terça-feira, 14 de junho de 2016

Cada palavra dita é a voz de um morto, Fernando Pessoa







Há um poema inédito de Pessoa num caderno de viagem


“Cada palavra dita é a voz de um morto” é o primeiro verso deste poema agora revelado pela Folha de S. Paulo, numa versão integral e limpa, num caderno de viagem do escritor e crítico José Osório de Castro Oliveira. 

Afinal, o “baú” de Fernando Pessoa continua a reservar-nos surpresas. Esta não saiu directamente da famosa arca do autor de Mensagem, antes saltou do outro lado do Atlântico, numa notícia revelada este sábado pela Folha de S. Paulo: um poema inédito de Pessoa foi encontrado num singular caderno de viagem vendido por um alfarrabista português ao bibliófilo (pessoano) e advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, autor de Fernando Pessoa - Uma quase-autobiografia (editado em 2012 em Portugal pela Porto Editora).
“Cada palavra dita é a voz de um morto” é o primeiro verso deste poema, de resto já compulsado na recolha feita por João Dionísio na edição de 2005 da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Poemas de Fernando Pessoa: 1915-1920. Só que a versão que agora veio a lume é anterior e substancialmente diferente da já publicada, e tudo leva a crer que é a versão definitiva do poeta. Foi escrita, aparentemente de uma só penada, em 1918 – tinha Pessoa 30 anos.
O “livro de autógrafos” em causa foi adquirido por Cavalcanti Filho, por uma soma não divulgada, junto de um alfarrabista, que não terá tido consciência da importância do seu conteúdo. Num caderno com capa de couro vermelho, e a inscrição, em letra desenhada, “No alto mar, a bordo do König Wilhelm II”, um adolescente de apenas 13 anos foi registando, ao longo de uma viagem entre o Brasil e Portugal, em 1913, algumas recordações dos seus companheiros de travessia. O referido jovem era José Osório de Castro Oliveira (1900-1964) – filho de Ana de Castro Osório (1872-1935), escritora, militante republicana e activista pelos direitos das mulheres –, que se tornaria depois um eminente jornalista, poeta e crítico literário – publicou, em 1922, um ensaio sobre Oliveira Martins e Eça de Queirós.
Na folha escrita por Fernando Pessoa, alguns anos depois da viagem de Castro Oliveira a bordo do König Wilhelm II, o poema em causa mantém os dois primeiros versos da versão até agora conhecida  “Cada palavra dita é a voz de um morto./ Aniquilou-se quem se não velou”  e, depois, dois outros versos. “Os demais foram reescritos – em alguns casos, alterando radicalmente o próprio sentido original do texto. Ou foram excluídos. Com numerosos acréscimos. Tudo a resultar em algo novo”, escreve José Paulo Cavalcanti Filho num texto publicado pela Folha de S. Paulo e que acompanha a notícia da descoberta e que será publicado em Portugal pelo JL- Jornal de Letras como explicou ao PÚBLICO José Paulo Cavalcanti Filho poremail. 
O autor da notícia, Maurício Meireles, avança que esta é “a única versão íntegra e clara do poema”, e infere daqui tratar-se da “versão final do texto” de Pessoa. A Folha de S. Paulo cita também os nomes de dois reputados pessoanos, Richard Zenith e Jerónimo Pizarro, que admitem a veracidade e ineditismo da descoberta.
“É a caligrafia de Pessoa, sim. Ele devia ter dois ou três rascunhos e, como tinha que deixar uma lembrança nesse caderno, pegou os papéis e registou uma versão mais limpa. A descoberta esclarece muito a situação do poema”, diz Pizarro ao jornal brasileiro.
No seu testemunho à Folha de S. Paulo, José Paulo Cavalcanti Filho – autor de Fernando Pessoa, uma quase-autobiografia (Porto Editora, 2012), e que neste ano adquiriu num leilão uma secretária e a máquina de escrever do poeta – reconstitui a história da viagem transatlântica de 1913 e as circunstâncias em que José Osório de Castro Oliveira reuniu os testemunhos de alguns dos passageiros do König Wilhelm II. (E explica que este foi o mesmo navio em que Pessoa chegou pela primeira vez a Lisboa, com a sua família, vindos de Durban, na África do Sul, em Setembro de 1901).
Entre os viajantes, além do autor dos heterónimos e outros passageiros anónimos, encontravam-se também três figuras que haveriam de deixar marca na geração do Orpheu e do modernismo português, como Luiz de Montalvor, director do 1.º número desta revista, Augusto Ferreira Gomes, colaborador do 3.º número, que já não chegou a sair do prelo, e Luiz Pedro Almeida, advogado e amigo de Pessoa.
Já sobre o poema de Pessoa, que ocupa a última página do “livro de autógrafos” de José Osório de Castro Oliveira – que depois se tornaria amigo próximo de Pessoa , Cavalcanti Filho vê no seu primeiro verso um reflexo das inúmeras perdas familiares que o poeta já sofrera nessa data, lembrando, de resto, que “o tema da morte é recorrente” na sua obra. E cita, como exemplo, este verso de Álvaro de Campos: “A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida” .

O poema
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velouQuem na voz, não em si, viveu absorto.Se ser Homem é pouco, e grande sóEm dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.




Notícia corrigida às 21h22: o poema não foi escrito na travessia do Atlântico, em 1913, mas em 1918



Bibliófilo encontra versão inédita de poema de Fernando Pessoa

MAURÍCIO MEIRELES
COLUNISTA DA FOLHA

Pessoa, em 1929, em foto do livro 'Fernando Pessoa. Uma Fotobiografia', de Maria José de Lancastre

A crise econômica em Portugal, que começou em 2008, fez surgir nos alfarrabistas –os sebos lusitanos– raridades de um tempo perdido. Documentos e livros raros de colecionadores, quase sempre anônimos e precisando de dinheiro, brotaram da poeira dos séculos.

Quem pode faz a festa nessas horas. Foi o caso do bibliófilo e advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho. No ano passado, ele recebeu a ligação de um alfarrabista português, que queria vender um "livro de autógrafos" com um manuscrito de Fernando Pessoa na última página.

Alfarrabista é bicho esperto, mas às vezes se engana. É verdade que nem Cavalcanti se deu conta, mas a poesia no caderno, que começa com "Cada palavra dita é a voz de um morto" –aparentemente conhecida–, é uma versão inédita de texto do qual até hoje só se conheciam rascunhos.

Um dos rascunhos do poema no acervo de Pessoa


Também é a única versão íntegra e clara do poema. Para se ter ideia, mesmo quem não é especialista na caligrafia de Pessoa –que escrevia garranchos, às vezes bêbado– consegue lê-la. Conclui-se, do documento, que o escritor registrou ali a versão final do texto. Nem o acervo do autor, guardado na Biblioteca Nacional de Portugal, tem a poesia.

O caderno ainda guarda uma história inusitada. Ele pertenceu a o intelectual português José Osório de Castro e Oliveira. Aos 13 anos, em 1913, viajando do Rio a Lisboa, ele pedia para os passageiros escreverem o que quisessem.

O navio König Wilhelm 2º, no qual estava Osório, era o mesmo em que Fernando Pessoa foi da África do Sul para Lisboa em 1901.

Jeca, como sua mãe lhe chamava, cresceu e continuou a usar o caderno. Em 1918, pediu a Pessoa para escrever algo –e ganhou o poema.

"Nem o dono do caderno nem o alfarrabista sabiam que o poema era inédito. Senão, teria custado três vezes mais", conta Cavalcanti, que não revela o valor pago. Antes disso, ele –que tem uma das maiores coleções privadas de Pessoa do mundo – já havia comprado a mesa e a escrivaninha do poeta por 95 mil euros (hoje R$ 365 mil).

O poema inédito encontrado agora
Nem o bibliófilo se deu conta do que tinha em mãos. Ele diz que foi depois de uma conversa com Richard Zenith, um dos principais estudiosos da obra pessoana no mundo, que resolveu checar.

A fonte de consulta nessas horas são as edições críticas com a obra de Pessoa que a Casa da Moeda lusitana tem publicado nas últimas décadas. Quem olha o volume organizado por João Dionísio, em 2005, com poemas de 1915 a 1920, pode atestar que a versão no documento é inédita –e sem lacunas, como as conhecidas até hoje.

Por via das dúvidas, a Folha pediu a Jerónimo Pizarro, pesquisador da Universidade de Los Andes, na Colômbia, e líder de uma nova geração de estudiosos da obra do poeta, para avaliar uma imagem do documento.

"É a caligrafia de Pessoa sim. Ele devia ter dois ou três rascunhos e, como tinha que deixar uma lembrança nesse caderno, pegou os papéis e registrou uma versão mais limpa. A descoberta esclarece muito a situação do poema", afirma Pizarro.

*

O poema

Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.


A primeira página do caderno de autógrafos do colecionador José Paulo Cavalcanti


Poema inédito de Fernando Pessoa é encontrado em caderneta

Revelação é feita por biógrafo na véspera do dia de aniversário do poeta




POR JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

A descoberta de um inédito. Quem escreve sobre algum autor, durante longo tempo, sempre sonha encontrar um inédito dele. Pelo só prazer de ter feito a descoberta. Ou por imaginar que o destino conspirou para que assim tenha sido. Este caso de agora é curioso. Trata-se de um caderno de autógrafos que vai trocando de mãos. Sem que nenhum dos seus anteriores proprietários se tenha dado conta de que o texto de Pessoa, ali escrito, era mesmo um inédito. Talvez porque, em 2005, algo que seria um como que rascunho dele tenha sido publicado em Poemas de Fernando Pessoa, 1915-1920, numa edição de João Dionísio para a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em Portugal. Pensava-se, era mesmo natural, que seria o tal poema sem título que começa pelo verso Cada palavra dita é a voz de um morto. Mas desse rascunho, publicado antes, Pessoa manterá só os dois primeiros versos.
E outros dois, em seguida. Os demais foram reescritos – em alguns casos, alterando radicalmente o próprio sentido original do texto. Ou foram excluídos. Com numerosos acréscimos. Tudo a resultar em algo novo. Para compreender como isso aconteceu, é preciso O caderno de couro vermelho. Em 29 de janeiro de 1913, o jovem José Osório de Castro e Oliveira está No alto mar, a bordo do König Wilhelm II – assim, com letra desenhada de quem acabara de fazer 13 anos, escreve na primeira página daquele caderno.
Presente de sua mãe, Ana de Castro Osório (pioneira na luta pela igualdade dos sexos, em Portugal), por ocasião do aniversário de seu filho Jeca (apelido pela qual o chama), ocorrido há dois dias. Como recordação de sua viagem de regresso à formosa Terra da Pátria, escreve ela. O pai, Paulino e Oliveira, poeta e ativo membro do Partido Republicano, depois de frustrada rebelião em que participou, está residindo no Brasil (onde morreria pouco depois, de tuberculose, em 13 de março de 1914). Apenas mãe e filho viajam, de volta a Portugal.
No alto dessa primeira página está um selo do Deutsches Reich (com carimbo da Linie Hamburg Südamerika, de 30 de janeiro de 1913). E pouco abaixo, escrito à mão, Livro de Autógrafos. No canto inferior esquerdo há hoje, colado, um ex-libris com desenho de castelo cristão medieval com quatro torres e a inscrição, numa bandeira, Força na Paz.
Colada posteriormente, tem-se a impressão. Dado refletir sentimento comum no país a partir da Primeira Guerra, sobretudo. Marca pessoal do José Osório, talvez (a conferir). Seja como for, era mesmo algo então natural, dado ser o ex-librismo usado com frequência no século XIX/princípios do século XX.
Em consulta ao Serviço do Correio Imperial Alemão, se vê que essa companhia transatlântica usava dois grandes navios na rota América do Sul (Buenos Aires, Montevidéu, Rio de Janeiro) – Europa (Lisboa, Hamburgo). O König Friedrich August e o dito König Wilhelm II. A imprensa de Lisboa anunciou em 1º de fevereiro de 1913, um sábado, que este último estava no porto. Vinha do Rio. E seguiria, depois, na direção da Alemanha. Ali, nas gares marítimas de Alcântara, desceram José Osório e sua mãe.
Curioso é que a bordo desse mesmo König Wilhelm II Fernando Pessoa, em férias sabáticas do padrasto, veio pela primeira vez de Durban para Lisboa. Malhas que o Império tece!, disse n’O menino de sua mãe. O jornal O Século de 14 de setembro de 1901 (pág. 4) faz constar: No navio alemão König, vieram de Durban o cônsul [João Miguel dos Santos] Rosa e 3 filhos – que seriam Pessoa (com 13 anos), a irmã Teca (com 5) e o irmão Luiz (com 2). Faltaram, nessa relação, a mãe de Pessoa, dona Maria Magdalena Pinheiro Nogueira; a ama Paciência; e também, para serem enterrados em Portugal, os ossos (ou talvez fossem as cinzas) de uma irmã morta de Pessoa, Magdalena Henriqueta.
Anotações. O jovem José Osório começa, então, a colecionar depoimentos de viajantes daquele navio. Quase todos desconhecidos. Uma argentina, R. (mais sobrenome ilegível), o chama de simpático portuguesito (29 de janeiro de 1913). Outra, Maria Lia Lobo, de simpático compañero (31 de janeiro de 1913). Um argentino, J. Auber, escreve conselhos si tu veux devenir um bonito rapaz (31 de janeiro de 1913). Há mais, no caderno, instigante coincidência. Uma anotação, de 1º de fevereiro de 1913, dirigida Ao meu sobrinho adoptivo José Osório. Assinada por Manuela Nogueira. Uma homônima da sobrinha verdadeira de Pessoa, autora bem conhecida em Portugal. Inquirida sobre esse fato, declarou dona Manuela Nogueira jamais ter ouvido falar de alguém que tivesse o seu mesmo nome. Fica o mistério. Como ensina uma das Regras da Vida de Pessoa, Felizes aqueles para quem o mistério se resume em Padre, Filho e Espírito Santo. Deles é a felicidade.
O menino cresce. Nascido em Setúbal (27 de janeiro de 1900), ainda cedo José Osório se destaca como jornalista, crítico literário e ficcionista. Mais tarde se tornaria escritor de renome, com prefácios usualmente assinados por seu irmão João de Castro Osório. Primeiro ensaio foi Oliveira Martins e Eça de Queiroz (1922). Depois, mais dez livros. Inclusive, editado no próprio ano de sua morte (Lisboa, 3 de dezembro de 1964), História breve da literatura brasileira. Em 1917, já com 17 anos, dá início a publicações literárias nas páginas do jornal A capital. A partir dos anos 1930, torna-se um divulgador da literatura cabo-verdiana e defensor da aproximação entre Portugal e Brasil. Casado com a escritora Raquel Bastos, em 1930, sua filha Isabel (Maria Bastos Osório) de Castro (e Oliveira) foi atriz de sucesso, com vários prêmios no teatro e na televisão, tendo participado em cerca de 50 filmes.
Novas anotações. A partir de 1915, José Osório decide aproximar-se das letras. E usa seu caderno para colher mais depoimentos. Como, sem data, o de Carmem de Burgos (e Segui, Almería, 1867 – Madrid, 1932), que discorre sobre o interesse pela arte. Carmem – jornalista, escritora e ativista dos direitos da mulher espanhola – era, certamente, próxima da mãe de José Osório, Ana Castro. (Artur Ernesto de Santa) Cruz Magalhães (Lisboa, 1864-1928) deixa (também sem data) enigmática frase – Ser bom é saber sofrer.
Talvez uma reflexão sobre sua própria vida. Cruz Magalhães, com numerosos livros publicados, é responsável (sem colaboração do governo) pelo magnífico Museu Bordalo Pinheiro, instalado num anexo de sua residência – na Rua Oriental do Campo 28 de Maio (atual Campo Grande), em Lisboa. E veio a morrer, pouco depois, sem jamais ter tido o reconhecimento que imaginava merecer. Contando-se ainda, nessa relação, três nomes importantes do “Primeiro Modernismo” – que nasceu com a geração da revista Orpheu. A Luiz de Montalvor. Em 1917, Montalvor escreve, no caderno, sobre tempos anteriores à Restauração Portuguesa. E finda com essa afirmação: Filippe II foi o Rembrandt do claro-escuro da Morte... Luiz da Silva Ramos, seu nome verdadeiro, foi assessor de Bernardino (Luís) Machado (Guimarães), Ministro Plenipotenciário de Portugal (em 1912-1915) no Rio de Janeiro, cidade em que nasceu. O mesmo Bernardino que, depois, foi Presidente da República por duas vezes – em 1915/1917 e 1925/1926. Um carioca Presidente de Portugal... Pessoa, que tinha opiniões críticas sobre nosso país (E tu Brasil,“república irmã”, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir – assim disse no Ultimatum), deve ter se divertido com isso. Montalvor, que dirigiu (foi, também, responsável pela introdução) o primeiro número da revista Orpheu, depois dirigiria a revista Centauro. E seria responsável, juntamente com João Gaspar Simões, pela edição das Obras Completas de Pessoa, pela Editora Ática, sete anos depois da morte do amigo – por ele definido como O Ícaro de um sonho. Mais tarde (2 de março de 1947), em gravíssima crise financeira e com problemas familiares, lança-se com seu carro no Tejo. Junto com mulher e filho.
Augusto Ferreira Gomes. Em maio de 1917, Gomes deixa no livro seu poema Hydromel, que começa pelo verso Meu elmo já não brilha em tardes de parada. Augusto Ferreira (de Oliveira Bogalho) Gomes foi administrador das minas do Porto de Mós, jornalista, especialista em artes gráficas e também poeta que escreveu para as revistas Orpheu 3 (que nunca seria editada), Contemporânea e Athena (dirigida por Pessoa). Seu livro Quinto Império teve prefácio escrito por Pessoa. Acabaram se aproximando a partir do interesse de ambos pelo misticismo. Ou pela crença comum na Utopia do Quinto Império. E continuaram amigos, em Lisboa, inclusive depois que Gomes passou a ter relações mais próximas com o primeiro ministro António de Oliveira Salazar. Enquanto Pessoa, ao tomar as dores da Maçonaria, escrevia poemas (censurados) como Liberdade (em 16.3.1935), dizendo que Mais que isto/ É Jesus Cristo/ Que não sabia nada de finanças – sutil crítica àquele que um dia foi professor de Ciências da Finanças, em Coimbra. Ou esse (um dos três escritos em 29 de março de 1935, com título único de Salazar), assinado pelo heterônimo Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência – nome inspirado em discurso de Salazar, na entrega dos prêmios (em 21 de fevereiro de 1935) num concurso em que Mensagem ganhou o Prêmio Antero de Quental para poesias curtas:
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, com os diabos!
Parece que já choveu.
Luiz Pedro Moitinho de Almeida era filho do patrão de Pessoa na Casa Moitinho, onde foi escrita a Tabacaria. Essa tabacaria, só para constar, era a Habaneza dos Retrozeiros – situada na esquina da Rua da Conceição (então dos Retrozeiros) 63/65 com a Rua da Prata 65. Onde hoje está a Pelaria Pampas, especializada em vender artigos de couro argentino. E não A Morgadinha (como consta na maioria dos textos portugueses), situada esta na Rua Silva Carvalho 13/15. Bem próxima do apartamento de Pessoa. O engano se deve aos versos Janelas do meu quarto/ Do meu quarto de um dos milhões do mundo... Algo mesmo natural, posto que seria das janelas desse quarto que saudava o amigo íntimo (Joaquim) Esteves, à porta daquela tabacaria, em conversa com seu proprietário (Manuel Alves Rodrigues). Mas se trata de algo impossível. Porque o quarto em que dormia Pessoa na Rua Coelho da Rocha 16 (em Campo de Ourique), para evitar o frio responsável por suas frequentes crises de gripe, nunca teve janelas. Como confirmaram sua sobrinha Manuela Nogueira (que ocupava o quarto da frente, aquele com janelas) e António Manassés (filho do barbeiro de Pessoa – que acompanhava o pai quase todos os dias àquele quarto, para a barba).
E nem poderia, mesmo. Porque dita A Morgadinha seria constituída só em 3 de junho de 1958 (registro 32.082 na Conservatória do Registro Comercial). Enquanto o poema foi escrito bem antes, em 1928 (publicado, em junho de 1933, no número 39 da revista Presença). Voltando a Luiz Pedro, é dele o depoimento de que O Augusto Ferreira Gomes deixou-me a impressão de ser o melhor amigo de Pessoa – ou, pelo menos, aquele com quem Pessoa mais frequentemente privava.
Augusto participaria, também, no estranho episódio do suicídio do mago inglês Aleister Crowley. Nascido Edward Alexander Crowley, em criança cuspia na água benta e martirizava moscas para desafiar Deus. Consta que matou um indígena, no Oriente, para sentir o prazer de gosto para ele até então desconhecido. Um místico e charlatão que chegou a ser considerado, pelos jornais britânicos, o pior homem da Inglaterra. Crowley veio a Portugal, em 2 de setembro de 1930, para se encontrar com Pessoa – quando estava era em fuga dos credores pela falência da sua editora, a Mandrake Press. E ter-se- ia, segundo o Diário de Notícias de Lisboa (27 de setembro), suicidado no Mata-cães de Cascais. O mesmo Augusto (ligado ao jornal), em divertida trama com a participação de Pessoa, declarou ter encontrado, no local do (suposto) suicídio, uma cigarreira que seria do Mago (na verdade emprestada, para a encenação, pelo cunhado de Pessoa, Caetano Dias – que a comprara em Zanzibar). E um bilhete, em papel timbrado, do primeiro dos hotéis em que ficou (o L’Europe). Escrito por códigos e assinado Tu Li Yu. Quando Crowley, em 23 de setembro, atravessava placidamente a fronteira de Vilar Formoso, na direção da Alemanha – onde já estava, à espera, sua amante (de 19 anos) Hanni Larissa Jaeger.
O poema de Fernando Pessoa. A última página do caderno foi escrita por Pessoa. Ele e José Osório foram bons amigos, pela vida. Ficaram na Arca (de Pessoa) cópias de duas cartas que lhe escreveu. Uma de 14 de maio de 1932, em que Pessoa promete-lhe artigo sobre Goethe. E outra, sem data (mas seguramente de 1932), respondendo pergunta de José Osório: Quais foram os livros que o banharam numa mais intensa atmosfera de energia moral, de generosidade, de grandeza de alma, de idealismo? Pessoa diz terem sido, Em minha infância, e primeira adolescência... Pickwick Papers, de Dickens... Em minha segunda adolescência,... Shakespeare e Milton, assim como acessoriamente, aqueles poetas românticos ingleses... talvez Shelley, aquele com cuja inspiração mais convivi. E, no que posso chamar de terceira adolescência a... Dégénérescence, de Nordau. Findando a carta com indicação, escrita por Pessoa, de que O paradoxo é meu: sou eu. Sem mais notícias da relação entre os dois. Sabe-se, apenas, que José Osório não foi ao enterro de Pessoa (em 2 de dezembro de 1935, no Cemitério dos Prazeres).
Cada palavra dita é a voz de um morto, assim começa o poema. Difícil imaginar em que pensava, quando escreveu o verso. Talvez se lembrasse da já vasta legião de perdas que o assustavam: Os fantasmas de meus mortos eus, como definiu em The mad fiddler. O pai morre tuberculoso, em Lisboa, quando tem apenas cinco anos (1893). O irmão Jorge (1894), também tuberculoso, sem ter um ano de vida. A avó materna, Magdalena Pinheiro Nogueira (1896), na Ilha Terceira. O tio Manuel Gualdino da Cunha (1898), em Pedrouços. Duas irmãs – Magdalena Henriqueta (1901), em Durban; e Maria Clara (1906), em Lisboa. A querida avó paterna Dionísia (1907), que sofria de “loucura rotativa”, no hospício de Rilhafoles. A mãe do padrasto, dona Henriqueta Margarida Rodrigues (1909), numa casa de saúde em Belas. A tia-avó Maria e a tia-avó Adelaide (1911), em Lisboa. O amigo Sampaio Bruno (1915), em Lisboa – o mesmo que, para Pessoa, morreu logo que morreu. A tia-avó Rita (1916), em Pedrouços. E, finalmente, o querido Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 – Paris, 1916), sua mais sólida e duradoura amizade. A Pessoa deixou bilhete, quando se suicidou no Hotel de Nice (hoje des Artistes), na zona do Butte Montmartre, em 26 de abril:
Um grande, grande abraço do seu pobre Mário de Sá Carneiro. Pessoa lhe dedica poema (Sá-Carneiro) em que diz Éramos só um.
O tema de morte é recorrente, na obra de Pessoa. Alguns exemplos, só para constar. A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida! (Passagem das horas, Álvaro de Campos). Agora que estou quase na morte vejo tudo já claro (Dois excertos de ode, A.C.). Não sentem o que há de morte em toda a partida./ Do mistério em toda chegada,/ De horrível em todo o novo (Nuvens, A.C.). Sou já o morto futuro,/ Só um sonho me liga a mim –/ O sonho atrasado e obscuro/ De que eu devera ser – muro/ Do meu deserto jardim (O Andaime, Fernando Pessoa).
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços/ E chama-me teu filho (Abdicação, F.P.). Primeira Veladora: Por que é que se morre?/ Segunda Veladora: Talvez por não se sonhar o bastante (O marinheiro, F.P.). Muitos outros. Como, agora se vê, está nesse poema inédito. Superior. À altura do melhor Pessoa. E que segue, aqui, como prova de devoção.
Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou,
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou;
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.
19.IX.1918.

* José Paulo Cavalcanti Filho é autor de “Fernando Pessoa, uma quase autobiografia” (Record).


O escritor Fernando Pessoa.


O mais belo autógrafo de Fernando Pessoa

Um poema do escritor português é descoberto na última página do diário de um intelectual


No baú de Fernando Pessoa não cabe tudo de Fernando Pessoa. Um poema escrito em 1918, quando o escritor tinha 30 anos, foi descoberto no Brasil, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Como muitas vezes acontece com as histórias do escritor, o breve poema interessa mais por suas circunstâncias do que pelo texto literário, já publicado, embora em uma versão, como pode ser verificado agora, menos definida.
O advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti, maior colecionador de objetos e textos de Pessoa, recebeu de um antiquário uma oferta com um diário de viagens que, em sua última página, incluía um poema de Pessoa. Cavalcanti, autor de Fernando Pessoa, Uma Quase Autobiografia (Editora Record, 2011), o adquiriu para sua coleção sem avaliar a transcendência do poema e se a letra era ou não do genial escritor.
Cada palavra dita é a voz de um morto”, começa Pessoa. “A verdade é que esse poema é como um sinal do destino, um tiro na consciência”, diz Antonio Sáez Delgado, professor da Universidade de Évora e especialista nas obras de Pessoa.
Em 1913, com 13 anos, o futuro intelectual português José Osório de Castro e Oliveira estava viajando no transatlântico König Wilhelm II, do Rio de Janeiro a Lisboa. Para se distrair durante a travessia, pedia aos viajantes que escrevessem em em seu livro de autógrafos. Era 1913, mas a última página, escrita à mão por Pessoa, data de 1918.
Naqueles tempos, os mares não eram atravessados por muitos navios; de fato, em 1901, Pessoa havia embarcado no mesmo König Wilhelm II para se deslocar da África do Sul a Portugal. Por isso, esse barco e os tempos mais tranquilos tornaram possível que o caderno reunisse depoimentos de vários anos. Também não eram frequentes reuniões de intelectuais, de modo que Osório e Pessoa coincidiram em muitas delas, descobriram que haviam viajado juntos no König e acabaram se tornando bons amigos.
Sáez acrescenta uma coincidência: “Osório era filho de Ana de Castro, republicana e feminista, e um dos contatos mais próximos em Lisboa de Carmen de Burgos, cujo pseudônimo era Colombine, e de Ramón Gómez de la Serna. Na verdade, Colombine também aparece no caderno. Carmen de Burgos publicou uma série de artigos em 1920 e 1921 na revistaCosmópolis, de Madri, dedicados à nova literatura portuguesa e escreve, em As Escritoras, de 1921, sobre Ana de Castro Osório. Um novo elo que coloca Pessoa e os escritores espanhóis no mesmo contexto”.
Desvendada a história do livro de autógrafos, resta saber a importância literária. Joaquín Pizarro, autor da versão mais recente de O Livro do Desassossego, organizado em ordem cronológica, confirma a autenticidade do texto e da caligrafia, mas esclarece que não é inédito.
O poema foi publicado pela primeira vez em 2005, pela Casa da Moeda, emVolume de Poesia 1915-1920, que compila 300 poemas. “É uma nova versão, diferente, mais completa, que resolve problemas de leitura, e isso para mim é importante”, destaca Pizarro, que está em Lisboa para dar um seminário na fundação do escritor. “Há três ou quatro versões, mas este verso é mais bonito, mais definitivo.”
Os primeiros dois versos do texto descoberto são iguais aos já publicados, mas os 10 restantes sofreram uma grande mutação, ao ponto de alterar o sentido geral do poema.
Pizarro afirma que não era raro Pessoa escrever em objetos de outras pessoas. “Por isso utilizava muito os livros de autógrafos. Já temos dois ou três casos, como o livro de assinaturas de Moutinho-Almeida, onde trabalhou, ou em bilhetes com os quais pagava suas águas-ardentes nos bares.”
O colombiano é um dos grandes especialistas em pessoalogia, atualizando edições com base em descobertas nesse baú de originais de Pessoa, que parece infinito. Pizarro revolucionou a pesquisa sobre o escritor ao organizar seus textos de forma cronológica, e não por assunto ou pseudoautores. Nesta semana, Pizarro apresenta nas livrarias de Lisboa sua versão de Obra Completa de Alberto Caeiro, um dos heterônimos nos quais Pessoa se transfigurava.
“Já vejo a descoberta com outra perspectiva”, disse Pizarro, “porque ainda há milhares de inéditos”. “Seria possível publicar um por dia; mas este é interessante por pertencer a uma época em que Pessoa escrevia muito.”
Pizarro anuncia mais novidades sobre Pessoa: “Haverá mais inéditos. A família ainda tem muito material; nem tudo foi leiloado em 2008; embora recentemente tenha doado 80 volumes, estimo que ainda existam mais 800, e alguns estão sendo vendidos por debaixo do pano”.

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

sexta-feira, 10 de junho de 2016

biblioteca camoniana ou glosa a mote próprio (Fernando Martinho Guimarães)


Seus olhos, Garrett
, ilustração de Marta Madureira, 2012



Quando meus olhos teus olhos olharam
E o meu rosto no teu rosto pousou
Todo o sonho que os sonhos ousaram
Logo se desvaneceram no que sonhou

Nada nesta vida assento merece
Tudo nesta vida é ousio fugaz
Nada fica e tudo esmorece
Tudo passa e não satisfaz

Nada é certo e tudo é incerto
Assim gira o que da vida pensamos
Querendo segurar o que segurar não podemos
Que tudo é incerto é o que de certo temos

E mais não é e para pouco serve
O que de certo temos no incerto
Desta vida o incerto leve como certo

O desconcerto deste mundo
É já desacerto no meu lembrar
No concerto incerto de sonhar
O que por certo tomei no teu olhar


Fernando Martinho Guimarães
Ponta Delgada, 2016-06-10


Ao desconcerto do mundo, Camões, ilustração de Marta Madureira, 2012

domingo, 29 de maio de 2016

Emanuel Jorge Botelho (entrevista)


Emanuel Jorge Botelho, Correio dos Açores, 2016-05-29

NOSSA GENTE (63)
Emanuel Jorge Botelho tem 65 anos e passou o dia da “Revolução dos Cravos” em Lisboa onde, nas redondezas era dos poucos que tinha televisão e viu a sua casa encher-se de gente, muitos até que não conhecia, para estarem a par das notícias. Confessa que foi “um dia inesquecível” e que quem o viveu “nunca mais dele se esquece”. É escritor e foi professor; ainda se lembra do tempo em que o professor era uma pessoa respeitada, quer pelos alunos quer pelos pais dos mesmos.

De onde é natural?
Sou natural da Matriz de Ponta Delgada. Tive uma vida muito normal. Fui para a escola primária ainda no tempo da escola primária no Campo de São Francisco, a Escola de São José. Depois acabei a primária na Escola da Vitória e fiz os exames de admissão como se fazia na altura ao liceu e à antiga Escola Industrial. Fiquei no Liceu durante 10 anos, por razões que não importa aqui pormenorizar, mas acabou por me sair caro porque quando foi para ir para a Universidade estava “tapado” e à mínima falha ia para a guerra.
Mas tinha um amor muito grande aqui, o amor da minha vida, e não queria deixar e queria acompanhá-la sempre.
Tive uma infância muito feliz, brinquei muito num sítio que adorava brincar que foi no Largo 2 de Março, que hoje em dia é um terreno vazio, triste e solitário. Mas era um sítio com uma alegria imensa na cidade, tinha uma vivacidade imensa, tinha comércio, era uma zona muito bonita da cidade. Hoje em dia já não.
Brincava-se na rua...
Brincava-se na rua. A rua era como se fosse a nossa casa, com um pão com manteiga dentro da algibeira. Brincava-se à vontade e não havia perigo nenhum. Creio que o meu filho, quando volto de Lisboa e passei a viver definitivamente na Avenida D. João III, ainda apanhou uns anos em que podia brincar na rua. Os vizinhos até tiravam o carro para os miúdos brincarem à bola.
Mas hoje em dia é tudo muito diferente. Já não há lugar para as crianças brincarem e também não sei se as crianças querem brincar na rua, por- que estão muito metidos com as electrónicas.

Ponta Delgada - Portas da Cidade e Igreja Matriz ao fundo, por Juliana Correa, 2022-10-15



Quanto tempo esteve em Lisboa?
Estudei em Lisboa durante cinco anos, licenciei-me em Ciências Político-Sociais, e penso que regressei em 1975 ou 1976, foi no ano em que comecei a ter a minha vida profissional. Comecei a ser professor naquele ano.
Depois do curso regressei à minha terra, que era o meu sonho. Mal desembarquei em Lisboa pensei logo que era preciso que chegasse depressa o dia de voltar para a minha terra. Lisboa tem uma luz muito bonita mas a minha luz é outra, é uma luz verde.
E o amor que não queria deixar?
O amor foi comigo. A minha mulher já trabalhava e estive pouco tempo lá sozinho. Entretanto casámos e ela foi lá ter comigo e vivemos lá quatro anos. Mas queria regressar e aqui estou e praticamente não saí daqui desde aquela altura.
O que leccionou?
Foi professor de Português e dei Estudos Sociais, uma disciplina que depois desapareceu, e passei a dar História de Portugal.
Viveu então o 25 de Abril em Lisboa?
Estava em Lisboa. Lembro-me de tudo, é indescritível. Saí de casa nesse dia várias vezes, fui para a baixa duas ou três vezes. Cheguei a ter gente em casa que até perguntava à minha mulher, que se chama Lorena, quem era o senhor que estava sentado na nossa salinha, porque vivíamos num T1. Tínhamos comprado uma televisão de- pois de eu fazer uma cadeira que me estava a apo- quentar muito e a prenda para mim próprio e para a casa foi uma televisão. Comprámos a televisão e ali à volta nem toda a gente tinha televisão e como sabiam que eu tinha, houve muita gente açorianos e não só, mas que arrastavam outros, assistir aos comunicados na minha casa. Foi um dia inesquecível. Quem viveu nunca mais dele se esquece. Foi lindíssimo. Foi um dia do grande grito, foi um dia de chorar a gritar.
Quando regressou notou diferenças em Ponta Delgada?
A cidade tem vindo sempre a modificar-se mas naquela altura não notei grandes diferenças porque, naquela altura, vinha cá muitas vezes. Tinha essa possibilidade de vir cá sempre nas férias. As coisas, mesmo que se modificassem, passava por elas e não notei grandes diferenças.
Quando foi para Lisboa foi de barco ou já de avião?
Fui para lá de barco para levar coisas que o meu querido pai nos tinha feito. O meu pai gostava muito de trabalhar a madeira e fazia tudo. Já naquele tempo, a nossa cama, a minha secretária, as mesinhas de cabeceira, a estante principal, estava tudo dentro de um caixote em madeira feito pelo meu pai. Levámos mais algumas coisas que podíamos precisar. Fomos de barco, creio que no “Funchal”.
Depois foi sempre de avião. Mas ainda apanhei aquelas célebres viagens de Santa Maria em que no regresso tínhamos de nos levantar às 4 horas da manhã para ir apanhar a SATA para ir para Santa Maria e depois apanhar a TAP para Lisboa. Era uma coisa épica.
Apanhou muitos sustos?
O maior susto que apanhei na minha vida foi das poucas viagens que fiz, porque viajei mui- to pouco ou nada, à relativamente pouco tempo quando fiz 60 anos. Nunca tive problemas em andar de avião. Era épico porque era muita gente. As pessoas tinham reserva feita mas a reserva não aparecia, havia muitas complicações.
As novas tecnologias vieram facilitar essas coisas...
Para quem sabe mexer nelas, que não é o meu caso. Deve facilitar algumas coisas porque tem muito lixo mas tem de ter inevitavelmente coisas boas e aproveitáveis.
Falou no Largo 2 de Março que está modificado e a cidade de Ponta Delgada está muito mudada?
A cidade hoje em dia é uma cidade muito mais viva e no Verão é muito mais alegre. Mas há coisas das quais sinto a falta e que tenho pena que tenham sido substituídas. Por exemplo, a Avenida Marginal a partir de finais de Julho até princípios de Setembro tinha centenas de pessoas a conversar, sentadas no muro da Avenida, para trás e para a frente numa conversa saudável. Era muito interessante.
Hoje em dia metem-se ali para baixo, ao escuro a beber cerveja. São preferências mas para mim é estranho. Tenho pena que a parte de cima da Avenida Marginal não tivesse mantido a alegria que tinha e a quantidade de gente que para ali vinha conviver, famílias inteiras.
Por baixo tem outras funções, mas para mim é um poço escuro.
Com o aumento de turistas também deve voltar a encher-se a Avenida...
Eu fiquei assustado quando começou esta vaga de turistas, tive medo que a cidade não tivesse o sossego que mantinha, apesar de tudo. Compreendo perfeitamente que é preciso vir para cá gente, que é preciso dinamizar o comércio. Mas quando saem do centro da cidade e vão para os trilhos e visitar as paisagens, creio que tem de haver uma regulamentação muito apertada e tem de ser tudo muito vigiado porque há quem venha para ver e há quem venha para sujar tudo. De resto penso que é muito bom para a economia da ilha, se for tudo bem regulamentado e vigiado.

Laurissilva da ilha de São Miguel fotografada por Hugo Correia, 2022



Ainda lecciona? Nota diferenças entre os alunos que teve quando iniciou a profissão e os de agora?
Infelizmente, com um ‘I’ muito grande, tive que deixar a minha vida profissional por razões muito graves de saúde. Tive de sair mais cedo. Não me lembro do ano em que me reformei mas já nesse ano senti diferença nos alunos, havia uma rebeldia diferente, uma postura diferente e havia coisas que não entendia. Por exemplo, numa turma de 22 alunos, 70% escrevia na ficha que lhes damos para fazerem a sua identificação, na parte da profissão do pai escreviam trabalha. Perguntava em que trabalhava o pai e diziam que não sabiam. Nunca percebi como é que numa casa não se sabe onde é que o pai trabalha. Isso é sintoma que havia qualquer coisa na família que não estava a funcionar bem e creio que isto piorou. Não sei como é que está agora porque não tenho tido esse contacto mas penso que piorou porque o ambiente agora creio que deve ser mais complicado.
Pelo que me contam, também me parece que os pais estão demasiadamente dentro da escola. A escola é para os professores e os pais têm de fazer o seu trabalho de casa. Os pais fazem o seu trabalho e os professores fazem o seu e da complementaridade dos dois nasce a educação dos filhos. O professor ensina mas também educa e os pais têm, fundamentalmente, educar.
Antigamente via-se mais essa educação que vinha de casa?
Acho que sim. A educação que vinha de casa era outra, quando comecei a trabalhar. Por outro lado o professor tinha um estatuto diferente, respeitava-se o professor, o professor era bem tratado. Não era uma pessoa importante, mas era o professor do meu filho ou da minha filha. Era no tempo em que o professor tinha sempre razão. Se eu chegasse a casa e a minha mãe me dissesse que aquilo era vermelho e se o meu professor me tivesse dito que era preto. Eu dizia que era preto porque o professor tinha sempre razão, até mais do que os pais às vezes.
Agora não. Há muita reivindicação dos pais na escola, é um exagero.
Também há reivindicações da parte dos professores. Acha que são incompreendidos?
Por exemplo, uma aula de 90 minutos é muito complicado. É terrível, é preciso ter um espírito inventivo imenso para ter 22 ou 23 crianças permanentemente motivadas à nossa frente durante 90 minutos. Os horários são pesados para as crianças e é tudo muito complicado para os professores porque, pelo que me dizem, têm tanta reunião que quase gastavam mais tempo em reuniões do que a dar aulas. Depois ficavam quase sem tempo para preparara aulas porque as pessoas esquecem-se que os professores não deixam a escola na escola, levam a escola para casa e às vezes estão até às 2 ou 3 da manhã a preparar aulas para dar no dia seguinte às 8h30. Julgam que os professores era quem tinha bela vida. Qual bela vida? Experimentem ir para uma sala de aula desde as 8h30 até às 12h30 dar aulas seguidas. É extenuante. Para um professor sério, que quer dar as suas au- las bem dadas, é extenuante. Até digo que é uma profissão de risco.
Sempre quis ser professor?
Vim para cá com o curso de Ciências Político-sociais, ligado à Sociologia e tinha pensado vir para cá dar algo ligado à Sociologia para começar a minha vida. Não sabia ainda para onde iria. A minha grande vocação tinha sido fazer trabalhos de campo, mas isso depois passou-me e apareceram vagas para professor e concorri. Gostei tanto do primeiro ano que resolvi ver como funcionava o segundo, que funcionou bem, o terceiro também funcionou bem e quando dei por mim estava a fazer estágio, depois a orientar estágios e quando dei por mim estava a gostar da minha vida e decidi que não tinha que escolher mais nada. Gosto de ser professor. Tinha e, digo-o com muito orgulho, uma grande empatia com os alunos e uma relação muito boa com eles. Ainda hoje me cruzo com muitos e vêm ter comigo o que é uma alegria imensa. Deixei-me ficar e quando saí, para mim, foi um tormento.
Agora que já não está dedicado a essa tarefa, como ocupa os seus tempos livres?
Eu tenho que fazer, obrigatoriamente, uma vida muito serena e pacata. Leio muito, mas com a pouca vista que me resta já não leio o que lia. Tenho que seleccionar muito e há autores que já não leio porque prefiro ler outros e tenho de fazer uma selecção. Escrevo um bocado, publico um ou outro livro de vez em quando, principalmente no continente. Tento ter sempre a minha vida a trabalhar.
Tenho três netas, por quem tenho um amor infinito, e vou ajudando no que posso principalmente a minha companheira que é quem faz a parte principal na tarefa, mas vou-a acompanhando na tarefa de “avozar” que é um verbo que gosto de usar.


Fala-se muito na literatura açoriana que é diferente dos restantes autores portugueses. Como caracteriza a sua escrita?
A questão da literatura açoriana não vou entrar por aí porque creio que não se justifica. Há boa literatura e há má literatura. Prefiro falar numa literatura universal.
Sou um homem que, a partir de determinada altura, por influência de um grande professor que tive, o Dr. João Bernardo de Oliveira Rodrigues, a quem mostrei uma vez um papelinho com uma coisa que tinha escrito no liceu. Ele olhou para aquilo e disse-me: “oh Botelho, o papel é um tris- te e infeliz, aceita tudo. Põe isso numa gaveta e lê mais tarde”. Realmente mais tarde, quando reli mais tarde achei que ainda bem que ele me tinha dito aquilo.
Eu sou de escrever muito lento, se trabalhasse num jornal seria um desastre. Para escrever um poema às vezes levo três semanas porque às vezes um poema que tinha 40 versos, ficam dois e acaba por ser um poema muito longo, passado para um poema muito pequenino. O que me interessa é que fiquem as palavras essenciais, que é preciso dizer e nada que tire a atenção do leitor daquilo que quero dizer. Não é da mensagem porque não gosto da palavra, acho que não há mensagens nenhumas, é aquilo que está ali dito.
Tenho um cuidado muito grande com as palavras e sou muito obsessivo com a escrita, nesse sentido. É tudo feito minuciosamente, nem uma palavra a mais nem uma a menos.
Não acredita na influência do mar nos escritores açorianos?
Há palavras que já me irritam como a bruma e essas coisas assim. É natural que quem vive ao pé do mar, sem dar por isso, inclua o mar no que escreve. Mas isso é aqui como em qualquer parte em que há mar ou um rio.
Agora, falar em literatura especificamente açoriana não me repugna, mas penso que não há necessidade. A literatura é universal, não é preciso estar a compartimentá-la. O que interessa é que seja grande literatura.


Perfil: “Escrever sem pressa de chegar às massas”
Com várias obras publicadas, Emanuel Jorge Botelho diz-se obsessivo com a escrita e todas as palavras são minuciosamente escolhidas para completar os seus poemas.
Escolhe sempre pequenas editoras, que optam geralmente por tiragens não muito grandes dos livros que imprimem, e Emanuel Jorge Botelho diz- se satisfeito assim. Confessa que por vezes leva três semanas a escrever um poema que inicialmente se apresentava com 40 versos mas que rapidamente os vai cortando e onde restam apenas dois. Mas “o que me interessa é que fiquem as palavras essenciais, que é preciso dizer e nada que tire a atenção do leitor daquilo que quero dizer”. Não da mensagem que quer passar, porque “não gosto da palavra”, mas daquilo que ali escreve.
Considera que não há uma literatura especificamente açoriana, apesar de admitir que quem vive junto ao mar, “ou ao rio”, tenha mais tendência para escrever sobre essas temáticas com que está familiarizado. Prefere dividir a literatura em “boa” e “má”, do que a compartimentar por zonas geográficas.
Além da escrita, também se dedica à leitura mas devido a graves problemas de saúde teve de abrandar uma das suas actividades preferidas, que é ler. Agora tem de ser mais selectivo na escolha de autores e obras que lê, já que tem de “obrigatoriamente” levar uma vida “serena e pacata”.
Nada que o impeça de realizar outra das “tarefas” que mais gosto lhe dá que é: “avozar”, “um verbo que gosto de usar e que não sei se inventei”. Ou seja, ajudar “o amor da minha vida”, a esposa Lorena, a tratar das três netas “por quem tenho um amor infinito”. A tarefa não se assemelha fácil, a juntar às restantes tarefas literárias, mas Emanuel Jorge Bote- lho gosta de se manter ocupado e de “ter sempre a minha vida a trabalhar”.
Já quando era professor era assim, e por isso entende as actuais reivindicações dos colegas. Refere que manter 22 a 23 crianças minimamente atentas e entusiasmadas durante uma aula de 90 minutos pode ser extremamente cansativo, e que um professor nunca deixa a escola na escola pois é em casa que continua a preparar as aulas que vai dar no dia seguinte.
Os tempos em que o professor era uma pessoa respeitada quase que já estão ultrapassados e considera que “os pais estão demasiadamente dentro da escola”, quando devem unir esforços e complementar o trabalho dos professores e, “fundamentalmente”, educar.

“Nossa gente (63)”, Carla Dias, Correio dos Açores, 2016-05-29


***

Botelho, Emanuel Jorge Ferreira da Cruz

[N. Ponta Delgada, 11.8.1950] Licenciou-se em Ciências Político-Sociais e seguiu a carreira de professor. Contudo, tem-se distinguido como poeta e animador cultural. Faz parte do Grupo de Intervenção Cultural Açoriano (GICA) e fundou e dirigiu, conjuntamente com Eduardo Bettencourt Pinto, a revista *Aresta (1980-1984). Coordenou o suplemento literário ?Raiz?, do jornal Correio dos Açores. Muitos dos seus poemas são publicados em tiragens artesanais e imaginativas, tendo raramente publicado um livro tradicional.

Como poeta pode-se considerar de vanguarda, utilizando uma escrita provocadora e mergulhando nas estilísticas surrealistas. É admirador confesso de Mário Cesariny de Vasconcelos, de António Maria Lisboa e de Ângelo de Lima e um dos seus livros foi prefaciado por José Sebag.

Gravemente doente, diminuiu a sua capacidade de intervenção. 

J. G. Reis Leite (2002)

Obras principais. (1978), Consciências de Mim que a Ti Devo. 2ª ed., Ponta Delgada, ed. do autor [pref. de António Machado Pires]. (1978), Agite Antes de Usar. Ponta Delgada, ed. do autor [pref. de José Sebag]. (1981), Mas o território Não é o Mapa. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (1982), Cesuras. Lisboa, Imp. Nacional/Casa da Moeda. (1984), As Mãos, as Crinas. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (1988), Asas e Penas. Lisboa, & Etc. (1996), Perguntas Queimadas. Guimarães, Ed. Bumerangue.

 

Bibl. Carvalho, R. G. (1979), Antologia Poética dos Açores. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura: 443.

 

Fonte: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=101




Poderá também gostar de:

à Emanuel Jorge Botelho entrevistado por José Andrade, RTP, 02-04-2017. Disponível em RTP Play – Biblioteca Açoriana

à




sexta-feira, 27 de maio de 2016

Fala! Alexandre O'Neill



Ilustração de Marta Madureira, 2012.


F A L A !

Fala a sério e fala no gozo
fá-la p’la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.

Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado. Lisboa, Guimarães Editores, 1960. Coleção “Poesia e Verdade”.

Audição do poema dito por Luís Gaspar (Estúdio Raposa, 2012-01-08).
Linhas de leitura:
- No poema “Fala!” de Alexandre O’Neill, o sujeito poético dirige, anaforicamente, sucessivos apelos ao destinatário, para que este atue através da palavra e faça da sua capacidade de falar uma ação tão natural como a capacidade de andar (“Fala como se falar fosse andar”).
- Identifica as palavras homófonas da primeira estrofe do poema “Fala!” de Alexandre O’Neill e procede à sua transcrição fonética.
- Repara na variedade de sentidos que envolvem o verbo “falar” nas seguintes expressões idiomáticas:
  • “fala claro”: falar de forma percetível sem deixar dúvidas sobre o que se diz (falar claro);
  • “fala barato e fala caro”: falar muito e despropositadamente (fala-barato) / falar com registo cuidado (falar caro);
  • “Fala ao ouvido fala ao coração”: falar baixinho com alguém para que mais ninguém ouça (falar ao ouvido) / falar tentando despertar sentimentos de boa vontade em alguém (falar ao coração);
  • “Fala fininho e fala grosso”: falar com medo ou muito respeito (falar fininho) / falar de forma agressiva (falar grosso).

(Adaptado de P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão, Texto Editora, 2012)






A década de 60 pode ser considerada o momento mais produtivo da carreira literária do autor português. Neste período foram lançados livros de poesia, antologias de outros poetas e traduções. A partir da publicação de No reino da Dinamarca, a poesia de O’Neill assume um caráter político, recusando a ordem estabelecida por meio da provocação, da sátira, do escárnio, da blasfêmia e do divertimento poético. Suas poéticas são voltadas para a libertação do homem e da palavra.
[…] em Abandono vigiado, de 1960, uma contradição se faz evidenciar já no título, que constitui um paradoxo, e remete a um programa de escrita que é ao mesmo tempo abandonada e vigiada. Trata-se, aqui, da relação de Alexandre O’Neill com a poética surrealista e com uma poesia de outra ordem, voltada para a resistência política […].
[…]as atitudes do sujeito lírico são centradas na provocação e na blasfêmia, opondo-se ao amor e ao lirismo, assim como se nota o humor como meio de denúncia; a escrita é vista como uma forma de resistência. Essa postura poética não se centra apenas em uma perspectiva de crítica individual, mas, sim, na projeção de uma visão satírica de Portugal.

Graciele Batista Gonzaga, O pensar poético: Alexandre O’Neill em diálogo com João Cabral, Belo Horizonte, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2015