domingo, 26 de março de 2017

Bibliotecas pessoais




Casas de papel

Texto: José Mário Silva; fotos: João Lima. Expresso, 2017-03-25.

Escrevem, editam, traduzem. São intelectuais da palavra. Vivem rodeados de livros. E as suas bibliotecas pessoais, tão diferentes umas das outras, refletem o modo como pensam e veem o mundo

Diz-me como são os teus livros, como os organizas e dispões no espaço, dir-te-ei quem és. A biblioteca pessoal, construída ao longo de décadas, é quase sempre um espelho do seu proprietário. Na sua lógica interna ou na sua desordem (que esconde talvez padrões secretos), na amplitude dos temas ou no foco em áreas de interesse muito específicas, podemos ler sinais de quem as moldou. “Todas as bibliotecas são autobiográficas”, escreveu Alberto Manguel num livro — “A Biblioteca à Noite”, Tinta da China — que explora muitos modos e variantes da acumulação de livros ao longo da História humana. Cada uma à sua maneira, as cinco casas de papel que visitámos confirmam, com diferenças de grau e intensidade, a afirmação do escritor canadiano nascido em Buenos Aires (onde na juventude leu para Jorge Luis Borges no seu apartamento, entre os seus livros).


Corredor. Maria do Rosário Pedreira e Manuel Alberto Valente entre as estantes altíssimas nas quais as suas bibliotecas se foram misturando | JOÃO LIMA


A BIBLIOTECA ERUDITA


“Peço desculpa por estar de roupão, mas apanharam-me meio engripado”, diz António Mega Ferreira ao receber-nos num dos dias mais frios do ano. A sua casa é um contínuo de estantes, mas os livros não se ficam por esses redis de madeira. Estão em todo o lado: em cima das mesas, nas cadeiras, nos aparadores. Nenhuma superfície plana lhes escapa. Há também quadros, música clássica, cadernos, canetas. Antes de se mudar para este apartamento, a poucos minutos a pé do Príncipe Real, em Lisboa, o escritor vivia num duplex. “Era muito bonito e espaçoso. O problema é que tinha poucas paredes livres. E um bibliófilo precisa de paredes.”
Se a casa atual não tivesse muitas paredes, como é que acolheria os cerca de 20 mil volumes que Mega contabiliza, mais os que continuarão a chegar nos próximos anos? “Há quem entre numa livraria e traga de uma só vez uns trinta livros. Eu não. No máximo, compro uns cinco ou seis. Mas nunca resisto. Se vejo uma livraria, tenho de entrar. E se entro, saio sempre de lá com livros na mão.” Este impulso começou na infância. Aos 12 anos, comprou o primeiro livro com o dinheiro da mesada: “O Velho e o Mar”, de Hemingway, numa edição de bolso em francês. Antes disso, já usava autocolantes numerados para marcar os livros que lhe ofereciam, mas o esmero de bibliotecário esgotou-se ao fim dos primeiros cem. Alguns desses exemplares sobreviveram até hoje. Por exemplo, “Um Drama na Livonia”, de Jules Verne. Era o número 37.
Mega Ferreira considera-se bibliófilo no sentido estrito daquele que ama os livros. Os livros enquanto textos, obras feitas de palavras. “Não sou colecionador, nem ando atrás de edições raras, autografadas, ou encadernadas desta ou daquela maneira. Isso diz-me tudo muito pouco.” Mesmo sem fetichismos, reconhece ainda assim o prazer de manusear certas edições antigas. “Eu comprei o ‘Zorba’, do Kazantzakis, na altura em que o filme saiu. Uma edição da Ulisseia. Resolvi lê-lo há uns tempos. Verifiquei que na altura só tinha aberto umas dezenas de páginas. Gostei do toque do papel velho, amarelecido, um pouco áspero, bastante rude, características que têm tudo que ver com o espírito da obra.” Cabe então a cada livro esperar, na estante, pelo seu momento? “Exatamente. Eu acredito nisso. Pode levar décadas. O ‘Zorba’ esperou 50 anos.”






Futuro. Como não tem filhos Mega Ferreira tenciona dar a sua biblioteca aos três sobrinhos
JOÃO LIMA

Outro caso: “A Obra ao Negro”, de Marguerite Yourcenar. Mega leu-o da primeira vez na altura em que entrevistou a escritora belga (“uma experiência desagradável, porque ela era muito antipática”). Ao reabrir o livro, 35 anos depois, descobriu as marcas da primeira leitura: sublinhados, pequenas notas, páginas assinaladas. “Relendo, percebo porque as fiz na altura. Agora, como é óbvio, deixaria outras marcas. Aliás, deixei-as. Agrada-me muito a ideia do livro como palimpsesto das várias idades do leitor.” Com 68 anos, considera-se mais apto do que era aos 23. “Quanto mais lemos, melhor compreendemos o que viermos a ler depois. Há um efeito de acumulação, que ajuda a perceber a rede das influências, os padrões, os arquétipos narrativos. É como com as horas de voo. Só se acumularmos muitas seremos capazes de pilotar bem.”
A organização da biblioteca, um quebra-cabeças para tanta gente, nunca o preocupou por aí além. “Foi-se fazendo a si mesma, na adequação aos meus hábitos, às minhas necessidades.” Claramente erudita, mas intuitiva, funciona por núcleos. Há uma área dedicada a Cervantes, outra a Dante, outra ainda a Borges, uma estante quase inteira para Pessoa. Na sala principal estão os livros sobre a Antiguidade, os grandes clássicos, a História mundial, a música. No corredor, ficção estrangeira. No quarto de vestir, ficção lusófona. No de dormir, numa estante giratória, as biografias. Mas nada de muito rígido. Se olharmos bem, apercebemo-nos de que há muitos livros fora do sítio. “Acontecem muitos encontros inesperados, contaminações. Gosto disso.”
Mais do que com o presente da sua biblioteca, Mega Ferreira preocupa-se com o futuro. “É um drama. Não tenho filhos. Posso dá-la aos meus três sobrinhos, sim, desde que não lhes complique demasiado a vida. Ainda não sei bem o que fazer. Dá-me pena pensar que possa vir a ser despachada a peso.”

A BIBLIOTECA CONJUGAL


New Yorker Cartoon, by: Barbara Smaller

Quando dois grandes leitores se casam, o que acontece às respetivas bibliotecas? Somam-se? Fundem-se? Mantêm-se independentes? Maria do Rosário Pedreira e Manuel Alberto Valente tiveram de enfrentar estas questões. Ela: editora da LeYa, responsável pela descoberta e lançamento de uma geração de jovens ficcionistas portugueses, além de poeta, ficcionista e autora de letras para fados. Ele: diretor editorial da Porto Editora e poeta bissexto. Profissionalmente, trabalham em empresas rivais, mas isso nunca foi um problema: “Sabemos separar muito bem as águas.” Quanto aos livros de um e de outro, esses, resolveram juntá-los de vez.
A principal razão foi de ordem prática, porque o espaço é sempre finito, mesmo num apartamento de dimensões generosas e pé direito altíssimo, na Praça do Areeiro, em Lisboa. “Quando viemos ver a casa, havia três andares para alugar no prédio”, lembra Maria do Rosário. “As pessoas gostam sempre dos andares mais altos, mas escolhemos este, o mais baixo, porque tinha mais 80 centímetros de altura do que os outros. É meia estante.” Para aproveitar ao milímetro essa benesse, pediram a um amigo arquiteto para desenhar aquilo a que chamam o “corredor-biblioteca”.
Nesta espécie de centro geométrico da casa fica grande parte da ficção e a poesia toda. A ficção obedece a uma ordem geográfica, dentro de cada língua. Por exemplo, no caso do castelhano, alinham-se primeiro os autores espanhóis e depois as várias literaturas da América Latina, por ordem alfabética dos países (Argentina, Bolívia, Chile, até à Venezuela). A exceção é a literatura portuguesa, que segue uma ordem cronológica, dos mais antigos para os mais jovens. Maria do Rosário explica: “Por um lado, o Manel gosta de juntar autores de uma mesma tendência, movimento artístico ou geração. Por outro lado, facilita-nos a vida, porque hoje são os jovens que produzem mais e é fácil arrumá-los no fim da estante, no espaço livre. Se fosse por ordem alfabética, estávamos sempre a refazer tudo e seria impraticável.”
Determinante no processo de ganhar espaço foi a decisão de enviar para uma casa de fim de semana, na Ericeira, todos os livros policiais e thrillers. Seguiu-se a identificação dos livros repetidos, que o casal ofereceu aos amigos e à livraria “Déjà Lu”. Mas essas duplicações acabaram sendo em menor número do que supunham. “A verdade é que somos de gerações diferentes. O Manel atravessou todo o período anterior ao 25 de Abril, em que se compravam muitos ensaios políticos, eu nem tanto; e ele é mais virado para a literatura francesa, enquanto eu sigo mais a literatura anglo-saxónica. As nossas bibliotecas até são bastante complementares”, observa a autora de “O Canto do Vento nos Ciprestes”, que se assume como mais “desprendida”.
Já Manuel Alberto Valente admite uma certa dificuldade em separar-se dos livros: “Tenho sempre a sensação de que posso vir a precisar deles por uma razão qualquer. E partilho aquela tese do Umberto Eco, segundo a qual os livros entram em nós por osmose, mesmo se não os lermos. O simples facto de estarem ali, à nossa volta, já nos torna melhores.” A propósito, Maria do Rosário Pedreira evoca Eduardo Prado Coelho: “Ele dizia que uma biblioteca só começa a ser interessante quando há nela tantos livros por ler quanto os livros lidos. Se só tiver obras que já conhecemos, torna-se uma biblioteca estática. Não podia concordar mais.”






Desordem. Rui Zink no meio de um labirinto em que só ele consegue orientar-se: “Há um padrão unificador aqui. E esse padrão unificador sou eu”
JOÃO LIMA

Um aspeto interessante do processo de arrumação é o que resulta de uma espécie de arqueologia sentimental. “Ao pôr em ordem a parte francesa, descobri o meu próprio percurso, as leituras feitas aos 18, aos 20 anos, aos 25”, diz Valente. “Perguntei-me: porque lia estas coisas naquela época? Fica-se a pensar. É uma forma de entendermos o caminho percorrido. Pegamos num livro e há memórias soterradas que vêm ao de cima.”
Tal como um terreno estudado por um geólogo, uma biblioteca tem estratos. “É interessante ver como os livros migram, como vão subindo nas prateleiras. Eu conservo encostadas ao teto, num sítio que é preciso um escadote para lá ir, todas as obras do Marx e do Lenine. Mas houve uma altura em que estavam na prateleira principal, mesmo em frente aos meus olhos. Hoje não me passa pela cabeça ir folhear o Lenine, embora o Marx talvez faça sentido voltar a ler. De qualquer forma, estão lá. Fazem parte do tal percurso de vida que a biblioteca regista.”
No passado, Valente refez várias vezes a sua vida, deixando casas e mobílias para trás, mas nunca os livros. Por isso, tanto ele como Maria do Rosário têm consciência dos riscos de transformar duas bibliotecas numa só. Na eventualidade de uma separação, dividir o que se uniu seria muitíssimo difícil. “Algum motivo haverá para que uma decisão destas só seja tomada ao fim de uns anos largos de casamento”, remata Manuel, com um sorriso.

A BIBLIOTECA PRAGMÁTICA


Sentado na sala principal de sua casa, num condomínio de luxo junto à Serra de Sintra, José Rodrigues dos Santos, o autor português que mais vendeu nos últimos anos (acima de três milhões de exemplares), regressa por momentos à infância, em Tete, no norte de Moçambique. Foi aí, por volta dos sete anos, que iniciou o seu percurso de leitor omnívoro de Banda Desenhada (Tintim, Astérix, Lucky Luke, Spirou, mas também Tarzan e a revista “Mundo de Aventuras”). A paixão pela BD nunca o abandonou. A assinalá-lo, na única estante do piso térreo, uma estatueta do repórter criado por Hergé ocupa um lugar de destaque. À sua volta, o pivô da RTP dispôs os seus próprios livros, traduzidos para um número crescente de línguas (“são tantas as edições diferentes que já começo a não ter espaço”). Nas prateleiras de cima, “alguns clássicos”: Fernando Pessoa, Camões, Ferreira de Castro, Camilo Castelo Branco, Marcel Proust, Eça de Queirós.
A partir dos 12 anos, cresceu o interesse pela Ficção Científica. “Lia um livro a cada dois dias. Ainda hoje tenho a coleção Argonauta quase completa.” Em Macau, onde era grande a influência da cultura britânica, via Hong Kong, leu o “2001, Odisseia no Espaço”, de Arthur C. Clarke, no original. Mas o hábito de ler em inglês consolidou-se mais tarde, quando aos 22 anos foi trabalhar na BBC, em Londres. Começou “a abrir o leque”, descobrindo escritores britânicos como Evelyn Waugh, P. G. Wodehouse e Somerset Maugham (“‘Servidão Humana’ continua a ser o meu livro preferido”). Ao regressar a Portugal, no início da década de 90, os bons hábitos de leitura perderam-se. “Trabalhava tanto que não tinha tempo nenhum para ler.” Ao fim de dois anos, porém, decidiu inverter a situação. “Impus-me como regra ler sempre um bocadinho antes de dormir, mesmo que esteja exausto.”
O início da carreira de romancista, nos primeiros anos deste século, marcou uma mudança drástica na sua vida. “Como leio entre 30 a 100 livros sobre um determinado tema, durante a fase de pesquisa, abdiquei praticamente das leituras de prazer.” Enquanto escreve as suas narrativas, a bibliografia especializada cresce, em pilhas, na sua mesa de trabalho. Para dar sustentação teórica à ‘Trilogia do Lótus’ — de que já foram publicados dois romances (“As Flores de Lótus” e “O Pavilhão Púrpura”), com o terceiro (“O Reino do Meio”) previsto para o final deste ano, sempre na Gradiva — mergulhou a fundo na questão dos totalitarismos. Ao sugerir a existência de raízes marxistas no fascismo, desencadeou uma controvérsia à moda antiga, em que trocou argumentos com historiadores em artigos de jornal. “Li quase todos os livros do Marx, quase todos os livros do Engels, mas também fui aos textos do Mussolini e dos ideólogos fascistas: o Olivetti, o D’Annunzio, o Corridoni. Prefiro sempre ir às fontes, em vez de ler traduções seletivas e ideologicamente orientadas. Quando vamos aos textos originais, descobrimos coisas verdadeiramente extraordinárias.”
Concluída a escrita de um livro, o material de apoio deixa de ser imediatamente necessário, mas não pode ser descartado. “Se houver uma polémica, tenho de ir confirmar as páginas a que fui buscar determinada informação.” Por isso, criou um espaço — na garagem, junto aos dois automóveis de alta cilindrada — para o arquivo morto das suas investigações. Uma espécie de armário branco, em módulos, que cobre uma parede inteira, do chão ao teto. É de lá que retira as obras de Marx onde sublinhou passagens de teor antissemita ou de defesa da escravatura (“é mesmo verdade, olhe aqui”), pousando-as em cima do capô do Mercedes. Dentro do armário fica uma biblioteca oculta: a dos livros que serviram de base ao trabalho do romancista e, cumprida a sua função, se remetem a uma espécie de silêncio.






Toca. Entre dicionários e livros “essenciais”, Maria Manuel Viana escreve os seus romances e traduz, sobretudo do espanhol, mas também do francês
JOÃO LIMA

Há nisto um elevado grau de pragmatismo que se estende à outra biblioteca. A visível. José Rodrigues dos Santos guarda a vasta coleção de BD, e os livros de Ciências, no escritório que partilha com a mulher. Mesmo em frente ao escritório, uma grande estante, feita à medida, acolhe as obras sobre jornalismo e a ficção. “Tenho aqui algumas preciosidades.” Abre, para exemplificar, o saco de plástico com fecho hermético onde guarda uma primeira edição assinada de “O Agente Secreto”, de Joseph Conrad. Mas nem só os livros raros merecem este tratamento de proteção contra poeiras e peixinhos-de-prata. Nas prateleiras, mais de metade dos volumes estão metidos em casulos estanques. Uma visão estranha, como a daqueles sofás que certas famílias cobrem com plásticos para não se estragarem. Mas talvez faça sentido: afinal, Rodrigues dos Santos é o primeiro a admitir que já não tem tempo para os ler. As leituras em curso estão sempre junto ao computador e ao texto em gestação do próximo romance.

A BIBLIOTECA CAÓTICA


Sacos de todos os tipos, caixas transparentes (cheias de livros, cadernos, dossiês), objetos tresmalhados, instrumentos musicais, cabos de aparelhos eletrónicos, jornais, catálogos, papelada avulsa. A sala parece um cafarnaum. “Estou em mudanças”, explica Rui Zink, enquanto deambula no meio da desordem, tirando livros da estante, aparentemente ao acaso, e falando sobre eles. Banda desenhada alternativa, um autor esquecido (António Aragão), um livro de Alberto Pimenta, um manual — “How to Write Erotica” — que promete ensinar a escrever cenas de sexo, esse busílis da literatura portuguesa (“não me serviu de nada”).
Para o topo da pilha vai agora um volume em capa dura: “Os Justos”, de Albert Camus, edição antiga da Livros do Brasil. “Li-o durante a adolescência. É uma peça de teatro.” Ao folheá-lo, Zink descobre um texto manuscrito. “Deve ser mais ou menos daquela época, acho que consigo decifrar. Ora vamos lá: ‘Todos os homens são pequenos, a lupa dos nossos olhos é que aumenta uns, enquanto o microscópio disseca outros. Mas a perfeição não existe. Somos sempre traídos por um ponto negro, uma borbulha, uma ruga fora do lugar. Estamos aprisionados dentro de nós próprios.’ Não faço ideia se escrevi isto aos 15 anos, ou aos 18, mas olha, nada mau. Isto era um rapaz a pensar.” No resto do livro há passagens sublinhadas. “Gosto muito de descobrir estas marcas. Na prática, estou a ler dois livros de duas pessoas que já cá não estão. O Albert Camus, porque morreu; e o Rui Zink de 18 anos, porque também já não existe.”
E qual a lógica de arrumação (ou de desarrumação) desta biblioteca? “Não há lógica. Nem critério. Eu adorava que houvesse, mas sou talvez o pior bibliotecário do mundo. Há livros que são relativamente fáceis de arrumar. Por exemplo, tenho ali uma prateleira de livros sobre o Japão. Mas depois eles saltitam para outros lados.” Quando precisa de encontrar um determinado volume, o escritor garante que consegue orientar-se “oitenta por cento das vezes”. É uma espécie de GPS subliminar, um conhecimento intuitivo. “Os livros que eu amo ficam em sítios escondidos. Não preciso de me lembrar deles. Sei sempre onde estão.”






Plástico. José Rodrigues dos Santos junto às prateleiras com literatura de ficção da sua biblioteca, em grande parte protegida por sacos estanques
JOÃO LIMA

Outra vantagem do caos: descobrir “mundos infinitos” dentro da própria casa. “É isso que uma biblioteca tem em comum com uma cabeça. Tu podes ser prisioneiro, meteram-te numa cela pequena, e se fores uma pessoa com imaginação e inteligência, podes ter uma vida muito mais cheia do que uma pessoa que vive em liberdade.” Mesmo reconhecendo que algumas zonas da casa ganhavam em estar mais ordenadas, Zink sublinha que o excesso de arrumação faria certamente dele alguém mais preocupado com a capa dos livros do que com o seu conteúdo. “No dia em que não fores caótico é sinal de que estás morto.”
Os livros continuam a sair das prateleiras. Agora fala-se de Italo Calvino e de Martin Amis. Eis Júlio Dantas, o injustiçado. E olha ali um livrinho do Emmanuel Carrère, “La Classe de Neige”. Abandonou-o a dez páginas do fim. Bastavam mais uns minutos de leitura, mas algo se interpôs. “Acontece-me muito. Ficar a meio de um livro, como se fica a meio de uma conversa.” É uma boa analogia. Porque justamente esta conversa, também ela caótica, feita de associações de ideias, de descontinuidades, de derivas, se suspende aqui, enquanto uns livros voltam para os seus lugares e outros não.

A BIBLIOTECA MÓVEL


Na infância de Maria Manuel Viana sempre houve muitos livros. O pai era um professor e pedagogo. A mãe, uma “leitora absoluta”, que à noite lhe declamava versos de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. “Eram poemas de embalar.” Mais tarde, decidiram acompanhar o desenvolvimento intelectual da filha. “Quando eu lia um livro, eles liam também. E o livro era discutido à mesa do jantar. Fosse o ‘Joanica-Puff’ ou ‘Os Três Mosqueteiros’. Faziam-me enquadramentos históricos, explicavam as coisas que eu não tinha percebido. Foi um luxo, foi magnífico.”
Ainda em casa dos pais, teve a sua primeira estante, os seus primeiros livros. Quando saiu para viver sozinha, aos 18 anos, levou-os consigo. Tinha assim início um longo percurso de acumulações e perdas, livros que se aproximam e afastam, ficam pelo caminho, recuperam-se, até chegar a este refúgio onde Maria Manuel Viana nos acolhe, uma cave num bairro antigo de Lisboa, espécie de toca onde escreve as suas ficções e traduz, cada vez mais resguardada, por vontade própria, da exposição pública.
Com o pai dos filhos, companheiro durante mais de vinte anos e ainda hoje o seu melhor amigo, fez um pacto. Ele é secretário-geral de uma organização internacional e passa a maior parte do tempo no estrangeiro. Quando regressa das viagens, traz-lhe as novidades de Londres ou de Paris, os livros de que se fala ou os premiados. Em troca, ela mantém-no atualizado sobre o que se vai publicando em Portugal, sobretudo no campo da poesia. “Ao longo dos anos, fomos alimentando a biblioteca um do outro. Separámo-nos em 2003, mas a nossa relação intelectual continuou. É o nosso elo de ligação.”
Quando há dois anos começou a ter sérios problemas com a falta de espaço para os livros, decidiu dar a sua grande coleção de policiais. “Tenho cada vez menos o sentido da propriedade. O prazer dos livros nasce de lê-los, não de possuí-los.” Assim que soube da sua intenção, o antigo companheiro interveio, oferecendo-se para receber o espólio, uma vez que tem espaço de sobra na sua quinta. “Isso deu-me uma ideia: assim que acabo de ler um livro, seja comprado por mim seja oferecido por ele, envio-o para Castelo Branco, onde mora. Depois, se precisar deles, peço-os e ele envia-mos pelo correio. Na leva seguinte, voltam a ir.”
Por perto, ficam os “essenciais”. Não os que levaria para uma ilha deserta, “conceito que me irrita”, mas aqueles que gostaria de ter sempre consigo. “A Apresentação do Rosto”, de Herberto Helder, por exemplo. “Foi o único livro que o Herberto excluiu da sua bibliografia, o que me faz gostar ainda mais desesperadamente dele. É lindíssimo.” Ou um livro de Marguerite Duras, “La Maladie de la Mort”, que lhe foi enviado, em fotocópias encadernadas, por Eduardo Prado Coelho. “São coisas muito preciosas. E eu necessito da proximidade física destes livros.”
O impulso da partilha mantém-se. “É uma coisa que me vem da infância. Se há um livro que me maravilha, levo-o logo para os meus filhos. Têm de ler isto. Faço com eles o que os meus pais faziam comigo.” E estende o gesto aos amigos mais próximos, com quem janta todas as semanas para falar de literatura e trocar livros. A biblioteca nunca está parada. Toda ela é movimento de ida e volta. “Gosto muito desta ideia de ter os livros a circular, sempre. Eles não são meus, são de muitos, vão sendo de quem os lê.”
http://expresso.sapo.pt/cultura/2017-03-25-Casas-de-papel



Título: Biblioteca em fogo. Autora: Helena Vieira da Silva. Data: 1974. Técnica: Pintura a óleo sobre tela. Dimensões: 158,4 cm  × 178,4 cm. Localização: Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa



REPORTAGEM

Não têm espaço e por isso estão a oferecer uma biblioteca

Joaquim Sousa Pereira já não lê os 50 mil livros que juntou, mas o prédio foi vendido e a família tem de tirar todas as histórias do apartamento. Os que não conseguiram resgatar estão a oferecer.

Renata Monteiro, 31 de Março de 2017

Era uma vez uma casa onde há quase 15 anos só moram livros. Os primeiros volumes chegaram da Rua da Alegria, no Porto, em sete camiões de mudanças cheios até cima. No início, foram espalhados por prateleiras categoricamente separadas por temas. A religião na sala. O fascínio por ovnilogia e ocultismo na cozinha. Mas depois “foi o caos”. Começaram a chegar mais e mais livros, pelo menos um por dia, alimentando as montanhas que se iam formando em cada divisão e de repente, a casa ficou soterrada debaixo de uma verdadeira avalanche de papel. Eram mais de 50 mil volumes.
Eugénia Sousa Pereira já não visitava a casa há anos. Há três semanas subiu até ao segundo andar para mostrar a colecção do pai a uma alfarrabista e quando tentou entrar viu que tinham mudado a fechadura. Ligou ao senhorio e descobriu que o prédio fora vendido a uma sociedade e os livros que antes habitavam uma residência alugada agora têm de sair. Quem os ia lá folhear todos os dias, hoje com 89 anos, já não gosta de ler.
A primeira pessoa a poder levar livros foi Cláudia Ribeiro, 43 anos, alfarrabista de profissão e amiga do dono da colecção há mais de 20 anos. Quando viu a biblioteca comentou com Eugénia, uma das filhas do coleccionador, que “não havia assim tantos livros repetidos quanto inicialmente pensava”. Na altura estimou que seria preciso mais de meio ano para uma pessoa sozinha inventariar todos os volumes.Os advogados deram à família 15 dias para esvaziar a casa antes que a biblioteca de Joaquim Sousa Pereira fosse reduzida a pó. As filhas conseguiram alargar o prazo para um mês, mas a data-limite aproxima-se a passos largos e lá dentro, por onde quer que se passe ainda se tropeça em livros. Agora, a família só quer arranjar outras casas para estas milhares de histórias viverem felizes para sempre.



Enquanto vagueava pela biblioteca, por acaso, virou a capa de dois que no meio de tantos outros lhe suscitaram interesse. Na primeira página leu duas dedicatórias que lhe eram dirigidas, escritas depois de Joaquim chegar a casa com os livros. A partir daí teve a certeza que aquela biblioteca tinha de lhe ir “parar às mãos”.
Arranjou tempo para ficar uma semana e meia só a esmiuçar a biblioteca e saiu de lá com 60 sacos de compras, “dos rectangulares com alças fortes”, carregados de livros, muitos deles que já lhe tinham sido vendidos por ela.


ADRIANO MIRANDA

Desde que deixou de trabalhar aos 55 anos que Joaquim fazia todos os dias o mesmo percurso entre a casa onde morava e a casa que alugou para os livros morarem. Subia a Rua da Torrinha, virava para Cedofeita continuava para a Rua do Almada e pelo caminho entrava várias vezes ao dia na Zarco, na Lumiére, na Académica, na Varadero e em tantas outras livrarias do Porto que foram surgindo e desaparecendo com o tempo. “Um dia que ele não comprasse livros não era um dia feliz para ele”, diz a alfarrabista sobre uma das “pessoas mais singulares” que já conheceu.
Joaquim passava tanto tempo na Lumiére que, no mundo dos livros dominado por homens, era frequente ter clientes que quando entravam se dirigiam de imediato ao “carismático e distinto senhor de óculos”, por pensarem que era ele o dono da livraria.
 “O Senhor Sousa Pereira”, como Cláudia lhe chamava, não comprava livros caros. E mesmo quando levava romances de 15 euros “mentia no preço para a mulher não se chatear”, conta a alfarrabista. Pelo meio das páginas encontrou várias indicações de datas falsas e preços adulterados com recados para a família onde se lia que aquele livro tinha sido oferecido. Dizia sempre que “já tinha o livro há anos, mas não tinha nada”, garante a amiga.
Eugénia conta que dias depois de Cláudia sair “encantada” com a colecção apareceu um feirante que ao olhar à volta disse baixinho: “tenho a certeza que ele não leu nem 10% disto”. Pela biblioteca completa oferecia 100 euros. A resposta da filha foi pronta. Por esse valor preferia “dar os livros a quem os aprecie”.
Depois dele vieram outros alfarrabistas que também “não mostraram interesse pela colecção”, lamenta. Ou por não ter primeiras edições e achados raros ou por grande parte não estar escrita em português, os livreiros não desciam as escadas entusiasmados pelo valor da colecção.



É por isso que começaram a dar os livros. Quem primeiro fez a sugestão foi a neta, Sara Silva, que não queria ver as escolhas do avô deitadas fora. Em casa também não têm espaço para acolher todos os livros e Sara decidiu escrever uma publicação no Facebook a dizer que “o escritório do avô” estava aberto. Uma fotografia de uma das estantes repleta de livros chegou para convencer amigos, conhecidos e amigos de amigos que saíram de lá com “pequenos tesouros”. Nesse dia “até o Valter Hugo Mãe saiu daqui com mais de 50 livros”, conta. Para já, a família quer tentar alargar o prazo que o administrador do prédio deu para retirarem os livros e não quer abrir as portas a pessoas totalmente desconhecidas. Esse passo será dado só em último caso.
Susana Vieira, uma advogada apaixonada por livros de história, também visitou a “casa de papel” depois de ter visto a publicação na rede social. O pequeno saco que trouxe inicialmente não foi suficiente e desde esse dia já voltou três vezes. Perde o seu tempo a ler cada uma das lombadas, porque, diz “é um atentado aos livros se não arranjarem uma casa e forem reduzidos a pó”.
Os visitantes, que são mais nos últimos dias do que alguma vez foram durante quase década e meia, andam por cima de um tapete formado por páginas rasgadas. A primeira vez que Eugénia Sousa Pereira entrou no apartamento tentou limpar o chão. Desistiu rapidamente.
A casa só é o caos para quem não a montou. Joaquim Sousa Pereira nunca teve água nem electricidade naquele apartamento. As horas que lá passava todos os dias, a pegar e a deixar livros, tinham todas a companhia da luz do sol. De mobília apenas se avistam uma mesa, muitas estantes e uma cadeira alta. Era aí que pintava, junto a uma janela que vai quase até ao tecto, num dos cantos da sala. Descobriu essa paixão mais tarde na vida, mas ainda assim deixou muitos quadros pendurados pelas paredes. Foram das primeiras coisas que a família guardou, juntamente com uma colecção completa de Eça de Queiroz.


ADRIANO MIRANDA

“Acho que leu quase todos os clássicos”, diz Eugénia que relembra longas conversas, algumas impostas, sobre Rousseau, Alexandre Dumas, Stefan Zweig. Muitos destes já estão nas prateleiras de casa da família, mas há muitos mais romances, livros de arte, filosofia política, história, ocultismo, ovnilogia, dicionários, enciclopédias e gramáticas que não conseguem resgatar. Sara acha que o avô leu quase todos, a maior parte está sublinhada e com comentários e traduções em várias línguas escritas nos cantos das páginas, outros têm guardanapos de vários cafés da cidade a servir de marcador.
Joaquim dizia que começou a trabalhar “de calção”. Aos 14 anos fazia uns recados, depois trabalhou muitos anos como correspondente de línguas na antiga Fábrica de Conservas Brandão Gomes e uns anos depois começou “uma sociedade de papeis auto-adesivos e máquinas para cortar papel com o irmão, a Representações Sousa Pereira”, enumera a filha. Quando a parceria acabou, começou a trabalhar por conta própria com Espanha e Inglaterra através de um fax que tinha em casa.
Quando moravam nessa casa inicial, numa rua a quem um poeta e filósofo português deu o nome, a família já tinha “uma colecção enorme”. Mudaram-se em 1983 para a Rua da Torrinha e foi nessa altura que Joaquim arranjou o primeiro escritório para guardar os livros, na Rua da Alegria. Já aí “a biblioteca era um caos”, lembra-se a filha.
O apartamento que deixa toda a gente “encantada”, a ela faz-lhe “uma imensa confusão”. Há um ano e meio que a demência do pai se tem vindo a agravar e desde aí que Joaquim entrava cada vez menos vezes no mundo de livros que só ele conhecia. O último livro que leu chamava-se A Vida Depois da Morte. Antes “começou a ler livros sobre como exercitar a memória”, até que mais recentemente, conta Eugénia, quando lhe perguntaram se não queria um livro, a resposta apanhou todos de surpresa: “Não, cheio de livros estou eu”.
Sousa Pereira não sabe que os seus livros estão a ser dados. A família achou que “não era bom para ele saber” e acredita estar a “seguir a sua vontade” ao tomar esta decisão, explica a neta, Sara. A primeira vez que entrou “no mundo do avô” foi em 2009 e diz que, desde aí, “a colecção cresceu muito”.
“Encontro um certo critério nas compras dele, não era só compulsivo”, alerta, “embora isto seja uma acumulação, há uma linha de pensamento”, diz a neta.



Eugénia diz que o pai era “movido pela curiosidade” e para explicar que para ele não existiam temas proibidos, conta muitas vezes a mesma história. Um dia, antes do 25 de Abril, Joaquim Sousa Pereira ia no eléctrico para Matosinhos e apercebeu-se que a PIDE, ao ouvir falar nos seus livros, o andava a perseguir. Fingiu-se despercebido e combinou um encontro com a polícia política portuguesa que quando visitou a biblioteca, não encontrou um único livro pró-comunismo ou contra o Estado Novo. Horas antes, Joaquim tinha-os escondido a todos no galinheiro. Nunca mais o perseguiram.
Texto editado por Ana Fernandeshttps://www.publico.pt/2017/03/31/local/noticia/nao-tem-espaco-e-por-isso-estao-a-oferecer-uma-biblioteca-1767148

sexta-feira, 24 de março de 2017

Um quarto dos poemas é imitação literária



Um quarto dos poemas é imitação literária,
outro quarto é ainda imitação mas já irónica e colérica,
outro quarto é das labaredas da inquisição à volta,
outro quarto, o quarto, o que falta, é por causa da
magnificência do mundo
o quinto quarto absurdo é o das quatro patas cortadas,
e o último é ele que olha da montanha onde abriu na
pedra o seu nome inabalável,
e voltava ao primeiro como se fosse orvalho,
como se fosse tão frio que cortasse até ao osso,
o imo do próprio nome assim metido na pedra,
tanto que ninguém sabia de quem era,
porque ficou todo dentro e não se via de fora:
nem o suor nem o sangue nem o sopro

Herberto Helder (in Servidões, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013; Poemas Completos, Porto: Porto Editora, 2014)
Poema dito por Fernando Alves (TSF-Rádio Notícias, maio de 2013)
  
[…] apesar de ser «dos poetas mais lidos e assimilados, porquanto a marca da sua presença aparece nas mais variadas obras dos autores mais variados, e com uma assiduidade que chega a tornar-se maçadora» (Maria Estela Guedes), Herberto Helder «não tem antes nem depois, apesar de muitos o tentarem imitar» (Joana Emídio Marques); «Não há na poesia portuguesa pós-Pessoa nenhum poeta que tenha exercido um tal poder de atração e gerado tantos epígonos. E nenhum mais absolutamente impossível de imitar com proveito» (Luís Miguel Queirós); «Nos grandes poetas, ela [a imitação] tende para o impossível, ou então é insuportavelmente trôpega. (…) Essa impossibilidade de imitar valiosamente aquilo que mais apeteceria imitar é quase um sinal indubitável da soberana realidade de uma poesia» (Paulo Tunhas).
Sobre tudo isto, Herberto Helder disse, com um requinte, uma subtileza e uma precisão descritiva (e digo-o sem exagero nem ironia) que não está ao alcance de todas as inteligências: «Quanto mais contrabandeado, melhor se verá nele a força natural da singularidade» (prefácio a Uma Faca nos Dentes).
João Pedro Jorge, “Herberto Helder: sociologia de um génio”, Observador, 2015-04-08.





Levanto à vista
o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbedas
E estou tão leve
porque não tenho nenhum segredo
e tão oculto
porque daqui a nada
já posso dizer tudo.
Daqui a uma pouca ciência
saberei pensar que algum pouco depois
estarei morto
e só de o pensar
já nem respiro
já quase
em nada toco
Já só vejo no fundo das mãos
daquilo que fica escrito
Que escrevi coisa nenhuma do mundo
até ao esquecimento e movendo-me com as unhas
movo os nomes inúmeros
para dizer que mal nasci
logo me deram por morto.
E não fui tido nem havido
na razão do episódio de um rosto
ter passado por um espelho e ter desaparecido.
Portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos
Vejo a água a mover-se contra si mesma
tão marítima e acho até que é bonito
cada qual morre do quanto alcança e não alcança
e ninguém compreende
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas
e passa a água fácil
sem retorno
porque nada tem retorno
e tudo é dificílimo
não só o máximo, mas também o mínimo.
 
Herberto Helder (in Servidões, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013; Poemas Completos, Porto: Porto Editora, 2014)
Poema dito por Fernando Alves (transmitido na TSF-Rádio Notícias, em maio de 2013)

quinta-feira, 23 de março de 2017

O que faz de um poema... um poema?


Dando-se o caso de se tratar de um poema, o que é que nele é poesia?

Publicado a 20/03/2017
What exactly makes a poem … a poem? Poets themselves have struggled with this question, often using metaphors to approximate a definition. Is a poem a little machine? A firework? An echo? A dream? Melissa Kovacs shares three recognizable characteristics of most poetry.
Lesson by Melissa Kovacs, animation by Ace & Son Moving Picture Co., LLC.

terça-feira, 21 de março de 2017

Jorge de Sena - Carta a um jovem poeta





Meu caro jovem poeta
Pedem-me que lhe escreva, como se o amigo tivesse começado por enviar-me poemas seus, solicitando a minha opinião. Pedem-me também que o considere o jovem poeta ideal, aquele que imaginamos o certo para escutar-nos. Pedem-me enfim — embora isso não seja dito — que eu me suponha o Rilke escrevendo a um jovem que não seja o medíocre a quem ele dizia tão belas coisas. Creio que é pedir demasiado.
De um modo geral, os poetas de reputação firmada, ou que se julgam ou são julgados tais (ninguém tem a sua reputação firmada em literatura, nem depois de séculos de ninguém nos ler e de todos repetirem que somos génios, a não ser que isso importe aos interesses ou desinteresses de alguns professores e críticos), costumam receber poemas ou poetas jovens que solicitam opinião. O poeta "velho" toma tal facto como uma vénia, um reconhecimento, que ele teme perder, por parte da juventude. Mas o que o poeta jovem na verdade procura não é bem uma opinião de alguém mais experiente (qual o poeta jovem que, no fundo, se não sente superior a qualquer mesmo admirado poeta "velho"?), mas sim uma oportunidade de entrar, pela mão de alguém, naquele mundo maravilhoso dos poetas vivos, da poesia pessoalmente, etc., que ele descobrirá ser um sórdido e torpe mundo, inteiramente igual, se não pior (porque se sustenta de uma importância que realmente não tem), àquele, tão comum e familiar, que, nas suas frustrações juvenis, o poeta jovem julga que detesta. Instintivamente, ele sabe que, se não pedir a bênção de alguém, dificilmente fará sem amarguras o seu caminho. Porque a vida literária é uma maçonaria como qualquer outra, onde é escusado imaginar-se que alguém entra forçando as portas. Tudo, na vida, funciona por camarilhas que oferecem a seus membros a tranquilidade de se imaginarem importantes ou, mais ainda, a ilusão de que estão vivos.
Se um conselho, ab initio, se pode e deve dar a um jovem poeta, é o de que perca a inocência juvenil, se venda, se prostitua (o próprio corpo, se necessário for, porque às vezes lho cobiçarão), se dedique à adulação da mediocridade triunfante, ouça respeitosamente as opiniões dos críticos mais influentes porque mais cretinos, e receba em troca a paz triunfal dos sucessos mundanos e literários. Se, depois disto, puder continuar a ser o poeta que havia nele ou que ele sonhava que seria, é um outro caso — mas, por esse segredo, poderá estar certo que ninguém perguntará. Forçar as portas, com um livro, dois livros, uma crítica, duas, muitas, dirigidas contra a infecta pesporrência dos estabelecidos; pedir justiça, em vez de amabilidade; exigir inteligência, em lugar de um comércio de retribuições; procurar a camaradagem limpa, e não aceitar os gestos dúbios; enfim, tudo o que diz respeito à dignidade humana e da poesia, em vez da complacência com tudo e todos — não rende. Nem em vida, nem na morte. Porque as histórias literárias, com raras excepções arquivo de tudo o que a mediocridade alguma vez disse sem ter lido, guardarão longamente, em benefício da posteridade, todo o veneno que os contemporâneos lançaram sobre aquele que, por pretender ser uma pessoa, e um poeta, lhes ameaçava, só por isso, a segurança. Ao jovem poeta, é preciso dizer-se que desconfie do grande poeta vivo que receba consagração geral. Se a recebe, é porque algo está podre naquele reino da Dinamarca.
Quanto aos seus poemas, meu caro poeta, como V. é um poeta inexistente, cujos poemas são imaginários, e como eu não acredito na Poesia, com maiúscula, preexistente aos poemas em que ela exista, que lhe direi? Eu não faço ideia alguma da espécie de poeta que o meu amigo é. Cultiva as imagens e as metáforas, no seu anseio juvenil de seguir uma das modas, e de parecer que diz coisas extremamente profundas, sem na verdade dizer nada? Ou prefere as palavras despedaçadas, uma letra para cada canto, ou os graciosos joguinhos do pata, peta, pita, pota, etc? Isso também se usa muito, e granjeia grande prestígio. Acaso faz ou não faz sonetos, pelo melhor modelo (que é o que funda a tradição parnasiana, um pouco erótica, para a masturbação em família, com os ornamentos do mais safado mas sempre brilhante gongorismo)? Ou está preocupado com os destinos do mundo ou os da pátria, e confunde-os com aquela inacabável tradição que manda os poetas imitar os Nerudas & C.a? Ou a sua poesia é extremamente vaga e diáfana, confortavelmente distante de qualquer afirmação excessiva, neste duvidoso mundo? Ou, pelo contrário, é amplamente discursiva, transbordante de riqueza (termo este muito usado pelos críticos em petição de matéria substantiva)? Como vê, meu amigo, não posso mais que aventar hipóteses, segundo as linhagens mais ilustres do momento. Oh, mas esquecia-me de outra: acaso será herdeiro do surrealismo, com alguma tintura de beatniks e de psiquedélicos da Califórnia e arredores, e compraz-se em insultar o mundo, insinuando perversões horríveis, e despejando sobre ele os palavrões sagrados, por extenso? Não? Não?! Então, meu caro amigo, das duas uma: ou a sua poesia é um regresso aos velhos padrões arcádico-românticos, e sem dúvida terá êxito ainda nos salões de uma profunda província, ou, na verdade, o senhor é um poeta. E, sendo poeta, é-o de tal modo, que a sua poesia não pode ser reconhecida, nem o senhor tem o direito de esperar que ela o seja. Daqui a vinte ou trinta anos, quando estiver alquebrado, exausto, esgotado, descrente da poesia a que sacrificou a sua vida e a de quantos tiveram a desgraça de depender de si, talvez então comecem a reconhecer que o senhor existe. Claro que muito a contragosto, muito de má vontade, com muita reticência… Eles, meu caro, serão sempre os génios; o senhor será também um génio, um génio imenso, um génio enorme, mas um génio mas, um génio adversativo. E pode ter a certeza de que assim ficará nas histórias literárias: sempre com um mas tanto maior, quanto pior seja o génio que não possam negar-lhe.
A poesia, querido amigo, não é o que pensa, não. Ela não lhe pode trazer, se verdadeira for, essa satisfação que transparece da sua tão trémula confiança em si mesmo. Isso, se me permite que lhe diga, é uma ilusão da sua juventude. A poesia não é essa alegria de fazer alguma coisa que nem todos os outros fazem, e que eles aliás desprezam. Não é também esse prazer enganoso de que possui com palavras o amor que lhe escapa, as coisas que não consegue, as ideias que perpassam na sua cabeça, antes ou depois da solidão. A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é? Por ela, o senhor será egoísta, sendo altruísta; será mesquinho, sendo nobre; trairá tudo, para ser fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de horror, penetrar lá onde supõe que o "si mesmo" está para lhe fazer companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe, ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu, sim, mas também ele o senhor vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como abstracção do que o senhor pensa e escreve, e que, por sua vez, é já uma abstracção do que o senhor viveu ou não. Medite um pouco no significado terrível deste ou não, e nunca mais escreva versos ou prosa poética, ou lá que é que escreve para se julgar poeta.
Se for um poeta de verdade, meu caro, o melhor é com efeito não escrevê-los, e deixar de o ser. Porque a única alternativa é pavorosa: ou prostituta, dando à cauda, entre as madamas; ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva, ainda quando só tenha visões de anjos tocando flauta, numa apoteose (ou epifania, que é mais elegante, e era o que o Joyce dizia). Guarde os versos, rasgue os versos, esmague os versos, arrase com eles. É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo resto da vida? Se é, meu caro amigo, então não mande os seus versos a ninguém, não peça opiniões que ninguém pode dar-lhe, não espere conselhos de uma experiência que é pessoal e intransmissível, não solicite uma atenção que não haverá quem lha conceda. A menos que, para fim de festa, pretenda tirar, para seu uso, a contraprova de que a humanidade como humanidade, os povos como povos, as nações como nações, as classes como classes, os grupos como grupos são sempre colecções mais ou menos numerosas de infames bestas. Ou a contraprova de que, individualmente, ninguém vale para além do orgasmo, ou do olhar de simpatia, ou do gesto de ternura. Ainda quando sejam poetas, meu caro, ainda quando o sejam.
Não lhe estou dizendo que não publique os versos, uma vez que tenha ânimo e força para aguentar-se no equilíbrio instável entre a condição de prostituta e a condição de monstro. Na verdade, se a tentação que sente é irresistível de escrevê-los, se não procura a fama ou o proveito, se a dor de escrevê-los só se cura com a dor maior de escrever outros, se se sente vazio e triste quando eles estão escritos, e sofre de sentir-se vazio quando vai escrevê-los, e não sabe nunca o que vai escrever, e acha horrível tudo o que escreveu mas não é capaz de destruí-lo, então publique-os, publique-os sempre. E mande-os a toda a gente. Toda. Mas não peça opiniões ou conselhos a ninguém. Deixe que eles todos fiquem amarrados, para sempre, à culpa de o não terem lido, de o não terem sentido, de o não terem admirado. Dê-lhes, se a glória tiver de ser sua, o castigo da sua glória, implacavelmente. No fim das contas, lá onde nas trevas os dentes lhe rangem furiosamente, que isto lhe sirva de alguma consolação: todos eles passarão, como os ratos passam. Mas alguma coisa não passará, por mais que na morte, no silêncio, na paz dos túmulos ou das histórias literárias, se desfaçam em tranquila cinza: essa culpa que, dentro de alguns anos, será tudo o que se recordará deles todos tão poetas, tão aplaudidos, tão queridos das damas e/ou dos efebos, e tão estudados, tão bibliografados, tão comemorados, tão tudo o que lhe terão recusado entre dois abraços e dois sorrisos. Outros ratos virão — mas a culpa fica. Bem sei, meu caro, que não adianta muito, sobretudo se a gente não acredita na imortalidade, ou mesmo que acredite. Consola porém alguma coisa. E dá coragem à gente até ao poema seguinte. É quanto basta. Ou tem de bastar, porque não há mais nada.
Sempre seu (que o manda para o Inferno que é nossa província)

Jorge de Sena

*

Datada de 29 de agosto de 1966, esta 'carta' foi enviada ao poeta Walmir Ayala (1933-1991), para uma antologia temática que permanece inédita (Cartas aos jovens poetas brasileiros).
O texto foi publicado pela primeira vez no JL-Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Lisboa, a 10 de novembro de 1981, p. 5
A Correspondência entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena (3. ed, Lisboa, Guerra & Paz, 2010) nos traz alguns dados sobre o texto, a seguir transcritos.
De Lisboa, a 27 de junho de 1966, escreve Sophia: "Do Brasil vim com a incumbência de reunir colaboração portuguesa para o volume organizado pelo Walmir Ayala. O Walmir Ayala vai incluir "uma carta a um jovem poeta" que a Cecília Meireles deixou inédita. Encarecidamente lhe peço para este volume a "sua carta a um jovem poeta". Creio que é a primeira vez que no Brasil se publica um livro escrito simultaneamente por portugueses e brasileiros. A ideia parece-me óptima." (p.99)
Do Wisconsin, a 30 de agosto de 1966, responde Sena: "Só agora me foi possível compor a carta que me é solicitada pelo seu convite e do Walmir Ayala. Aqui lha mando — é uma coisa muito amarga e muito rude, mas por certo temperará o conjunto. Espero que lhe agrade como sincera coisa minha" (p.102).

http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/escritos-pessoais/carta-a-um-jovem-poeta/

segunda-feira, 20 de março de 2017

A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela (Jorge de Sena)

         
       


            FELICIDADE

            A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.
            Tinha feições de menino inconsolável.
            Um menino impúbere
            ainda sem amor por ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo
pelas faces humanas.
E, como menino que era,
achava um grande mistério
no seu próprio nome.

Jorge de Sena, 13-04-1941 
(PerseguiçãoLisboa, Cadernos de Poesia, 1942)






A discussão do poema foi engraçadíssima. Em primeiro lugar as miúdas da turma, em especial  Rute Elétrica, discordaram de que a felicidade fosse um menino. Antes uma menina e o negócio estava arrumado. A Carla Corações disse que podia ser um menino, se tivesse olhos verdes, uma moto fabulosa e de preferência que andasse na Universidade Católica como o seu primo Bernardo. Aí, o Telegoela disse que Bernardo era nome de cão e a Rute Elétrica, para defender a sua amiga Carla, deu-lhe com o “dossier” na cabeça. A Maria Só disse que o autor era um grande machista e o João Boião propôs que se lhe escrevesse uma carta, a pedir que mudasse a palavra menino para rapaz, ou homenzinho. Aí, a Maria Bonita disse que nem rapaz nem rapazinho, nem menino nem menina. Para ela, a felicidade era uma mulher de vestido até aos pés e com muitas jóias e um namorado rico. O Pedro Poças disse que não e que o avô dele achava que a felicidade não é deste mundo, por isso a felicidade devia ser uma história de mortos, boa para um filme de terror ou coisa assim. O Tó Provetas disse: a felicidade é um substantivo feminino, não pode ser menino.


Alexandre Honrado, Uma Chuvada na Careca
Porto, Edinter Jovem, 1989