-marcelo-por-visitar-bairros-de-lata/



 
                 
              
O FADO DO COVEIRO

Das artes mágicas campeão audaz
tira Marcelo da manga a outra faceta:
por su dama Lisboa, o Galaaz
faz à viela e ginga à lisboeta.

Calça à boca de sino de sino e cachené
ao marialva senil metendo inveja,
fidalgo edil que canta para a ralé
o faduncho finório gargareja.

Estremece Aníbal com o pardal fadista
que aquilo é treino para o último regalo:
escaqueirar o reinado cavaquista
e sobre a tumba, por fim, cantar de galo.
               
Natália Correia, “Cancioneiro Joco-Marcelino” 
in O Corvo, jornal de campanha eleitoral da Coligação por Lisboa. 
N.º1 a 8, novembro/dezembro de 1989.
              
              

Reprodução mimética dos arquétipos medievais
              
A reprodução mimética consiste na replicação quase perfeita dos modelos poéticos trovadorescos, desde a sua estrutura formal até aos temas e campos sémicos próprios das cantigas medievais.
[…] vamos analisar um poema de Natália Correia, que se aproxima muito do género da cantiga de escárnio e maldizer – “O fado do coveiro”. Em primeiro lugar, importa referir que esta composição faz parte de um conjunto de poemas a que Natália Correia deu o título de «Cancioneiro Joco-Marcelino», o que, por si só, constitui uma remissão explícita para os cancioneiros medievais. Na «Recomendação Introdutória», a autora esclarece a motivação deste “parodístico registo das traquinices” de Marcelo Rebelo de Sousa, numa inesquecível campanha eleitoral para a Câmara Municipal de Lisboa em 1989:
«Não se leia neste parodístico registo das traquinices com que Marcelo Rebelo de Sousa extravagantemente singularizou a sua campanha de candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa uma condenação dessas travessuras.
Saiba-se antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas marcelinas uma irresistível simpatia posta em humor por travessuras para mim ainda mais atraentes dado o enfadamento que a solenidade me provoca num Magister de reconhecido mérito em Direito.» (Natália Correia, Poesia Completa, 2ªedição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, p. 561)
            
Assim sendo, este cancioneiro é composto por oito poemas, que oscilam entre a cantiga de escárnio e maldizer e o sirventês político, em torno de uma figura central – Marcelo Rebelo de Sousa –, à semelhança dos ciclos temáticos da sátira galego-portuguesa. No poema “O fado do coveiro”, comenta-se a apresentação e campanha de Marcelo.
Esta composição encontra-se articulada em três coblas ou estrofes de quatro versos e apresenta rima cruzada, tratando-se de uma cantiga de mestria. Como era frequente nas cantigas de escárnio e maldizer, esta composição apresenta “interferências da função narrativa” (Giuseppe Tavani, Trovadores e Jograis – Introdução à Poesia Medieval Galego-Portuguesa, s.l.: Editorial Caminho, 2002, p. 238), sobretudo na primeira estrofe que introduz a figura satirizada e o seu comportamento, que serão alvos da diatribe mordaz do poeta. A glosa satírica do comportamento de Marcelo contém alguns dos campos sémicos mais comuns das sátiras medievais1: o «ethos trovadoresco», quando são referidas as mudanças drásticas que faz pela sua dama (“por su dama Lisboa, o Galaaz faz à viela e ginga à lisboeta”); o «ultraje», presente em termos como “ralé”, “gargareja”, “escaqueirar”; o campo sémico da «descriptio», com a descrição das peças de vestuário de Marcelo (“calça à boca de sino”, “cachené”) e, por último, o da «polémica social», com as referências ao “fidalgo edil” que faz ‘estremecer Aníbal’ com o seu “faduncho finório” e que consegue “escaqueirar o reinado cavaquista”, com alusões evidentes ao primeiro-ministro à época, Aníbal Cavaco Silva.
              
Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha
Universidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp. 9, 14-15
              
             
***
               
A natureza bifronte da estética e da ética trovadorescas, em cuja origem se produz «o fenómeno do difásico Dr Jekyll-Mr. Hyde» (Natália Correia, «Notas para uma introdução às cantigas d’escarnho e de mal dizer galego--portuguesas», p. 158), encontra-se projectada na releitura que, em paralelo, Natália Correia desenvolve do cancioneiro burlesco, testemunhada pelos conjuntos poéticos intitulados Cantigas de risadilha Cancioneiro Joco-marcelino. Pelo cultivo desta poética bivalente dá a autora provas da «osmose lírico-satírica dos dois veios provenientes da génese trobadórica, berrante em Gomes Leal e Sá-Carneiro, porém quebrada pela mitofagia da religião pessoana» (Natália Correia, «Prefácio» a José Carlos Ary dos Santos, As palavras das cantigas, Lisboa, Edições Avante, 1989, p. 7).
É de sublinhar o imprescindível enraizamento circunstancial destes textos, que a autora lucidamente apoda de «desenfados quase todos parlamentares». No entanto, o seu ludismo aparentemente inócuo não deve fazer esquecer que a «atitude intervencionista nos nossos dias postulada pelo realismo social» (Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, p. 47), cuja vitalidade Natália Correia muito certeiramente assinala a propósito do escárnio trovadoresco, não se encontra de todo ausente destas diatribes poéticas.
Partícipes do sirventês político e da chufa pessoal, trata-se, em qualquer dos casos, de criações iluminadas pelas rubricas explicativas que as antecedem, nas quais se esclarecem as coordenadas situacionais que subjazem à sua génese, um pouco à maneira de razos modernas. No caso das Cantigas de risadilha, a explícita vinculação paratextual a um subgénero que surge, desde a lacunar codificação poetológica que dele figura na anónima Arte de Trovar, associado a uma pragmática do riso e do sem-sentido2, revela precisamente «a transição do escárnio popular para a sátira artística» assinalada pela autora na introdução à Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Por seu turno, o Cancioneiro Joco-Marcelino («o parodístico registo das traquinices» de Marcelo Rebelo de Sousa) estriba-se numa sintaxe poética serial, semelhante à dos ciclos satíricos galego-portugueses, organizados em torno de uma personagem histórica. Em qualquer dos casos, deteta-se a permanência de uma personapoética que endossa um discurso entre o sentencioso e o satírico-burlesco, e de artifícios retóricos claramente tributários da textualidade da cantiga satírica galego-portuguesa.
         
________________
(1) Nas cantigas de escárnio e maldizer, podem encontrar-se quatro campos sémicos principais (o «ultraje», o campo «alimentar», a «polémica social» e o «obsceno») e um secundário (o «ethos trovadoresco») e ainda outros campos importados de outros géneros (a «coita d’amor», a «descriptio», a «paisagem»). (Giuseppe Tavani,Trovadores e Jograis – Introdução à Poesia Medieval Galego-Portuguesa, s.l.: Editorial Caminho, 2002, p. 251)

(2) Sobre as cantigas de risabelha diz-se no capítulo V da Arte de Trovar: «Pero er dizem que outras há i “de risabelha”: estas ou serám d’escarnho ou de maldizer; e chama-lhes assi porque riim ende a vezes os homens, mais nom som cousas em que sabedoria nem outro bem haja.». Cf. Giuseppe Tavani (ed.), Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa, Edições Colibri, 1999, p. 42.   

  

   PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:


Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).

 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/07/o.fado.do.coveiro.aspx]
Última atualização: 2022-07-18

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

NESTA PRAIA, AMIGAS, DE ONDE P’RÁS CRUZADAS (Natália Correia)


XVIII - DIGADES, FILHA, MHA FILHA VELIDA - Pero Meogo, Antonio García Patiño

                  
                 
CANTIGAS DE AMIGO

QUEIXAM-SE AS NOVAS AMIGAS EM VELHOS CANTARES DE AMIGO

I
               
Nesta praia, amigas, de onde p’rás cruzadas
Foram matar mouros nossos lidadores
Com cantares de amigo chamamos as barcas
Que à lide levaram os nossos amores.
          Vão e vêm as ondas. Pelas mesmas águas
          Discorrem idades. Não mudam as dores.

Com velhos cantares que por estas matas
Fizemos quando eles inda eram pastores,
Chamemos as naus, pois que ora são nautas
Que à Índia levaram os nossos amores.
          Mudadas em naus as lenhas das matas
          Mudaram o mundo. Não mudam as dores.

Neste cais de prantos de onde eles em armas
Foram matar pretos pelos seus senhores
Com cantares chamemos as frotas iradas
Que à guerra levaram os nossos amores.
          Vêm os soldados e foram-se as Áfricas,
          São outras as guerras. Não mudam as dores.

Com cantares que cheguem às nuvens mais altas
De onde lançam bombas os aviadores
Chamemos as barcas que ganhando asas
Pró inferno levam os nossos amores.
          Mudaram-se as armas que em ímpias fornalhas
          Mudam as cidades. Não mudam as dores.
               
Natália Correia, “Inéditos posteriores a 1990” in O sol nas noites e o luar nos dias II, s/l, Círculo de Leitores, 1993
               
               
O gosto da matriz medieval não é, em Natália Correia, um despertar recente. A semelhança de outros poetas do século XX (como, por exemplo, Eugénio de Andrade, Manuel Alegre ou Reinaldo Ferreira), o ritmo da cantiga de amigo e a obsidiante e irremediável sugestão de ausência que ela detém mantiveram-se em latente espera na sua fala poética, como uma sombra e como um desejo, como sinal de uma relação poética subjacente - uma espécie de fio hereditário, genealógico, a prendê-la a "Denís Rey". Assim o confessa noutro inconfundível e esclarecedor umbral dos seus Poemas de 1955:
Sou filha de marinheiros
Pelo mar que também quis,
Pela linha da poesia
Sou neta de D. Dinis.
Aquilo que nunca fiz
É a minha bastardia.
               
Maria do Carmo Castelo Branco de Sequeira, Lugares da Poesia em Natália Correia” 
iNatália Correia 10 anos depoisFaculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003
               
               
Natália Correia, autora de uma obra proteiforme, foi uma das poetisas que enveredaram pelas sendas poéticas do Surrealismo, tendo conseguido, porém, aliar os códigos surrealistas à lírica cancioneiril. Ela própria justifica a sua revisitação consciente e constante dos topoi trovadorescos: por um lado, em função da apologia da unidade ibérica, que a autora enceta (e que postulará sobretudo em Somos Todos Hispanos (1988)); por outro lado, um dos fatores que a aproximam mais visivelmente da lírica medieval é a sua conceção matrista. Natália Correia defende que o feminino é a via salvífica do humano, apontando-lhe os caminhos do Amor. O amor expresso na lírica trovadoresca emblematiza essa regeneração possível do humano através da apologia do feminino primordial:
«O amor é pois a possibilidade feminina do destino glorioso do homem. […] O amor trovadoresco não exprime um ajustamento da realidade e do conceito do amor e do amar, mas é um conceito que quer operar sobre a realidade, transformá-la, ou seja, converter a situação passiva da mulher em princípio ativo, a mulher que inspira o amor que integra a personalidade do homem, a fim de que este reconquiste a sua natureza una, perdida na pluralidade que o escraviza à autoridade desnaturante.» (Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses, 2ª edição, Lisboa: Estampa, 1978, pp. 21, 27)
                 
Assim, Natália Correia encontra, na lírica trovadoresca, um universo, onde a mulher é sublimada e, através do seu amor, oblitera a negatividade dos efeitos patristas, como a intolerância, o autoritarismo, a visão do feminino como fonte de pecado, etc.1
Um dos seus muitos poemas, marcados por uma feição neotrovadoresca, “Nesta praia, amigas, de onde p’rás cruzadas”, pertence ao primeiro ciclo lírico, que a autora intitula “Queixam-se as novas amigas em velhos cantares de amigo”, incluído num conjunto macrotextual de reescritas trovadorescas a que Natália Correia chamou «Cantigas de Amigo».
O poema é constituído por quatro coblas de seis versos, sendo o dístico final uma espécie de refrão com variação. Verifica-se, ao longo da composição poética, uma estrutura paralelística, fazendo coincidir a primeira cobla com a terceira e a segunda com a quarta cobla. Ao nível temático, é percetível uma espécie de metamorfose do tema da ausência do amigo que partiu para o fossado2 e a situação comunicativa dadona virgo que se dirige às amigas. Logo no início da primeira cobla, encontramos um preâmbulo, característico das cantigas de amigo, que deixa claro o fio argumental da composição poética: em primeiro lugar, apresenta a localização topográfica – “Nesta praia” – (aliada a outros lexemas de conotação marinha, como “barcas”, “ondas”, “águas”, “cais”…), onde a amiga espera o regresso do seu amor, compondo uma cenografia característica das barcarolas ou marinhas; em segundo lugar, explicita o modelo enunciativo do poema: a amiga dirige o seu lamento às amigas, que, ao que parece, padecem do mesmo infortúnio; por fim, ficamos a conhecer ab initio o motivo da sua “queixa” que é a ausência do amigo, devido à imposição das guerras de cruzada.
É interessante sublinhar que, de estrofe para estrofe, há uma gradatioatualizadora do motivo da separação dos namorados: na primeira estrofe, os amigos foram para as cruzadas (…“p’rás cruzadas / Foram matar mouros nossos lidadores”); na segunda, deixam a terra e as amigas para ir em busca da Índia; na terceira, partem para a guerra, na tentativa vã de preservar as colónias africanas (“Foram matar pretos pelos seus senhores”) e, por último, para os conflitos bélicos e para a tecnologia apocalíptica que colocam ao seu serviço. A amiga, com um tom inequivocamente disfórico, denuncia assim os sucessivos abandonos, todos eles por motivos destrutivos, mostrando a submissão do homem a Thánatos (“matar mouros”, “matar pretos”, “ímpias fornalhas”), génio alado maligno (e masculino) que representa a Morte e a Destruição, ao passo que se sobreleva o papel feminino que, com os seus cantares, exorta os amigos a renderem-se aos encantos vitalistas de Eros.
Desta forma, o lamento da donzela enamorada não é mais que o eco de uma dor intemporal, que se converte no fatum feminino, uma vez que é sempre a mulher abandonada, é sempre a mulher que espera pelo amigo, é sempre a mulher a ser deixada na mais infecunda expectativa. A flutuação fraseológica do refrão reflete exatamente o facto de o tempo passar de forma incoercível, mas de que algo permanece inalterável: as dores não mudam, mas magnificam-se e perenizam-se.
Assim, esta cantiga de amigo é um exemplo eloquente da mestria com que Natália Correia recuperou a herança trovadoresca, usando velhos temas e formas para exprimir novas condições do homem face ao devir da História.
             
“A herança cancioneiril no Imagismo e no Surrealismo” in Un Chant Novel: A inspiração (neo)trovadoresca na poética de Jorge de Sena, Sílvia Marisa dos Santos Almeida CunhaUniversidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp. 40-43)
           
______________________
Notas:
(1) Natália Correia parece desconsiderar o facto de que a lírica trovadoresca é homossocial, como refere Paulo Alexandre Pereira: «Natália Correia submete os textos galego-portugueses a um crivo hermenêutico que remete para a penumbra o facto, sublinhado à saciedade pela crítica mais recente, de que a lírica trovadoresca é, por definição, essencialmente homossocial, isto é, um assunto de homens, mesmo quando (e sobretudo se) se fala de mulheres. (Paulo Alexandre Pereira, “Uma «arqueologia produtiva»: Natália Correia e a tradição trovadoresca”, in FERREIRA, António Manuel (coord.), Presenças de RégioActas do 8º Encontro de Estudos Portugueses, Aveiro: Universidade de Aveiro, 2002, p. 115)
(2) É de realçar a originalidade com que Natália Correia atualiza o campo sémico bélico, criando verdadeiras telas vanguardistas, onde pontifica o contraste violento entre os cenários presentes (o “matar mouros” nas lides, o “matar pretos” nas Áfricas, o inferno, causado pelas armas que transformam as cidades em “ímpias fornalhas”) com os cenários idílicos convencionais, característicos das cantigas trovadorescas.



              

Com relação a “Nesta praia, amigas, de onde p’rás cruzadas”, justamente o primeiro da série das Cantigas de amigo, convém que o analisemos minuciosamente, dado que exerce uma função equiparada ao do prelúdio musical.

O poema acima nos apresenta o gênero longínquo recriado: a cantiga de amigo. Na primeira estrofe, encontramos uma voz poética feminina que se dirige às “amigas”, solidárias na idêntica situação aflitiva: a ausência “dos lidadores”, dos seus “amores” que partiram da “praia” lusitana rumo à “lide” contra os “mouros” por conta das “cruzadas” – ocorridas entre os séculos XI e XIII. Este dado nos remete aos primórdios da história do reino de Portugal, lembrando-nos das investidas militares portuguesas – sublinhemos, com o auxílio dos cruzados que se dirigiam à Terra Santa – contra os mouros que dominavam a Península Ibérica havia séculos, contribuindo assim para a retomada gradativa dos territórios perdidos – eis aqui o movimento ibérico cristão de expulsão dos muçulmanos conhecido como Reconquista. Como percebemos, a estrofe inicial do poema evoca o imaginário das cruzadas a fim de conectá-lo aos acontecimentos históricos concernentes ao surgimento de Portugal. Note-se também que a guerra se encontra presente.

Não só a guerra, mas o cenário marítimo se manifesta nas três das quatro estrofes da cantiga, remetendo-nos às barcarolas ou marinhas. Averiguemos algumas de suas características:

[...] são cantigas de criação nacional, sem correspondentes nas outras literaturas. O galego e o português, criados à beira-mar, não admira que os atrativos da vida marítima participassem do seu temário poético; daí o encanto com que muitas vezes as sugestões do mar invadem os estados de alma da donzela saudosa, que vai admirar o movimento calmo das ondas, conversar com elas, pedir-lhes notícias do amado, ou ainda esperar por elas as barcas em que partiu o amigo em alguma expedição guerreira [...] a partida do amigo nem sempre era por via terrestre. (SPINA, 1972, p. 386-387)

Encontramos justamente uma voz feminina que incita as amigas a chamarem as “barcas” que levaram os seus respetivos amores para a guerra contra os mouros, para um contexto demarcado pela violência. Reparemos na presença de estruturas reiteradas ao longo do poema de Natália Correia, o que remonta ao paralelismo recorrente nas cantigas de amigo dos cancioneiros. Destaquemos o refrão “Não mudam as dores”, estrutura que encerra as quatro estrofes do poema, ecoando na forma de sentença o ceticismo da voz feminina quanto aos caminhos adotados pela humanidade, já que “Discorrem idades./ Não mudam as dores”.

Na estrofe seguinte, insiste-se nos cantares de amigo. Com eles, os amores ausentes são chamados de volta, e agora não são mais as barcas, mas as “naus” que os levaram ao mar. Deste modo, salta-se do contexto histórico das cruzadas para o das grandes navegações em direção às Índias, transita-se aproximadamente do século XII ou XIII para o final do XV. Há uma justaposição temporal promovida no dístico “Mudaram em naus as lenhas das matas/ Mudaram o mundo. Não mudam as dores” que, por seu turno, remata esta segunda estrofe, já que as “lenhas das matas” que serviram à construção das “naus” que conduziram os portugueses às Índias foram supostamente cultivadas durante o reinado de D. Dinis (1261-1325), o rei trovador-lavrador. Com isso, o tempo histórico em que floresceram as cantigas medievais fornece a matéria-prima para a fabricação das embarcações que “mudaram o mundo”. Frise-se, no entanto, que “não mudam as dores”.

Quando lemos a terceira estrofe, encontramos mais um grande salto temporal: das grandes navegações às guerras coloniais (1961-1974) na África. Na ocasião em que era governado pelo ditador Salazar, Portugal mantinha Angola, Moçambique e Guiné-Bissau como colônias ultramarinas, explorando-as. Para que estas regiões africanas alcançassem sua independência política foi necessário o uso da luta armada contra os portugueses. Em decorrência disso, surgem os versos “Neste cais de prantos de onde eles em armas/ Foram matar pretos pelos seus senhores/ Com cantares chamemos as frotas iradas/ Que à guerra levaram os nossos amores”. A estrofe menciona termos como “armas”, “matar pretos”, “frotas iradas”, “guerra”, “soldados” e “Áfricas” para que a referência a estas guerras coloniais travadas entre portugueses e africanos fique mais do que explicitada. Mas se, por um lado, “são outras as guerras”, por outro, “não mudam as dores”, ou seja, o sofrimento humano permanece o mesmo quando comparado ao de séculos anteriores.

Na quarta e última estrofe, deparamo-nos novamente com a esperança de que os “cantares” tragam de volta os amores ausentes. Mas o canto dirigido ao mar desloca-se agora em direção às “nuvens mais altas”, local onde se encontram “as barcas que ganhando asas/ prò inferno levam” os amores. Do mar para o ar, visto que as barcas, naus e frotas foram substituídas pelos aviões. Estes lançam “bombas” sobre a terra que “em ímpias fornalhas/ mudam as cidades”. Incineram-nas com explosivos de última geração, destroem-nas.

Esta última estrofe lembra-nos do ataque aéreo sofrido pela cidade basca de Guernica em abril de 1937, durante a Guerra Civil Espanhola. Horror retratado e imortalizado na tela de Pablo Picasso. Além de Guernica, estendamos a imagem dos aviões que bombardeiam cidades para o cenário das duas grandes guerras. Nestas, bombas de aviões arruinaram cidades, culminando no abominável uso de bombas atômicas contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Levando-se em conta este terrível panorama da história da humanidade, a cantiga de Natália Correia, ao menos esta, conclui que “não mudam as dores”.

Na cantiga como um todo, existe um movimento gradativo de tensão demarcado pelo léxico das embarcações: primeiro, temos as barcas, depois as naus, mais adiante as frotas iradas e, por fim, as barcas que ganharam asas (os aviões). Com variados matizes, a guerra se presentifica em cada uma das estrofes, dado que o filme que se projeta na tela é sempre o mesmo: o da história da subjugação de homens, de culturas. Critica-se a tecnologia a serviço da violência, da guerra entre os homens. De acordo com o poema, a evolução tecnológica potencializou a barbárie que existe entre os povos desde o período de florescimento das cantigas galego-portuguesas: tempos em que os portugueses já saíam para matar mouros.

E podemos nos indagar: se as guerras são constantemente recriadas e nunca são consideradas anacrônicas, por que as cantigas de amigo não poderiam ser também reinventadas no contexto do século XX? Sendo assim, justifica-se o título da primeira parte referente às cantigas de Natália: Queixam-se as novas amigas em velhos cantares de amigo. Ou seja, um gênero antigo – os “velhos cantares” de amigo –, agora reatualizado no intuito de comportar as “queixas” das “novas amigas” que vivenciam impasses históricos contemporâneos.

É visível nesta cantiga de abertura mais do que uma mera queixa, mas a constatação de uma denúncia contra a história da dominação de um homem por outrem. Quando os “amores” destas “amigas” se encontram ausentes, eles comungam com a opressão, com a supressão da alteridade e, de resto, acabam ironicamente vitimados e, por isso, os versos da cantiga conclamam: “chamemos as barcas que ganhando asas/ prò inferno levam nossos amores”. São as barcas aladas pró-inferno que afastam os amores de suas respectivas amigas, mas estas possuem a esperança persistente de que o canto possa reverter esta situação: a guerra cinde, dolorosamente, e o canto – como veremos, alegremente – convida ao encontro amoroso.

 

Os cantares de amigo de Natália Correia: das queixas contra o Estado Novo ao êxtase do encontro com a Revolução dos Cravos”, Tatiana Picosque. In: Convergência Lusíada, v. 25 n. 31, 2014. Dossiê: Poesia Portuguesa dos Anos 40 à Contemporaneidade.



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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/06/nesta.praia.amigas.de.onde.pras.cruzadas.aspx]