Meu caro jovem poeta
Pedem-me que lhe escreva,
como se o amigo tivesse começado por enviar-me poemas seus, solicitando a minha
opinião. Pedem-me também que o considere o jovem poeta ideal, aquele que imaginamos
o certo para escutar-nos. Pedem-me enfim — embora isso não seja dito — que eu
me suponha o Rilke escrevendo a um jovem que não seja o medíocre a quem ele
dizia tão belas coisas. Creio que é pedir demasiado.
De um modo geral, os poetas
de reputação firmada, ou que se julgam ou são julgados tais (ninguém tem a sua
reputação firmada em literatura, nem depois de séculos de ninguém nos ler e de
todos repetirem que somos génios, a não ser que isso importe aos interesses ou
desinteresses de alguns professores e críticos), costumam receber poemas ou
poetas jovens que solicitam opinião. O poeta "velho" toma tal facto
como uma vénia, um reconhecimento, que ele teme perder, por parte da juventude.
Mas o que o poeta jovem na verdade procura não é bem uma opinião de alguém mais
experiente (qual o poeta jovem que, no fundo, se não sente superior a qualquer
mesmo admirado poeta "velho"?), mas sim uma oportunidade de entrar,
pela mão de alguém, naquele mundo maravilhoso dos poetas vivos, da poesia
pessoalmente, etc., que ele descobrirá ser um sórdido e torpe mundo,
inteiramente igual, se não pior (porque se sustenta de uma importância que
realmente não tem), àquele, tão comum e familiar, que, nas suas frustrações
juvenis, o poeta jovem julga que detesta. Instintivamente, ele sabe que, se não
pedir a bênção de alguém, dificilmente fará sem amarguras o seu caminho. Porque
a vida literária é uma maçonaria como qualquer outra, onde é escusado
imaginar-se que alguém entra forçando as portas. Tudo, na vida, funciona por
camarilhas que oferecem a seus membros a tranquilidade de se imaginarem
importantes ou, mais ainda, a ilusão de que estão vivos.
Se um conselho, ab initio, se pode e deve dar
a um jovem poeta, é o de que perca a inocência juvenil, se venda, se prostitua
(o próprio corpo, se necessário for, porque às vezes lho cobiçarão), se dedique
à adulação da mediocridade triunfante, ouça respeitosamente as opiniões dos
críticos mais influentes porque mais cretinos, e receba em troca a paz triunfal
dos sucessos mundanos e literários. Se, depois disto, puder continuar a ser o
poeta que havia nele ou que ele sonhava que seria, é um outro caso — mas, por
esse segredo, poderá estar certo que ninguém perguntará. Forçar as portas, com
um livro, dois livros, uma crítica, duas, muitas, dirigidas contra a infecta
pesporrência dos estabelecidos; pedir justiça, em vez de amabilidade; exigir
inteligência, em lugar de um comércio de retribuições; procurar a camaradagem
limpa, e não aceitar os gestos dúbios; enfim, tudo o que diz respeito à dignidade
humana e da poesia, em vez da complacência com tudo e todos — não rende. Nem em
vida, nem na morte. Porque as histórias literárias, com raras excepções arquivo
de tudo o que a mediocridade alguma vez disse sem ter lido, guardarão
longamente, em benefício da posteridade, todo o veneno que os contemporâneos
lançaram sobre aquele que, por pretender ser uma pessoa, e um poeta, lhes
ameaçava, só por isso, a segurança. Ao jovem poeta, é preciso dizer-se que
desconfie do grande poeta vivo que receba consagração geral. Se a recebe, é
porque algo está podre naquele reino da Dinamarca.
Quanto aos seus poemas, meu
caro poeta, como V. é um poeta inexistente, cujos poemas são imaginários, e
como eu não acredito na Poesia, com maiúscula, preexistente aos poemas em que
ela exista, que lhe direi? Eu não faço ideia alguma da espécie de poeta que o
meu amigo é. Cultiva as imagens e as metáforas, no seu anseio juvenil de seguir
uma das modas, e de parecer que diz coisas extremamente profundas, sem na
verdade dizer nada? Ou prefere as palavras despedaçadas, uma letra para cada
canto, ou os graciosos joguinhos do pata, peta, pita, pota, etc? Isso também se
usa muito, e granjeia grande prestígio. Acaso faz ou não faz sonetos, pelo
melhor modelo (que é o que funda a tradição parnasiana, um pouco erótica, para
a masturbação em família, com os ornamentos do mais safado mas sempre brilhante
gongorismo)? Ou está preocupado com os destinos do mundo ou os da pátria, e
confunde-os com aquela inacabável tradição que manda os poetas imitar os
Nerudas & C.a? Ou a sua poesia é extremamente vaga e diáfana,
confortavelmente distante de qualquer afirmação excessiva, neste duvidoso
mundo? Ou, pelo contrário, é amplamente discursiva, transbordante de riqueza
(termo este muito usado pelos críticos em petição de matéria substantiva)? Como
vê, meu amigo, não posso mais que aventar hipóteses, segundo as linhagens mais
ilustres do momento. Oh, mas esquecia-me de outra: acaso será herdeiro do
surrealismo, com alguma tintura de beatniks e de psiquedélicos da Califórnia e
arredores, e compraz-se em insultar o mundo, insinuando perversões horríveis, e
despejando sobre ele os palavrões sagrados, por extenso? Não? Não?! Então, meu
caro amigo, das duas uma: ou a sua poesia é um regresso aos velhos padrões arcádico-românticos,
e sem dúvida terá êxito ainda nos salões de uma profunda província, ou, na
verdade, o senhor é um poeta. E, sendo poeta, é-o de tal modo, que a sua poesia
não pode ser reconhecida, nem o senhor tem o direito de esperar que ela o seja.
Daqui a vinte ou trinta anos, quando estiver alquebrado, exausto, esgotado,
descrente da poesia a que sacrificou a sua vida e a de quantos tiveram a
desgraça de depender de si, talvez então comecem a reconhecer que o senhor
existe. Claro que muito a contragosto, muito de má vontade, com muita
reticência… Eles, meu caro, serão sempre os génios; o senhor será também um
génio, um génio imenso, um génio enorme, mas um génio mas, um génio adversativo. E
pode ter a certeza de que assim ficará nas histórias literárias: sempre com um mas tanto maior, quanto pior seja o génio
que não possam negar-lhe.
A poesia, querido amigo,
não é o que pensa, não. Ela não lhe pode trazer, se verdadeira for, essa
satisfação que transparece da sua tão trémula confiança em si mesmo. Isso, se
me permite que lhe diga, é uma ilusão da sua juventude. A poesia não é essa
alegria de fazer alguma coisa que nem todos os outros fazem, e que eles aliás
desprezam. Não é também esse prazer enganoso de que possui com palavras o amor
que lhe escapa, as coisas que não consegue, as ideias que perpassam na sua
cabeça, antes ou depois da solidão. A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não
a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão
em si, vivendo-se à sua custa. Já pensou no que isso é? Por ela, o senhor será
egoísta, sendo altruísta; será mesquinho, sendo nobre; trairá tudo, para ser
fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de
horror, penetrar lá onde supõe que o "si mesmo" está para lhe fazer
companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe,
ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu, sim, mas também ele o
senhor vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como
abstracção do que o senhor pensa e escreve, e que, por sua vez, é já uma
abstracção do que o senhor viveu ou não. Medite um pouco no significado
terrível deste ou não, e nunca mais escreva versos ou prosa poética, ou lá que
é que escreve para se julgar poeta.
Se for um poeta de verdade,
meu caro, o melhor é com efeito não escrevê-los, e deixar de o ser. Porque a
única alternativa é pavorosa: ou prostituta, dando à cauda, entre as madamas;
ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva, ainda quando só tenha visões
de anjos tocando flauta, numa apoteose (ou epifania, que é mais elegante, e era
o que o Joyce dizia). Guarde os versos, rasgue os versos, esmague os versos,
arrase com eles. É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo
resto da vida? Se é, meu caro amigo, então não mande os seus versos a ninguém,
não peça opiniões que ninguém pode dar-lhe, não espere conselhos de uma
experiência que é pessoal e intransmissível, não solicite uma atenção que não
haverá quem lha conceda. A menos que, para fim de festa, pretenda tirar, para
seu uso, a contraprova de que a humanidade como humanidade, os povos como
povos, as nações como nações, as classes como classes, os grupos como grupos
são sempre colecções mais ou menos numerosas de infames bestas. Ou a
contraprova de que, individualmente, ninguém vale para além do orgasmo, ou do
olhar de simpatia, ou do gesto de ternura. Ainda quando sejam poetas, meu caro,
ainda quando o sejam.
Não lhe estou dizendo que
não publique os versos, uma vez que tenha ânimo e força para aguentar-se no
equilíbrio instável entre a condição de prostituta e a condição de monstro. Na
verdade, se a tentação que sente é irresistível de escrevê-los, se não procura
a fama ou o proveito, se a dor de escrevê-los só se cura com a dor maior de
escrever outros, se se sente vazio e triste quando eles estão escritos, e sofre
de sentir-se vazio quando vai escrevê-los, e não sabe nunca o que vai escrever,
e acha horrível tudo o que escreveu mas não é capaz de destruí-lo, então
publique-os, publique-os sempre. E mande-os a toda a gente. Toda. Mas não peça
opiniões ou conselhos a ninguém. Deixe que eles todos fiquem amarrados, para
sempre, à culpa de o não terem lido, de o não terem sentido, de o não terem
admirado. Dê-lhes, se a glória tiver de ser sua, o castigo da sua glória,
implacavelmente. No fim das contas, lá onde nas trevas os dentes lhe rangem
furiosamente, que isto lhe sirva de alguma consolação: todos eles passarão,
como os ratos passam. Mas alguma coisa não passará, por mais que na morte, no
silêncio, na paz dos túmulos ou das histórias literárias, se desfaçam em
tranquila cinza: essa culpa que, dentro de alguns anos, será tudo o que se
recordará deles todos tão poetas, tão aplaudidos, tão queridos das damas e/ou
dos efebos, e tão estudados, tão bibliografados, tão comemorados, tão tudo o
que lhe terão recusado entre dois abraços e dois sorrisos. Outros ratos virão —
mas a culpa fica. Bem sei, meu caro, que não adianta muito, sobretudo se a
gente não acredita na imortalidade, ou mesmo que acredite. Consola porém alguma
coisa. E dá coragem à gente até ao poema seguinte. É quanto basta. Ou tem de
bastar, porque não há mais nada.
Sempre seu (que o manda
para o Inferno que é nossa província)
Jorge de Sena
*
Datada de 29 de agosto de 1966, esta 'carta' foi enviada
ao poeta Walmir Ayala (1933-1991), para uma antologia temática que permanece
inédita (Cartas aos jovens
poetas brasileiros).
O texto foi publicado pela primeira vez no JL-Jornal de Letras, Artes e Idéias, de Lisboa, a 10 de novembro de 1981, p. 5
A Correspondência entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de
Sena (3. ed, Lisboa, Guerra & Paz, 2010) nos traz alguns dados sobre o
texto, a seguir transcritos.
De Lisboa, a 27 de junho de 1966, escreve
Sophia: "Do
Brasil vim com a incumbência de reunir colaboração portuguesa para o volume
organizado pelo Walmir Ayala. O Walmir Ayala vai incluir "uma carta a um
jovem poeta" que a Cecília Meireles deixou inédita. Encarecidamente lhe
peço para este volume a "sua carta a um jovem poeta". Creio que é a
primeira vez que no Brasil se publica um livro escrito simultaneamente por
portugueses e brasileiros. A ideia parece-me óptima." (p.99)
Do Wisconsin, a 30 de agosto de 1966, responde Sena: "Só agora me foi possível compor a carta que me
é solicitada pelo seu convite e do Walmir Ayala. Aqui lha mando — é uma coisa
muito amarga e muito rude, mas por certo temperará o conjunto. Espero que lhe
agrade como sincera coisa minha" (p.102).
http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/escritos-pessoais/carta-a-um-jovem-poeta/
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