autografia I
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo
uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último
glaciar da terra
O meu nome está farto de ser escrito
na lista dos tiranos: condenado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta
ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro é moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar
a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente
suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo
a tua boca
porque tu és o dia porque
tu és
a terra onde eu há milhares
de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente — tenho visto qualquer
coisa
Viagens a Paris — já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião — não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais — também, já por cá passaram.
Eu sou, no sentido
mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão
por hálito
os amigos
que tive as mulheres que assombrei
as ruas por onde passei
uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido
ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea
ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago
um certo peso extinto nas costas
a servir
de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens
ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra
em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias
nos jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido
de manhã encontrado perdido
entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!
(CESARINY, Mário. Pena capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2, p. 36-38. 1.ª edição: 1957)
[O
poema como palco: o sujeito poético em transformação]
“autografia I” é o primeiro de cinco poemas publicados sob o título “AUTOGRAFIA” em Pena capital, em 1957. Nas edições seguintes
do livro, as seções de I a V aparecem separadas e rearrumadas, assumindo, atualmente 24 , uma configuração bastante distinta daquela primeira publicação. Hoje, levam o título “autografia I” e “autografia II” as seções
I e III da versão original. O poema II não consta no livro
e as seções IV e V levam ambas o título de “poema”, cujos primeiros versos são “Reconheço este quarto impermeável”25 e “Faz-se luz pelo processo de eliminação das sombras”, respectivamente. Ainda que seja possível perceber ecos das outras seções ao longo deste trabalho,
interessa-me, aqui, abordar
a primeira parte do
poema, uma vez que é construída como uma apresentação de “um poeta” transfigurado
através do processo de escrita.
Quando
comparado aos dois poemas analisados no capítulo anterior [“tal como catedrais” e “you are welcome to elsinore”], “autografia I” parece apostar
em um caráter verborrágico, efeito produzido
pelo excesso de imagens que são construídas e por certa progressão rítmica, sentida no alongamento dos versos e das frases do
poema. Assim, se, na primeira
estrofe, lemos “Sou um homem
/ um poeta”, definições
simplórias do sujeito poético encerradas
dentro de um único verso cada, a partir do terceiro
verso, as descrições se tornam cada vez mais complexas, construindo imagens mais próprias
do universo surrealista, criadas a partir da mistura de níveis de experiência e de certa literalização das metáforas – processo percebido
na transformação progressiva pela qual passa o sujeito poético. Os dois versos finais do poema, em oposição às definições curtas do início, formam uma única frase, configurando o ponto máximo da construção frenética de imagens no poema e de certo aceleramento provocado durante sua leitura: “e que o homem-expedição
de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias / sou eu meu bem sou eu
partido de manhã encontrado perdido
entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!”.
Em cena, um sujeito que parece apresentar-se a uma segunda
pessoa, em busca de uma definição total do seu ser: “E para dizer-te
tudo / dir-te-ei
que [...] estou em franca ascensão
para ti”. O excesso de imagens e de tentativas de representação do sujeito que afirma constantemente um “eu sou”, ao contrário da coesão e do detalhamento esperados, leva ao constante apagamento desse enunciador. Para isto contribuem a repetição de artigos
indefinidos e o uso do plural como forma de indefinição, fazendo
com que as imagens
construídas vacilem, num processo de construção e destruição constante, o qual se alia ao projeto poético do surrealismo de Cesariny. Segundo
o poeta, “produzir um objecto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrado e do que foi perdido,
[...] é fixar, violentando a realidade ‘presente’, um novo real poético (uno)” (CESARINY, 1997, p. 89). Assim, as definições que conduzem ao aberto
parecem convocar a simultaneidade de todas as transformações pelas quais passa o
sujeito poético:
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido [...]
tenho um sol
sobre a pleura
[...]
a terra onde eu há milhares de anos vivo
a parábola
[...]
Quanto ao de toda a gente – tenho visto qualquer coisa Viagens a Paris – já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios
de ocasião – não
foram poucos
[...]
é por isso que eu trago um certo peso
extinto [...]
e que o homem-expedição de que não há notícias
nos jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido
entre lagos de incêndio e o teu retrato
grande!
(CESARINY, 2004, p. 36-38).
Seguindo o pacto de leitura proposto
por seu título e as repetições da expressão “eu sou”
ao longo do poema, torna-se
possível perceber um diálogo entre a composição de Cesariny e certa tradição
moderna da poesia no que tange à crise da figuração do autor. Em sua leitura da “morte do autor” barthesiana, Manuel Gusmão afirma que a crítica do semiólogo francês sobre a representação do autor como pai e proprietário da obra, apesar de incontornável, ao apostar na “instituição do ‘anonimato transcendental’[,] dissolve sem resolver
demasiados problemas” (GUSMÃO,
2000, p. 268). Nesse sentido,
Gusmão propõe um recuo à poética rimbaudiana para abordar essa questão, introduzindo a noção de alterização que “permite, sim, figurar um acontecimento de linguagem, um acontecer da escrita ou da poesia:
difere a fonte da voz, mas evita o anonimato
transcendental” (GUSMÃO, 2000, p. 269). Identificando a poética do fingimento pessoana
à alterização identificada na poesia de Rimbaud, o crítico português
aponta que “a autoria em Fernando Pessoa
exibe a forma de um diálogo múltiplo
e descentrado, que cruza génese
de escrita e construção
retroactiva da imagem ou da figura autoral”
(GUSMÃO, 2000, p. 272). Sugere, então, que a figura do “autor” na obra pessoana se dá, justamente, a partir da escrita e não existe a priori desta.
Em “autografia I”, Cesariny parece se aproximar
da poética de Fernando Pessoa nesse ponto, uma vez que podemos perceber como o “autor” nega sua posição de anterioridade em relação à obra, indicando que sua identidade emerge como um efeito do próprio ato de escrita. Assim, na rasura sobre o título do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa,
Cesariny aponta a necessidade da apropriação dos textos
alheios não apenas para o
empreendimento do trabalho de escrita, mas para a construção do sujeito poético
cesarinyano, estabelecendo,
portanto, um jogo bio/biblio-gráfico desde o título
do poema. Com a expressão
“autografia”, o poeta parece definir uma escrita e uma inscrição
de si, como se estas fossem responsáveis simultaneamente por um “autógrafo” e por uma “autobiografia”.
Com o apagamento do sintagma [bio-], constituem-se os termos que dão título às duas
artes poéticas em questão – autopsicografia e autografia. No título do poema de Pessoa, tal apagamento indicaria a cisão modernista entre a vida do autor e seu trabalho de escrita.
Porém, se Pessoa substitui [-bio] por [-psico], Cesariny
abole ambos, reforçando os significados dos dois afixos que se encontram
nos extremos da palavra: [-auto] e [-grafia], permitindo um alargamento dos significados que cada um dos termos carrega26. A operação de supressão dos dois sintagmas anteriores mostra-se, assim, de fundamental importância para a compreensão da poética que Cesariny apresenta nesse poema e indica que a escrita
é concebida como forma de constituição do sujeito, o qual assume simultaneamente os papéis
de criador e criatura, autógrafo e autografado.
As três estrofes
de “autografia I” parecem subverter
a estrutura rígida de teorema de “Autopsicografia”, na qual, na primeira estrofe,
apresenta-se uma proposição que será justificada
ao longo das estrofes seguintes. Seguindo a leitura
de Gusmão, o primeiro verso
do
poema
pessoano, “[o] poeta é um fingidor” (PESSOA,
1985, p. 164), funciona
como um aforismo no qual a 1a pessoa sugerida
pelo “auto” do título transforma-se em uma 3a pessoa, “o poeta”,
o qual “designa a classe
dos poetas” (GUSMÃO,
2000, p. 274). Como diversas vezes notado, o fingimento do poeta não deve ser tomado em uma dimensão
moral, mas como uma
manifestação “da ordem
o artístico ou do estético, da ficção” (GUSMÃO,
2000, p. 275).
A identificação daquele
que afirma “[eu sou] um poeta”, em “autografia I”, com “o poeta” que representa toda a classe de poetas em “Autopsicografia” é uma forma de deslocamento da lição de poética de Pessoa, levando-nos a crer que o “poeta”
de Cesariny poderia ser, também, “um fingidor”. Nesse movimento, porém, a reiteração da 1a pessoa do singular expressa pelo título e as sucessivas definições que o sujeito
reclama para si parecem indicar uma transformação radical do fingimento pessoano, mostrando um outro modo de
estar em poesia, no qual a enunciação
poética funciona como a fundação efetiva de um novo sujeito no mundo. Assim, a repetição
do verbo “ser” ao longo de todo o poema de Cesariny, mesmo quando eclipsado, reforça
a ideia de definição do sujeito como um corpo poético,
configurado pelos encontros
“no processo de escrita-e-leitura” (GUSMÃO, 2000, p. 275). Ao afirmar,
ainda,
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
(CESARINY, 2004, p. 37),
a falta de uma vírgula
que separe o aposto “no sentido mais enérgico [...]”
de “uma carruagem de propulsão [...]”,
aponta que aquilo
que se diz “no sentido
mais enérgico da palavra” é a afirmação
anterior à virgula:
o “eu sou”. Na “propulsão por hálito”, percebemos como a identidade
que se constrói ao longo do poema surge como resultado do encontro com o outro, reforçada, ainda, pela dimensão
física de tal encontro.
Assim
como nos poemas anteriores, o “eu” do poema de Cesariny pronuncia
um “tu” ao longo do poema. Como o “tu” de “tal como catedrais” com o qual o “obreiro”
teria consumado sua obra, aquele que é interpelado em “autografia I” parece ser um “tu” amante,
profundamente implicado no processo de transformação do “eu-lírico”. Na primeira estrofe, vemos como esse outro figura no interior da cena da transformação do “poeta”:
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
(CESARINY, 2004, p. 36).
O advérbio “agora”, nessa passagem,
leva-nos a crer que se trata, justamente, do momento da leitura, daquele em que lemos esses versos. Nesse sentido, a interpelação de um “tu” indica uma mudança profunda
na ligação entre o poeta e seus leitores em relação ao expresso no poema
de Pessoa. Se, para o modernista, a primeira pessoa anunciada pelo título esconde-se num generalizante “o poeta” e a referência aos leitores se dá em termos de um distante
“os que leem o que escreve”, para o surrealista, parece tratar-se de uma relação
íntima entre aquele que diz “Eu sou” e chama-nos
por “tu”. Afirma ainda
conheço
a tua voz como os meus dedos
(antes
de conhecer-te já eu te ia beijar
a tua casa)
(CESARINY, 2004,
p. 36).
A expressão “[e] assim”, com a qual se inicia
a terceira e última quadra
de “Autopsicografia”, forma
de conclusão que pretende encerrar
a tese apresentada nas duas estrofes anteriores, aparece transformada por Cesariny num pouco esclarecedor “[e] para dizer-te
tudo”, outra maneira
de concluir um percurso de apresentação e definição de uma poética.
A explicação final,
contudo, conduz a ainda outro processo de transformação do corpo
poético cuja mais potente definição
seria a do “homem-expedição”, possível
encontro com o “não evoluo. VIAJO” (PESSOA, 1962, p. 209), de Pessoa.
No ensaio “Fernando
Nogueira Pessoa Autoractor”, Cesariny acusa Pessoa de não ter
vivido inteiramente sua poética, algo que seria totalmente avesso à concepção
de poética do surrealista, identificado com o projeto vanguardista de dissolução das fronteiras entre arte e vida. Para o nosso
poeta,
[o] “não evoluo,
viajo” e a explicação do surgimento dos heterónimos, nas duas cartas a Casais Monteiro,
são o naufrágio à vista do continente que os surrealistas haviam de desbravar, por operação inversa,
mas de signo idêntico, à da poética fernandina. [...] Porém, a “loucura”
de Pessoa não sai nunca da “linha de razão”.
É metodológica (CESARINY,
1985, p. 72).
A crítica do “homem-expedição” ao viajante reside na tentativa
de “explicação” racional
do funcionamento da criação
e no balizamento lógico da poesia de Pessoa, com os quais,
de certa forma, é preservado o “insofrimento aristocrático do poeta” (GUSMÃO,
2000, p. 275).
Já em “autografia I”, o sujeito
poético está em uma posição diametralmente oposta à do poeta modernista. Se Gusmão afirma que “a cena da escrita e da leitura figurada no
poema [de Pessoa] é regida
por uma assimetria iniludível, porque a dor lida não é nenhuma das que o poeta
teve” (GUSMÃO, 2000, p. 277) e que “[e]ssa dissimetria diz o excesso
e a determinação da escrita
sobre a leitura”,
o poeta em cena no poema de Cesariny parece identificar-se mais íntima e solidariamente com “os que leem” do que com “o poeta [que] é um fingidor”. Portanto, a “operação autobiográfica do leitor”
(GUSMÃO, 2000, p. 277)
desencadeada no ato da leitura
parece ser aquela
pela qual passa
o “poeta” no poema de Cesariny. Assim,
sofre, como um corpo único,
uma contínua transfiguração ao longo do poema, ao passo que Pessoa se compartimentara para permitir as transformações do sujeito.
No texto “Para uma cronologia do surrealismo em português” (CESARINY, 1985, p. 261-282), Cesariny
afirma que
[o] que em Fernando Pessoa interessou profundamente os surrealistas foi o desligar da corrente
alterna que ligava há séculos
o discurso racionalista ao princípio de identidade, foi a destruição
do conceito (válido)
de “personalidade” (da “personalística contemporânea”, escrevi, em 1948), e não, nunca, o da sua divisão, compartimentação ou dispersão. A ‘operação cirúrgica’
levada por Pessoa ao motor central
da psique moveu a gestação de quatro maravilhosos monstrozinhos que cantam todos
juntos a morte do super-racionalista seu pai (CESARINY, 1985,
p. 262-263).
Nesse
fragmento, podemos perceber
como Cesariny reconhece como valoroso o desenvolvimento de uma poética na qual se “desligava” o “discurso racionalista ao princípio de identidade”. Condena, entretanto, a “operação cirúrgica” de criação da heteronímia, a compartimentação de um em muitos, crítica que vemos desenvolvida em “autografia I”, onde a possibilidade de transformação de um mesmo
sujeito é demonstrada em profusão. No “Prefácio” à Poesia de Teixeira de Pascoaes, Cesariny
compara a obra dos dois poetas e afirma
que, na poesia do saudosista, “o Poeta recusa o mero lirismo
catalogante [...] e é
enfim Vidente, ‘possuidor das forças das coisas superiores e das coisas inferiores que se dermos a volta à esfera trocam posições’”
(CESARINY, 1972, p. 12), ao passo que, a respeito de um poema de Pessoa, Cesariny
escreve: “muito belo.
Dizer apenas ‘bonito’
seria ingratidão” (CESARINY,
1972, p. 11).
A temática da constituição da “autoridade” emerge
não apenas em “autografia I” e nos poemas trabalhados nesta dissertação, mas é perceptível ao longo de toda a obra de Cesariny,
notadamente em alguns
ensaios publicados em As mãos na água, a cabeça no mar (1985),
como no já mencionado “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” e em “Razão e actualidade
de Gérard de Nerval”27. No primeiro ensaio,
publicado em maio de 1958, Cesariny pretende
subverter o significado cristalizado de “autoridade”, atribuindo a essa palavra um novo sentido:
“autoridade é do que é autor” (CESARINY, 1985, p. 75). O poeta
se apropria de dois termos tabus em meados dos anos de 1950, no Portugal de Salazar,
subvertendo a noção corrente segundo
a qual “o português é convidado a imaginar que o
fragmento de liberdade resulta do inchaço de autoridade; e, inversamente: que dum inchaço
da liberdade resulta
o fragmento da autoridade” (CESARINY, 1985, p. 74). Cesariny afirma crer ser seu “dever
de cidadão e de autor
[...] declarar as seguintes palavras
fundamentais” (CESARINY, 1985,
p. 75):
AUTORIDADE E LIBERDADE
SÃO UMA E A MESMA COISA
Autoridade é do que é autor.
Só a autoridade confere autoridade.
A autoridade não é uma quantidade.
Todo o homem é teatro
de uma inexpugnável autoridade.
Aquele que julga ser possível autorizar ou desautorizar a autoridade de outrem não sabe no que se mete.
Liberdade.
A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só. Mas são mais reverbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moda corrente
do libertino.
Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar a água. Pode-se
pô-lo a morrer, pendurado
no ar, ou à dentada,
com cães.
Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade
que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra
o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto
mais livre mais capaz.
Do cadáver do homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro
– nunca sairá escravo.
Autoridade e liberdade
são uma e a mesma coisa
(CESARINY, 1985, p. 75).
Nesse
fragmento do ensaio-poema, Cesariny defende ser “dever” do cidadão e do autor uma atitude de resistência que se instancia
no próprio ato de escrita,
no qual a reivindicação e a conquista
de sua autoridade são a própria liberdade, indicando a dimensão
ética da poesia cesarinyana.
No outro ensaio,
publicado pela primeira
vez em 1956, Cesariny elenca
citações de diversos poetas que tematizam a questão da autoridade em poesia. Afirmando
que “Nerval antecipa-se
a toda a modernidade” (CESARINY, 1985, p. 51), o português
faz a seguinte lista:
“Eu sou o outro” (Gérard
de Nerval). “Je, est un autre.” (Rimbaud). “Eu não sou eu / Eu não nasci ainda!” (Teixeira
de Pascoaes). “Ah, poder ser tu, sendo eu!” (Fernando Pessoa
em estado de labirinto, como se efectivamente tivesse
conhecido o outro). “Eu não sou eu nem o outro” (Mário de Sá-Carneiro). “Não há na terra um único ser humano capaz de se declarar, com toda a certeza, quem é. Ninguém
sabe o que veio fazer a este mundo, a que correspondem os seus actos,
os seus sentimentos, as suas ideias, nem qual é o seu nome verdadeiro.” (Léon Bloy, citado por Borges) (CESARINY, 1985, p. 51).
A essa sequência, poderíamos incluir o “eu sou, no sentido
mais enérgico da palavra” que lemos em “autografia I”.
Aceitando a complementaridade dos dois ensaios, podemos ver como a “autoridade” de Cesariny é constituída por uma complexa relação entre arte e vida, na qual se observa um compromisso ético que instaura o franqueamento das fronteiras entre ambas. Esta parece ser um desdobramento da primeira crítica de Cesariny
à poesia de Fernando Pessoa e a ressalva
fundamental que a ela fazem os poetas contemporâneos do surrealista 28 :
a
aparente
inexistência de um compromisso ético na poética
pessoana. Rosa Maria Martelo, em “Cenas
de escrita” (2010), afirma que “a representação do poeta [Cesariny] se situa nos antípodas
(surrealistas) da cisão modernista entre escrita e vida, ou seja, muito longe das poéticas cujo empenhamento é essencialmente textual
ou textualista” (MARTELO, 2010, p. 329).
Nesse sentido, a “autografia” que se consuma nesse poema é, de fato, inscrição
e construção de um
corpo/corpus dependente do trabalho de escrita para sobrevivência e como exercício de conquista da liberdade29. Apesar de se aproximar
dos poetas do Orpheu, para os quais, “[é] o poema
mesmo que cria a realidade
que nós tocamos depois de o ter lido. Não é descrição,
nem
comentário, nem alusão,
nem símbolo, nem mesmo sugestão. [...] O mundo que há é esse que o poema faz existir ou inexistir” (LOURENÇO,
1987, p. 145), confirme anotou Eduardo
Lourenço, a poesia de Cesariny
parece mais comprometida com a luta “contra o que nos oprime” (CESARINY, 1985, p. 75). Dessa forma, a emergência de um autor no ato da escrita é, também,
a emergência de um sujeito
no mundo que, apesar se esconder atrás de sua “gabardina”, pode “ser visto à noite na companhia
de gente altamente suspeita”. Para Martelo, “[o] que vemos na cena de escrita representada por Cesariny é a própria
implicação surrealista da escrita numa aventura que é, antes
de mais, vivencial, quotidianamente vivida” (MARTELO,
2010, p. 329). Assim, se a dor sobre a qual o poeta pessoano finge/elabora/esculpe – para poder transpor ao poema e, assim, fazer com que os leitores conheçam uma nova dor – é uma dor não localizada
dentro de uma experiência de mundo, no poema
de Cesariny, a “dor” é circunstanciada: são “os dias e os anos deste século [que] têm gritado tanto no meu peito”.
No filme documentário que lhe é dedicado, Autografia30, Cesariny afirma:
“nunca escrevi um poema em casa”, mostrando que concebe sua escrita como uma atividade
que só poderia ser feita a partir do contato com o mundo, com o cotidiano. Não escrevia em casa,
pois via como necessários o estar na rua e o encontro com as pessoas nos cafés, era preciso
ver e
ser visto. Reforça,
assim, o caráter
“engajado” de sua obra: não se pode dar as costas ao mundo,
uma vez que o poeta com ele se encontra
para a escrita do poema.
Quando lemos “autografia I”,
portanto, vemos que não se trata da inserção de marcas de sua vida pessoal, ou civil31, na poesia,
mas da criação de um corpo poético apenas existente porque
criado pela poesia. Trata-se, assim, do movimento
inverso: da invasão
da arte na vida.
A metamorfose do sujeito poético,
múltiplo à medida que o poema não apenas o configura, mas é capaz de o transfigurar continuamente, dá-se a partir de uma apropriação do mundo que se inscreve
no próprio corpo do poeta, o qual, como vemos no fim da segunda estrofe, afirma
que “é por isso que eu trago um certo peso extinto
/ nas costas / a servir de combustível”. Portanto,
a criação do corpo pela poesia não se dá somente como efeito do que o próprio Cesariny escreve,
uma
vez
que
percebemos
uma
herança
artístico-literária
fortemente representada em sua obra, como temos visto ao longo deste estudo. Dessa maneira,
o encontro do poeta com sua herança cultural é também definidor
da relação que estabelece com o mundo
à sua volta.
Talvez
este seja o mesmo movimento que observamos no capítulo anterior, quando trabalhamos com o poema “tal como catedrais”. Como vimos, foi na condição
de leitor de poesia que o “obreiro”
pôde construir sua nova “Obra”.
No poema desta seção, o suposto “eu- lírico” de Cesariny também se apropria
de outras poéticas
para se transformar em “homem- expedição”, naquele que busca uma “outra espécie de fim, para as coisas que são”, ou que acha “que as paisagens
ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas / para não termos de atirá-las
semi-mortas à linha”. Assim, a posição
de leitor que assume Cesariny
é o que o distingue profundamente do poeta
“fingidor” pessoano. Na condição de leitor, é trans/con-figurado pelo poder da linguagem poética
e pode reivindicar sua autoridade e um lugar de poeta em seu tempo. Novamente, seu texto parece depender do encontro com o
outro: corpo ou texto amante.
__________________
24 A edição mais recente e a última revisada por Mário Cesariny,
aquela que podemos chamar de “definitiva”:
CESARINY, Mário. Pena capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
25 Este poema recebeu uma ótima análise no
ensaio “O Corpo-Cesariny-surrealista”, de Ana Cristina Joaquim.
Revista
Convergência Lusíada, nº 33.
Rio de Janeiro, janeiro – junho, 2015.
26 Dessa forma, a expressão de Cesariny parece guardar ainda outro sentido: a escrita (grafia) automática. Um dos pilares da prática do Surrealismo, a escrita automática
consistia em burlar a racionalidade, a lógica, através de uma escrita que emergia num estado de “desatenção” (BRETON, s/d, p. 195).
27 É interessante notar
que ambos os ensaios
foram publicados originalmente em datas muito
próximas à do lançamento de Pena capital, em 1957, levando
a crer que este era um tema relevante para Cesariny durante esse período. A ordem cronológica das publicações é “Razão e actualidade de Gérard de Nerval”
(1956), Pena capital (1957) e “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” (1958).
28 Uma reação poética muito conhecida
e abordada pela crítica à “poética do fingimento” de Pessoa
é a “poética do testemunho” fundada
por Jorge de Sena, especialmente defendida em seu Prefácio à Poesia I (1961). Neste, Sena afirma que “[t]ambém para mim, a poesia não é de facto um fingimento. [...] repugnou-me sempre a parte de artifício,
no mais elevado sentido de técnica de apreensão das mais virtualidades, que um tal ‘fingimento’ implica. [...] Há muito de orgulho desmedido nesse ‘fingimento’, que contrasta, quanto
a mim, com a humildade expectante, a atenção discreta,
a disponibilidade vigilante, com que, dando de nós mais que nós mesmos, testemunhamos do mundo que nos cerca,
como do mundo que, vivendo-o, nós próprios cercamos do nosso material cuidado. É que à poesia, melhor que a qualquer
outra forma de comunicação, cabe, mais que compreender
o mundo, transformá-lo. [...] Se o ‘fingimento’ é, sem dúvida, a mais alta forma de educação, de libertação e esclarecimento do espírito enquanto
educador de si próprio e dos outros,
o ‘testemunho’ é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque
nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais
inscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos” (SENA, 1961, p. 11).
29 Muitas são as definições de liberdade que encontramos nos escritos de Cesariny. Todas elas, no entanto,
parecem insistir em um ponto comum: “a liberdade
não é uma coisa que se dá, ou se recebe, como um presente de Natal! A liberdade é algo que se arranca a quem, homem, coisa, ou ideia, traz o hábito
do carrasco. Não existe homem livre senão na conquista da
liberdade” (CESARINY,
1985, p. 97, grifo meu)
30 Autografia. Direção de Miguel Gonçalves Mendes, produzido
por JumpCut. Lisboa: Atlanta
Filmes, 2004.
31 Cf. António Carlos Cortez – “Mário Cesariny ou os caminhos de uma poética”,
Relâmpago, Nº 26, abril de 2010: “No cerne da poesia de Cesariny,
o que encontramos é a expressão de uma vida assumidamente poética, como se entre a esfera civil
e a esfera ‘literária’ não houvesse qualquer
distinção” (op. cit.,
p. 58).
Maria
Silva Prado Lessa, O poema como
palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de
Janeiro, 2017.
Poderá gostar de ler algumas
cenas da escrita de Mário Cesariny:
- O depois da escrita de Cesariny: “tal como catedrais”.
- O
antes da escrita de Cesariny: “you are welcome to elsinore”.
- O sujeito poético em transformação: “a antonin artaud”.
- O poema como palco: “pena capital”.
CARREIRO, José. “autografia
I, Cesariny”. Portugal, Folha
de Poesia, 03-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/autografia-i-cesariny.html