sábado, 16 de novembro de 2013

QUEM POLUIU, QUEM RASGOU OS MEUS LENÇÓIS DE LINHO


 
        
          
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou ao caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, - tábua tosca, de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.
         
Camilo Pessanha, Clepsidra e outros poemasColeção Poesia
Edições Ática, 1973
          
           
              
ANÁLISE TEXTUAL
             
O soneto “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, de Camilo Pessanhatem-se prestado a duas análises textuais: uma é biografista; a outra pretende colar-se à escola simbolista. Cabe ao leitor, no seu olhar crítico e esclarecido, fazer a síntese de ambas no que de proveitoso cada uma tem para oferecer.
Nesta segunda leitura, “o poeta quer afirmar um processo violento de destruição, e nada há que se lhe possa opor. Assim, a temática será a recusa do passado que a mãe simboliza, e a abertura para a morte. Discurso sobre a absoluta negatividade a que o eu está sujeito pela sua própria condição”. (Cf. Aula Viva. Português A 12º Ano. 1º Volume, João Augusto da Fonseca Guerra e José Augusto da Silva Vieira, Porto, Porto Editora, 1999, p. 309)
“Tudo está marcado pelo signo do frio, da ausência. A mãe não é mais do que umavirtualidade (Alma da minha mãe), pelo que a sua ação primordial não se pode fazer sentir. Os imperativos lançados à mãe pelo sujeito resume-se a uma recusa: recusa damemória que ela é, recusa do passado/vida que ela simboliza, ou seja, abertura plena para a morte, agora que o próprio lugar da morte, onde se pretendia recuperar a pureza original (meus tão castos lençóis), foi violado.” (Clepsidra de Camilo Pessanha, 2ª ed. Teresa Coelho Lopes, Lisboa, Editorial Comunicação, 1983)
          
              
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A angústia ‑ A elegia da infância: a primeira morte e o impossível regresso a casa.
No soneto que inaugura com o verso “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, Camilo Pessanha convoca a voz da mãe, retornada da cova, para exprimir na primeira pessoa do singular a dor sentida perante as ruínas da casa materna, agora desabitada – rasgados e poluídos os lençóis de linho onde a mãe esperou morrer, arrancados os girassóis ao seu jardim exíguo, quebrada a mesa de cear, “tosca tábua de pinho”, espalhada a lenha e entornado o vinho – o que confere à visitação um pathos fora do comum. Ao intercetar com a voz do filho, nos dois tercetos finais, a voz fantasmática da mãe, o sujeito enunciador chama de volta a si o pathos que havia transferido na primeira parte do soneto. É já com a voz do filho que insta ao repouso definitivo da mãe na sepultura, permitindo em simultâneo o repouso da memória afetiva filial: “Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais./ Alma da minha mãe… Não andes mais à neve,/ De noite a mendigar às portas dos casais”. A única reunião permitida é, pois, não com a terra mater mas com a terra morte.
Rui Carlos Morais Lage, A elegia portuguesa nos séculos XX e XXI - Perda, luto e desengano. 
PortoFaculdade de Letras da Universidade do Porto2010, pp. 249-250.
           
              
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Comentário do poema
Esta poesia, que Camilo Pessanha escreveu quando lhe morreu a mãe, divide-se em duas partes - as duas quadras e os dois tercetos. Na primeira parte, há uma seriação de sensações produzidas por factos desastrosos: lençóis rasgados, girassóis lançados no caminho, mesa de cear partida, lenha espalhada pela cozinha, vinho entornado. Todas estas sensações, uma vez relacionadas, constituem um símbolo, uma "palavra nova" a exprimir o que vai na alma do poeta: a dor de ficar sem aquilo que para ele era a intimidade, o aconchego, o carinho, o sustento; a dor que um filho sente ao perder sua mãe. É como se, faltando ela, o filho não tivesse mais onde se deitar (lençóis), não encontrasse mais qualquer coisa bela para ver (flores do jardim), não tivesse onde poder comer (mesa) e que beber com alegria (vinho), como se não tivesse mais onde se aquecer (lenha).
Se fosse possível entender este poema em estilo parnasiano, o significado expresso pelo significante (palavras) equivaleria a um assalto a uma residência e mais nada. Praticamente, um caso para a polícia resolver. Mas, como estamos em contacto com um poema simbolista, o significado primeiro (o assalto) transforma-se num significado segundo, numa "palavra" nova que nos leva à mensagem do poeta, ou seja, à desolação sentida após a morte da mãe.
Repare-se como os elementos que constituem o símbolo são de uma pureza nativa: lençóis de linho, altos girassóis, mesa de cear, lenha, vinho. Mas foram desviados para o lado oposto dessa pureza, foram torpemente violados: poluídos os lençóis, arrancados os girassóis, quebrada a mesa, espalhada a lenha, entornado o vinho. Atente-se na propriedade vocabular. E também na insistência nos símbolos da dor em frases curtas e soluçantes. As imagens, no seu evoluir antitético pureza - violação, são de um impressionismo rico e sugestivo.
Na segunda parte, o poeta dirige-se à mãe em termos diretos. Ainda aqui há um conjunto de sensações aptas a criar um símbolo: noite, vento, a casa em ruínas, a neve – tudo o que há de mais frio e desolador. Então a mãe que se deixe estar na cova, que não mendigue mais. Alude com certeza ao desgosto perene da mulher que o deu à luz, a qual nunca passou de amante e criada de seu pai, apesar de toda a vida suspirar pelo casamento.
António Barreiros, História da Literatura, vol. II, pág. 353, 9ª ed., Editora Pax, 1982.
             
             
Atenção: esta interpretação é biografista.
Segundo a perspetiva simbolista, tal como no poema “Madalena”, não se pode ver aqui a sua mãe física, mas sim o que uma mãe significa: segurança, amparo e origem.                    


henn kim, OUR TIME

       

Subjetividade, sentimento e conhecimento na Poesia de Camilo Pessanha:
A melancolia e os seus objetos.
Se uma das fontes, remotas, da tristeza será uma violência fundamental, inerente ao ato de existir1, no caso de Pessanha, acresce a experiência de uma violentação dos seus afetos mais caros, um desmoronar do refúgio que o poderia abrigar das tempestades da vida, a vivência do luto, da irreparável perda de um ser querido. É no extraordinário soneto «Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho» que essa dor lacerante tem a expressão mais aguda.
Sendo o único poema de Clepsidra em que se refere explicitamente um familiar, «Ó minha pobre mãe!», é também o poema mais passível de uma leitura biografista, psicanalítica ou de análise temática, desenvolvida por Jean-Paul Weber. Antonio Quadros informa que, em Macau, em 1895 ou 1896, ao saber que a sua mãe estava a morrer, Pessanha jorrou a sua dor neste «desgarrador» soneto. Se foram essas as circunstâncias da produção do poema, está explicada a intensidade emotiva que o ensopa. Contudo, convém assinalar que o soneto conhece seis versões (Cf. Mário Garcia, «Sobre Camilo Pessanha», in Brotéria, vol. 122, n.º 4, 1986, p. 389). De qualquer modo a interpretação de Quadros cola demasiado o significado do texto as figuras parentais, quando assevera que o eu devastado, profanado, das duas primeiras quadras «e a mãe» e o «quem», o agente da destruição, que no poema não e identificado, e o pai (que ele aliás respeitava, mas que naquele momento de desespero inculpa) (Quadros, «Introdução biográfica e crítica», in Obras de Camilo Pessanha, Clepsidra e poemas dispersos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1988, pp. 34-35). A leitura psicanalítica é demasiado óbvia para nos cansarmos a sugerila. A «análise temática» deste poema poderia proceder, ora considerando a situação da infância (o estigma da ilegitimidade, «o poço de miséria e dor que foi sempre a casa do meu pai») do poeta, subindo para a sua expressão textual neste poema (é a démarche progressiva), ora partindo do texto, dos seus motivos, para remontar à infância (a démarche regressiva) (Cf. Carlos Reis, Técnicas de Análise Textual, Almedina, Coimbra, 1981, pp. 90-91).
A extensão e a profundidade dessa violentação são dadas, formalmente, por uma série de processos reiterativos2, e pela escolha de situações e objetos constitutivos do espaço vital, íntimo do sujeito que a fúria dessa violentação vandalizou e destruiu. Justamente, a crueldade dessa destruição ressalta da pureza dos rituais e objetos que violentou. O seu absurdo avulta por não se identificar a causa, a entidade responsável pela destruição («Quem destruiu…?»).
Os dois primeiros versos entrelaçam infância e morte. Os mesmos lençóis que o envolveram docemente na infância deveriam ser os que lhe serviriam de sudário na morte.
Podese detetar aqui o muito humano desejo de morrer na casa, ou na terra ou na pátria que nos viu nascer, desejo tornado impossível. Os castos lençóis de linho contêm as ideias de pureza e aconchego, visadas respetivamente pelo «poluiu» e pelo «rasgou». Do leito, o espaço da intimidade distendese para o jardim, cujo simbolismo de paraíso é realçado pela luminosidade implícita dos altos girassóis, planta que é imagem do sol. O carácter exíguo do jardim reforça o seu valor íntimo, de recinto protetor, e não é acidental que os girassóis sejam altos (altura, verticalidade, vontade, confiança, alegria de viver…).
Tínhamos notado já em «Caminho II» o encanto rústico do ato de sentarse à mesa, de departir o mesmo vinho… Esses gestos que de tão simples, familiares e repetidos se tornam rituais que nos seguram à vida são aqui retomados e alargados. A nota rústica – a «tábua tosca de pinho», a lenha, o vinho, que, acidulado e fresco, pode indicar o vinho característico do Minho – expande as ideias de pureza, autenticidade e aconchego da primeira quadra. A brutalidade animalesca, desumana, da destruição é destacada pelos parênteses, ao jeito de comentário indignado: «(que furor cruel e simiesco)».
No segundo bloco do soneto, a dor ganha acentos ainda mais patéticos. Em situações trágicas ou repulsivas, dizse por vezes: ainda bem que fulano de tal já cá não está para ver isto… Um sentimento similar, mas mais complicado, anima estes tercetos. Pois à mãe que estaria morta, sepultada, é dada uma existência espectral, de «alma penada». Está e não está morta.
Paradoxalmente, ao apelo a não se erguer da cova seguese o imperativo de «Olha a noite, olha o vento» e, subentendese, olha «Em ruína a casa nova…» e a vida a extinguirse no teu extremoso filho. Esta desolação devastadora imprime mais força ao triplo imperativo negativo que forma o último terceto. O cenário virtual da segunda parte do soneto é espectral e lúgubre. Cova, noite, o vento, propiciador dos espíritos, a «ruína», o vagabundear, a neve, o mendigar…
A origem dos fantasmas, dos espectros, das «almas do outro mundo», da sua aparição e da sua ação é atribuída, regularmente, a um nó existencial não resolvido, um crime hediondo a que não foi feita justiça, um segredo inconfessável que emerge fantasmaticamente (vejase O Espectro de Henry James), um amor que não foi realizado pela intervenção despótica de terceiros (lembrese neste ponto O Monte dos Vendavais), o luto não resolvido, etc.
Os espectros são normalmente reificações da reposição da justiça, ou de tormentos da consciência (as Erínias que profligam o criminoso que escapou à justiça humana…) ou da teimosia de não aceitar a ausência, por morte, de seres queridos.
O vagabundear, o mendigar da «alma da mãe» podem, assim, significar a errância de uma alma a que não se fez justiça, o prolongamento alémtúmulo de um sofrimento inocente que continua a fazer ressoar a dor de um destino infeliz. As figuras da casa (nova, mas que decaiu inexplicavelmente em ruína), do lar, da mãe (cuja infelicidade ecoa, transfigurada em alma errante, tornada mais dilacerante por essa metamorfose) escalonam a muralha afetiva que protegeria o sujeito das forças da desagregação. Desfeitas essas defesas…
Mas antes de incluir o tempo e a morte, palavraschave do dicionário da melancolia, no imaginário melancólico de Pessanha, de modo a alargar o campo fenoménico da melancolia, faremos uma citação do estudo já mencionado: «a melancolia da tradição médicofilosófica apresentase como um «pacote» de relações, atitudes e condutas, substâncias e objetos, frequentemente marcados por uma forte ambivalência (imobilidade ou errância, claustrofobia ou claustrofilia). Puros predicados qualitativos ou espaciais (negro, pesanteur, em baixo..) encontramse associados a substâncias reputadas «saturnianas» (terra, pedra, lama e neve, chuva e tempestade, minerais e metais, chumbo, ferro, ouro…) e a objetos reputados melancólicos (espelho, escada, chaves, forno de alquimista, instrumentos de geómetra e de pedreiro, compasso, livro, tudo objetos presentes na «Melencolia» de Dürer; lugares e objetos funerários e todo o ritual da morte, ausentes da gravura de Dürer)» Pierre Dufour, (“«Les Fleurs Du Mal», Dictionnaire de Mélancolie”, in Littérature, Nº 72, 1988, p. 37).
À luz deste vasto leque de sintomas, podemos detetar alguns desses traços do imaginário melancólico na poesia de Pessanha (a qual, dada a sua escassez, por um lado, não oferece uma matéria extensa que multiplique os elementos repetitivos de conteúdo que formem a base ampla de um tema; por outro, tem a vantagem, na sua concisão vigorosa, de tornar um, dois exemplos, a base segura para extrapolações temáticas):
 a tendência espiritual para a queda, que toma as formas do espojarse na lama (soneto «Madalena») ou da fuga subterrânea («Inscrição», «Na cadeia», «Porque o melhor, enfim,») e da fascinação apavorada pelo abismo («o abismo não sondeis»);
 a chuva como lacrimae rerum e simultaneamente como reflexo e projeção das lágrimas, da melancolia íntima do sujeito em «Água Morrente», que une este tópico, explicitamente respigado de Verlaine, com o tema anterior: o sujeito desdobrase, apelando para os seus olhos se fixarem e depois se identificarem, numa gradação descendente, com «a água morrente», gerúndio que associa água e morte: ao imperativo «vede» a água «cair, sempre cair», verbo que «quase» coincide com morrer«Cair, quase morrer…», sucedem os fusionantes «afogaivos», «Caí e derramaivos»3; o poder de dissolução da chuva, aliada da morte, é invocado num poema de circunstância, «Em um retrato»: a terra fresca que «háde inumar» o sujeito é potenciada na sua função obliteradora pela chuva abundante  «E depois de já muito ter chovido,/ Quando a erva alastrar com o olvido»;
 a fascinação com a mineralização da vida, com os restos da vida consumada, acontecida, o seu retorno à sua fase larvar e mineral (o verme da «Inscrição», «Seixinhos da mais alva porcelana,/ Conchinhas tenuemente corderosa (…) róseas unhinhas que a maré partira…/ dentinhos que o vaivém desengastara…/ Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…», em «Singra o navio.»). Expandindo a nota de Óscar Lopes acerca da menção dos «vestígios mineralizados», relíquias desvitalizadas de afogamentos, de naufrágios, PerroneMoisés vê no mundo poético de Pessanha o plasma do fracasso visto, menos na sua eclosão, no fragor do seu despedaçar, do que no «depois» dos seus remanescentes, concisamente apontados: «Assim que se entra no universo poético de Pessanha, percebemos logo que chegamos demasiado tarde. Já tudo aconteceu, e tudo acabou mal. A sua poesia é um constatar de sinistro. Este universo de depois do desastre constituise de restos e indícios, tanto mais pungentes quanto o poeta nolos apresenta de maneira sucinta e contida. Traços evanescentes de um caminho percorrido sobre a areia, sulco de um barco que acabou de passar» (Cit. in Gustavo Rubim, A Inscrição Espectral: Poética do Vestígio em Camilo Pessanha, Dissertação de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998, p. 34).
O momento do derrame melancólico não é o do deflagrar da tragédia, chocante, violento, mas o momento posterior, o das suas consequências e da sua perdurabilidade em ruínas e vestígios. Alguns poemas iniciamse, marcando explicitamente esse momento reflexivo posterior (por exemplo, «Depois da luta e depois da conquista», «Eis quanto resta do idílio acabado», «Quando voltei encontrei os meus passos», «Depois das bodas de oiro», «Parei a cogitar», «Porque o melhor, enfim»). A fixação nos vestígios do que foi, na decomposição do orgânico no inorgânico tem como contrapólo, remontando o fluxo da vida, o deterse na fase embrionária, latente da vida: as cores represadas no limbo e os abortos parados, embebidos no líquido morto de vasos de laboratório no «Poema final». A vida, a existência é um breve e doloroso intervalo entre extremidades onde mora o não ser;
 a efemeridade das flores, a secreção de morte que libertam com o desmanchar da sua beleza (as «Anémonas, hidrângeas,/ Silindras, – flores tão nossas amigas!», decoração conivente com o idílio, desaparecidas e substituídas pelas urtigas, planta agreste, repulsiva, em «Eis quanto resta do idílio acabado»; a «Dália a desfolharse – o seu mole sorriso…», o seu deperecimento suave, levemente irónico, levemente resignado, em «Foi um dia de inúteis agonias.»; «Putrescina:  Flor de lilás./ Cadaverina: Branca flor do espinheiro!», as flores despidas das suas galas pela ação purificadora do sal e do sol, reduzidas à podridão, em «Roteiro da Vida»);
 a errância, o errar sem saber ou não querer saber para onde se vai, o «não sei por onde vou, sei que não vou por aí», o estar bem onde não se está («Que eu desde a partida,/ Não sei aonde vou.», «Nem sei de onde venho»4).
Outras manifestações de melancolia, não contempladas na citação: a perturbação do crepúsculo, que pode reunirse ao tema da queda (o ocaso do sol, a imobilidade pensativa dessa hora, a agonia da luz e a iminência da chegada da noite), as paisagens de inverno; a atração pelas ruínas.
Também a melancolia segregada pelos espetáculos teatrais. De facto, a frase The show must go on pressupõe o vazio, o abatimento do show realizado, terminado, de que importa reemergir. «Vai declamando um cómico defunto./ Uma plateia ri, perdidamente,/ Do bom jarreta… E há um odor no ambiente/ a cripta e a pó,  do anacrónico assunto.»  a gravação pelo fonógrafo, eco de um evento desvanecido, reforça a inanidade do riso convulsivo da multidão e a vanidade da performance do cómico; daí o salto associativo para o bolor das coisas irremediavelmente passadas, sepultadas pelo tempo, no seu odor sui generis; aflorase aqui o velho tema barroco do teatro, vazio postiço da vida? Pour cause, a forma de autodeprecação escolhida em «Madalena» é a do «abominável cómico», daquele a quem lhe afivelaram uma máscara que o torna outro que não ele próprio, obrigado pela vulnerabilidade do seu carácter fraco a mascararse ad populum.
O derruir das ilusões, o amargor do desengano. Com efeito, no temperamento melancólico coexistem as sacudidelas reativas à estagnação (a fase maníaca, eufórica do maníacodepressivo, em que se podem radicar os referidos «élans héroïques», inchados pela megalomania5) e o rememorar ora mais resignado, ora mais dolorido da sua inutilidade: este balancear do espírito é detetável em muitos versos da Clepsidra: «O barro que em quimera modelaste/ Quebrousete nas mãos. Viça uma flor…/ Põeslhe o dedo, eila murcha sobre a haste…»  a implícita comparação ao gesto criador de Adão, a escolha do símbolo da flor, como concreção do vigor e da beleza, marcam mais impressivamente a crueldade da ilusão que não se prolonga, que não concede mais tempo ao engano, desfeita pelo mero contacto físico, como que amaldiçoado, do sujeito.
Essa celeridade do desfazer da ilusão é ainda mais sinteticamente expressa no verso «Castelos doidos! Tão cedo caístes!...», evocando a imagem dos castelos as metáforas lexicalizadas dos «castelos de areia» ou dos «castelos no ar»; um oriental diria «tigres de papel», segundo os clichés sedimentados na sua cultura.
João Paulo Barros de Almeida,Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, p. 107-114.
           
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(1) Certa psicanálise desenvolveu a ideia de que, marcando o nascimento uma separação, todo o ser humano carrega por toda a vida a fratura desse momento traumático, procurando, inconscientemente, o retorno à paz uterina (regressus ad uterum), à supressão da individualidade.
(2) No artigo já referido de Stephen Reckert [«A fonoestilística de Camilo Pessanha», in Colóquio/Letras, nº 129/130, pp. 8796], a propósito de «Branco e Vermelho», o crítico chama a atenção para o facto de aspetos estilísticos desse poema fazerem lembrar a afirmação de Jakobson de que «à tous les niveaux de la langue l´essence, en poésie, de la technique réside en des retours réitérés». Esta observação é aplicável a outros poemas de Pessanha, como este.
(3) O cotejo com o «original» de Verlaine é realizado por Jacinto do Prado Coelho em «De Verlaine a Camilo Pessanha e a Fernando Pessoa», in Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976, pp. 209214. Ao mesmo nível de excelência na musicalidade, o poema de Pessanha, o que é influenciado, «é mais complexo, mais perturbante que o de Verlaine» (ibidem, p. 211). Na nossa opinião, não será mais complexo, mas é de certeza mais perturbante, porquanto a tristeza indefinida do «coeur» do sujeito do poema de Verlaine é envolvida, afagada pelo «bruit doux de la pluie», pelo «chant de la pluie», enquanto que no de Pessanha a chuva não canta, cai, é água morrente no seio da qual os «olhos» do sujeito são compelidos a «afogarse».
(4) Em carta a Carlos Amaro, salientada num post sriptum, o conhecido desabafo: «P. S. – Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca… Ir assim, a bordo de um navio, sem destino.» O último parágrafo desta carta merece também ser citado: «Veja como o destino varia. Nos últimos dias de Lisboa, o terror que verdadeiramente me oprimia era este mar morto da viagem, entre dois abismos tão distantes um do outro, e no fundo de cada um a minha alma perpetuamente agoniza.» (Camilo Pessanha,Contos, Crónicas, Cartas escolhidas e Textos de temática chinesa, Organização e Notas de António Quadros, Lisboa, Publicações Europa América, 1988, p. 95).
(5) «Timbre: rompante, a megalomania…», em «Tatuagens complicadas do meu peito». De notar o adjetivo, o particípio presente «rompante», que quadrando com «megalomania» acerta no cariz compulsivo desses safanões da inércia depressiva, dessa descarga de energias represadas pelo marasmo precedente da fase depressiva (estas considerações pressupõem a equivalência conceitual entre «melancolia» e «psicose maníacodepressiva», doença de foro psiquiátrico, caracterizada pelo ritmo bipolar de depressão e expansão… A depressão, contudo, é subdividida pela vulgata da psiquiatria contemporânea em diversas subespécies: depressão melancólica e depressão nevrótica, endógena e exógena, unipolar e bipolar, etc. Arriscámos a hipótese da «depressão bipolar», sem de todo pretender ler a poesia de Pessanha como uma sintomática de um caso clínico, devido a esses sobressaltos de ação, às arremetidas de uma vontade prima facie heroica que latejam em alguns dos seus poemas).
            
        
LEITURA METÓDICA DO POEMA
          
I – Resolva o questionário proposto no manual escolar Ser em Português 12 A.Volume 1, coord. Artur Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999, p. 193.
              
II – Elabore um comentário global do poema, incluindo o desenvolvimento dos seguintes tópicos:
• significado das interrogações, relativas a um desconhecido agente de dor e destruição;
• identificação dos objetos da destruição e seu valor simbólico;
• relação entre estes objetos, a casa, o eu (repara no 3º verso do 1º terceto);
• relação entre os arquétipos casa/mãe;
• interpretação dos pedidos expressos nos tercetos;
• representação da morte como suprema desproteção, suprema solidão (anulada a possibilidade de surgir como entidade protetora);
• o retrato da condição humana.

(Plural 12º Ano-A, Elisa C. Pinto et alii, Lisboa Editora, 1999, p. 168)
           
              
             
              
VÍDEO-POEMA
          
Camilo Pessanha, "Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” (1895-6).
Dito por Luísa Cruz na antologia / CD Ao Longe os Barcos de Flores (Assírio & Alvim, 2004).
A estratégia narrativa do vídeo - feito de imagens noturnas captadas na aldeia de Monsanto - procura criar no público o mesmo efeito surpresa que o poeta magistralmente conseguiu. Só na segunda parte do poema se compreende a razão de ser do plano de abertura e do fluir das imagens que lhe sucedem.
Cine Povero
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Estúdio Raposa, apresenta outros vídeo-poemas de Camilo Pessanha, disponíveis aqui.

              
              
               
INTERTEXTUALIDADE
              

VELHO POETA EM MAUS LENÇÓIS
        
Quem poluiu…CAMILO PESSANHA
                     
Esses lençóis onde dormi com ele,
onde temi morrer acompanhado

‑ quem os limpa, quem os põe de lavado?
Mesmo depois de rasgados, conservam

a treva do seu corpo luminoso.
O corpo dele igual ao grito rouco

de falcão na nobreza do voar,
ou de águia – na doce mira do rapto.

Nesses lençóis – onde dormiu um deus:
onde temi morrer na sombra de outrem.

Sombra longa de faca que foi círio
vermelho numa tenda toda branca.

Esses lençóis onde dormi com ele,
ninguém devolve em branco do vermelho

de círio não pequeno de tamanho
nem parco de consolo na memória.

Castos lençóis – aí dormiu um deus:
luz vermelha de círio nesse branco.

Círio não triste embora já pretérito
‑ nem parco de beleza agora frio.

Quanto tempo padecer meio louco,
em lençóis embrulhado tal fantasma

do pai do Hamlet, noutra Dinamarca
‑ sem mulher nem filho, apenas morto?
           
José António Almeida, Arco da porta do marLisboa, &etc, 2013

              
               
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
       
 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).

  

  A Biblioteca Nacional de Portugal, colocou na web o espólio de Camilo Pessanha, que permite o acesso a informações sobre a vida e a obra do autor, a manuscritos e a correspondência.
          

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/11/16/quem.poluiu.aspx] 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

QUANDO ME DEREM POR MORTA, DE LÁGRIMAS NEM UMA PINGA. (Natália Correia)



          
            
          








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O LIVRO DOS MORTOS

Quando me derem por morta
de lágrimas nem uma pinga:
um trevo de quatro folhas
tenho debaixo da língua.

Está em regra o passaporte.
Venha o Limite da idade.
Não me chorem, não é morte
é só invisibilidade.

Túnel, poço ou espiral
suga a alma. Fica o corpo.
Vai-se a cópia sideral
e isso não é estar morto.

É assombro e estranhez
por não ser o céu ainda.
Há que morrer outra vez.
Demanda de Deus não finda.

Já noutro modo de ser,
Eterna, é contudo breve
a vida! Sempre a ascender
fica cada vez mais leve.

Até que – é esse o endereço –
já não é precisa a alma.
Unido o fim ao começo
Espírito encontra a morada.

De lembrar cessa o sentido
onde está tudo na Glória.
Por isso pelo caminho
foi-se perdendo a memória.

Por favor, em funeral
não me ponham pranto à volta.
Isso do choro faz mal
a quem do peso se solta.

Aqui parecendo cadáver,
indemne à carne, não morta,
já em frente vou na nave
que eu tenho um trevo na boca.

E se a sombra me queimarem,
bem hajam. Não sou católica.
Mas se missa me rezarem
pela alma, não me importa.
Natália Correia, O Dilúvio e a PombaLisboa, Edições Dom Quixote, 1979
       
       
       
O livro de poemas O Dilúvio e a Pomba está dividido em três partes: a primeira com o título “Onde o mar, com paredes de vidro, rodeia o centro inviolável: a Ilha”; a segunda “A Árvore da Vida”; e a terceira “O Espírito é tão real como uma árvore”. É nesta que se situa o poema “O Livro dos Mortos” cujos versos testemunham a índole da autora, a sua crença e a afirmação do seu caráter.
       
No poema apela-se ao conhecimento oculto: não se deve chorar pela pessoa que partiu, primeiro porque a morte não existe, morrer “é só invisibilidade”, a pessoa continua. Aliás, já o Fernando Pessoa dizia no Cancioneiro: “A morte é a curva da estrada / morrer é só não ser visto.” Segundo, quando ela diz “Não me chorem” (v. 7), “não me ponham pranto à volta. / Isso de choro faz mal / a quem do peso se solta” (vv. 30-32) refere-se, na interpretação de António Macedo, à grande perturbação que se provoca à pessoa que partiu, pois esta precisa de estar três dias e meio numa posição horizontal, numa dimensão suprafísica, em estado descanso para proceder a um certo tipo de trabalho antes de partir para outros túneis mais luminosos e elevados ‑ “Sempre a ascender”, diz a poeta no verso 19. Desde a primeira estrofe, com “um trevo de quatro folhas […] debaixo da língua” (clara referência simbólica ao costume grego decolocar uma moeda, chamada óbolo, sob a língua do cadáver, para pagar Caronte pela viagem)até à sexta estrofe, verifica-se as fases por que a poeta acredita vir a passar, uma vez ultrapassado o “Limite de idade.”
       
No livro Instruções Iniciáticas ‑ Ensaios Espirituais (Hugin Editores, 1999)António Macedo chama-a de “sacerdotisa tão pouco descoberta, ainda por encontrar, do enigmático «século XX português»”. E acrescenta, no documentário de 1999 “A Senhora da Rosa (Natália Correia)” realizado por Teresa Tomé para a RTP-Açores: “a Natália Correia era uma sacerdotisa de um sagrado que hoje as pessoas não entendem, porque não é um paganismo, não é um cristianismo… ou talvez seja um certo tipo de cristianismo. Ela tinha uma veneração muito grande pelo Espírito Santo.”
             
“Natália sentia que era chegada a era do Espírito, que deveria seguir-se à do Pai e à do Filho. Natália não era católica mas não desdenhava da religião pois escreveu num dos seus mais belos poemas [“O Livro dos Mortos”, vv. 38-40] que não desdenhava duma missa rezada por sua alma. Aliás, sempre me pareceu que o seu culto do esotérico era uma janela aberta onde buscou sem parar o mundo espiritual e tentou encontrar sempre as suas fontes últimas buscando a religião perfeita.” (Carlos Melo Bento, “Para uma biografia de Natália Correia: o Reino dos Transparentes2004-07-16)
         
“Afrodite Ressurrecta” é o poema que aparece na sequência de “O Livro dos Mortos”.
           
       
       
AFRODITE RESSURRECTA

Da espiritual roseira vos cito a Citereia
que nos braços de Adónis cobre a terra de flores.
Cereal e celeste. Não a Vénus sereia
que em tropos gregos passa por ter muitos amores.

A de leite colmada. De amor, a mama cheia.
Universal obreira de aromas e sabores,
que pelos argonautas, nos filtros de Medeia,
troca luas malignas por honestos lavores.

Da Grécia ao tredo Lácio degradada em Pandemos
em mirtos a resgato de cultos obscenos.
Do Espírito o plectro fere de novo a onda.

Venusta sai da concha e para todos brilha
em divas formas Deus. A carne é maravilha.
É-lhe devido o cisne. Mas sobretudo a pomba.
Natália Correia, O Dilúvio e a PombaLisboa, Edições Dom Quixote, 1979
            



Amigos da escritora libertam uma pomba branca, 
durante o funeral de Natália Correia, 
em Lisboa a 18 de Março de 1993.
   
            

       
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A saudosa Natália Correia, com a exuberância que lhe era peculiar, e como boa açoriana e simultaneamente sacerdotisa do ancestral-renovado culto feminino, não poucas vezes dissertou — pelo menos no «Botequim», tanto quanto me recordo, e lhe ouvi —, sobre a transcendência Paraclética do Espírito de Verdade de Deus, que ela insistia em designar por Espírita Santa!
       
Está certo: a Espírita Santa é a POMBA — que em hebraico se diz yonah e que a tradição hermética, fazendo tábua rasa das rigorosas pesquisas etimológico-científicas da Linguística, considera relacionada com a yin chinesa (princípio feminino, complementar do princípio masculino yang) e a yoni indiana (órgão sexual feminino, complementar do órgão sexual masculino linga). Trata-se duma «Cabala fonética» de que Fulcanelli foi um dos principais impulsionadores, e que, não obstante a sua rejeição por parte da linguística histórica, revela e torna «transparentes» os mais subtis e inesperados aspetos do REAL.
       
Vimos como a tradição helénica associava o polo feminino da Divindade à Terra e ao elemento Água, e como a tradição judaica associava o polo feminino da Divindade ao Céu e ao elemento Ar .
       
Por sua vez a tradição cristã, epítome e sequência das duas, congloba no polo feminino da Divindade os elementos Ar e Água, juntamente com o Céu e a Terra, do seguinte modo:
       
• Pomba  — Espírito Santo/Inspiração Paraclética: Ar (Mente Superior), e Céu; Virgem-Mãe —Associação complementar e indissolúvel entre o Pai Celestial e a Mãe Terrenal: Céu, e Terra;
• Sophia — Água (Coração, Desejos Sublimados), e Terra.
       
1. Pomba  — O primeiro aspeto  — POMBA  — surge pela primeira vez, no Novo Testamento, no exato momento do Batismo de Jesus, e simboliza o divino Espírito Santo, que João designa por «Paracleto». O simbolismo da pomba associado ao princípio feminino da Divindade já vem de longe, e perdurou: tanto o encontramos na antiga Mesopotâmia e na Ásia Menor, em que o Princípio Feminino visível e invisível, substância e essência, era reverenciado nos templos sob a forma duma pomba, tal como continua a figurar, muito mais tarde, como por exemplo num tratado gnóstico do século III d. C., Pistis Sophia, onde vemos logo nas primeiras linhas do capítulo 1 que «o Mistério anterior a todos os Mistérios é o Pai sob a forma duma Pomba». Lemos no capítulo 8 do Génesis como Noé enviou um corvo (símbolo da negra natureza de desejos) e uma pomba (símbolo do luminoso «corpo anímico») para saber se as terras já tinham secado após o dilúvio. O corvo limitou-se a voar para cá e para lá até que as águas secaram, mas a  pomba, à segunda tentativa, trouxe um raminho de oliveira (Génesis 8, 6 - 11). A oliveira, de tradição sagrada muito antiga —a oliveira e o azeite, atributos da deusa Atena, foram as suas dádivas sagradas à Ática  —, associa- se ao ministério de Cristo e ao bálsamo da cura pelo espírito. Um dos motivos decorativos das colunas da catedral de S. Pedro, em Roma, é uma pomba com um raminho de oliveira: — o Espírito Santo  com uma oferta de regeneração e cura. Este Espírito  — ru’ah —, manifestação do polo feminino da Divindade, conduz-nos ao segundo aspeto aludido acima:
       
2. Virgem/Mãe — Esse segundo aspeto  — VIRGEM/MÃE  —, recuperado desde muito cedo pela Igreja na sua Teologia Mariânica, é uma tónica recorrente num curioso manuscrito que o estudioso Edmond Bordeaux  Székely diz ter encontrado nos Arquivos secretos do Vaticano e que traduziu do original aramaico para francês (1928). A respetiva edição policopiada deu origem à versão inglesa que foi publicada em 1937, em Londres, com o título The Essene Gospel of Peace. A ideia de Virgem/Mãe surge nesse apócrifo naturalmente associada à Terra, alternadamente Virgem e Mãe, e embora o texto  — que é um longo discurso de Jesus em resposta a algumas questões que lhe são apresentadas pelo discípulos  — não deixe de se referir, com frequência, ao «Heavenly Father» (Pai Celestial), insiste muito mais na reverência, amor, fidelidade e veneração que se deve à «Earthly Mother» (Mãe Terrenal), que nos doou amorosamente tudo de quanto o nosso corpo é feito e tudo o que possui. Em dado passo diz Jesus:
       
«O vosso Pai Celestial é amor.
A vossa Mãe Terrenal é amor.
O Filho do Homem é amor.
       
É pelo amor que o Pai Celestial e a Mãe Terrenal e o Filho do Homem se tornam um. Porque o espírito do Filho do Homem foi criado do espírito do Pai Celestial, e o seu corpo, do corpo da Mãe Terrenal. Tornai-vos, pois, perfeitos, como são perfeitos o espírito do vosso Pai Celestial e o corpo da vossa Mãe Terrenal».
       
Registe- se a relevância atribuída ao AMOR que «torna UM» não só o Pai e o Filho («Eu e o Pai somos um»!) mas também a Mãe.
       
Não é só neste Evangelho essénio que o polo feminino da Divindade se identifica com a Mãe, incluso a própria Mãe mistérica de Jesus: outros manuscritos antigos também o atestam. Por exemplo, há um curioso indício transmitido pelo Evangelho dito dos Hebreus, usado por algumas comunidades iniciáticas cristãs como os Nazarenos e os Ebionitas, e do qual só restam fragmentos que nos foram conservados em citações feitas pelos Padres da Igreja. Supõe- se que tenha tido a sua origem nos princípios do século II d. C. Segundo o testemunho de Jerónimo (Dial. adversus pelagianos, III, 2) teria sido originalmente escrito em aramaico, e nele se afirma que o Espírito Santo, além de ser feminino — ru’ah em hebraico é feminino —, é, ainda por cima, a Mãe de Jesus!
       
«Há pouco a minha mãe, o Espírito Santo [gr. ‘agion pneuma] tomou me por um dos cabelos e levou-me ao monte sublime do Tabor…» (É um paralelo de Mateus 4, 1 e vem citado no Comentário ao Evangelho de João, de Orígenes: In Io. 2, 6).
       
Ou, noutra versão, que nos foi transmitida por Jerónimo no seu II Comentário sobre Miquéias (Comm. II in Mich.7, 6):
       
«Há pouco tomou-me a minha mãe, o Espírito Santo [lat. Sanctus Spiritus], por um dos meus cabelos…».
       
Jerónimo surpreende-se, pois a ser assim, «a alma, que é esposa do Verbo, tem por sogra o Espírito Santo»! («Et animam, quae sponsa sermonis est, habere socrum Sanctum Spiritum, qui apud Hebraeos genere dicitur feminino, ru’ah» — id., ibid.).
       
No Evangelho da Paz dos Essénios esta  ru’ah corresponde ao Espírito da Terra, perfeita e imaculada por todo o Amor que tem para doar.
       
No final do Livro Primeiro de  The Essene Gospel of Peace, Jesus ensina duas orações: uma, muito semelhante ao «Pai Nosso» que conhecemos, em veneração ao Pai Celestial; e outra em veneração à Mãe Terrenal e que é a seguinte:
       
«Mãe nossa que estás na Terra, santificado seja o teu nome. Venha a nós o teu reino e faça-se em nós a tua vontade, tal como em ti se faz. Tal como envias os teus anjos diariamente, envia-no-los a nós também. Perdoa os nossos pecados, tal como expiamos os pecados que cometemos contra ti. Não nos deixes cair na doença, mas liberta-nos de todo o mal, porque teus são a Terra, o corpo e a saúde. Ámen».
       
Eis-nos perante o mistério do Eterno Feminino corporizado na Terra Lucida, a Terra de Luz que um dia o ser humano reconstruirá (redescobrirá), redimido em Cristo, mediante o vínculo de fé na sagrada e irresistível união do Cristo e da Sophia.
       
Daqui passamos naturalmente ao terceiro aspeto referido acima:
       
3. Sophia  — O terceiro aspeto do polo feminino da Divindade na tradição mistérica cristã  — SOPHIA  — surge não só na continuidade do Antigo Testamento, sobretudo no Livro dos Provérbios e no Livro de Job, como vimos acima a propósito daHochmah («Sabedoria»), mas também num livro veterotestamentário que a tradição judaica considera apócrifo e que a tradição da Igreja aceitou como «deuterocanónico», redigido em grego cerca do ano 50 a. C.: o Livro da Sabedoria. Neste livro a Sabedoria personificada (Sophia) é tida como o agente da atividade divina no mundo, participando de certo modo da própria natureza divina. O livro foi composto como se o seu autor tivesse sido Salomão, que em dado passo diz:
       
«Rezei, e o entendimento foi - me dado; supliquei, e o Espírito da Sabedoria veio até mim. […] Amei-a mais do que à saúde ou à beleza, preferi-a à própria luz, porque o seu resplendor nunca fenece. Em sua companhia todos os bens vieram até mim, e as suas mãos trouxeram-me incalculáveis riquezas. De todas estas coisas me alegrei, porque foi a  Sabedoria  que as trouxe; mas eu ignorava ainda que ela fosse sua Mãe» (Sabedoria 7, 7.10- 12).
       
No tratado gnóstico a que fiz referência acima, Pistis Sophia, e que se supõe ter sido composto no século III d. C., Jesus ressuscitado faz revelações aos Seus discípulos sobre a queda e a redenção duma das emanações da Divindade, a  Sophia (ou PistisSophia: «Fé-Sabedoria»). Aqui a principal preocupação é saber quem finalmente será salvo. Os que se salvarem devem renunciar ao mundo e seguir a ética pura do amor e da compaixão, a fim de se identificarem com Jesus e se transformarem em raios da Luz Divina.
       
No Judaísmo  — sobretudo intertestamentário  — abundaram especulações filosófico-teológicas sobre a Sabedoria celestial (Hochmah, Sophia) uma entidade celeste ao lado de Deus que se apresenta à humanidade não só como mediadora da obra de criação mas também como mediadora do conhecimento de Deus. Ireneu Lugdunense, ou de Lião, apologeta e feroz anti - herético que floresceu na segunda metade do século II, resume o ponto de vista duma seita gnóstica do seu tempo observando que o homem-Jesus, nascido duma Virgem e o mais sábio, mais puro e mais justo de todos os seres humanos, foi escolhido para que, no momento do Batismo, nele descesse o Espírito  Crístico (o Cristo, o Ungido) acompanhado pela Sophia(«Sabedoria»), dando origem a Jesus - Cristo que a partir desse momento passou a fazer milagres, a curar, etc. (Adversus Haereses, I, 30, 12- 13).
       
No Novo Testamento, essa «Sabedoria de Deus» (Theoû Sophia) é-nos apresentada por Paulo do seguinte modo: «Sabedoria [gr.  Sophia], com efeito, falamos entre os iniciados [gr. teleiois]; não a sabedoria deste ciclo [gr. aiôn] nem dos príncipes deste ciclo condenados a perecer. Mas falamos antes da Sabedoria de Deu s em mistério [gr.  Theoû Sophia en mystêriô], a oculta, que Deus predestinou antes dos ciclos para glória nossa» (1 Coríntios 2, 6 - 7). A associação do princípio feminino  — Sophia  — ao Mistério da Iniciação é aqui acentuado por Paulo: quando ele usa o termo «mistério» não o faz no sentido eclesiástico e distanciador que a Igreja cunhou mais tarde, como por exemplo o «mistério» da Transubstanciação, mas no sentido de «mistérios iniciáticos» como era corrente no tempo de Paulo.
       
Por fim, a própria Igreja de Roma acabou por identificar a Virgem Maria, «Mãe de Deus», com a figura da Divina Sabedoria (Sophia), e, tal como na Cristologia mainstreamse descreve Jesus como uma «hipóstase» do Pai (um ente da mesma substância), também na Teologia mariológica acabou por prevalecer o conceito de que Maria tem a Sophia como sua «hipóstase»
                   
António de Macedo, “EU E O PAI SOMOS UM: O Eterno Feminino na Nova Religiosidade” in Artigos e ensaios
           
           




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/10/01/o.livro.dos.mortos.aspx]