domingo, 31 de outubro de 2021

Versos qu’o pai que foi p’o trabalho fez a sua filha, Vitorino Nemésio

 «Neste poema, o Autor procurou reproduzir, por meio do alfabeto convencional, as caraterísticas fonéticas do falar do povo da Ilha Terceira, recorrendo no entanto, quando as limitações do alfabeto não permitiam os efeitos desejados, a alguns sinais diacríticos do alfabeto fonético internacional.» (Nota de Luiz Fagundes Duarte à edição de 2006)




VERSOS QU’O PAI QUE FOI P’O TRABALHO FEZ A SUA FILHA

 

 

Tanta frieza, inha mãe!

Incarrilhaseste inverno:

Ei! Tantas lamas que têm

As istǐradas do rovêrno!

 

5

Gretasos pézes. E a lũa

É nova: têmosĕa feita!

Dês a medre e a faça nũa

Talhada só, forte e bũa,

Nacendo sãiscorreita.

 

10

Parece o paúl da Praia

O sarrado da luzerna.

Não há nem pisca na baia,

Mins ê nã sei se lá vaia,

Qu’ia cobrando ũa perna.

 

15

A gente só tem bandalhos

Que nem bandeiras do bodo.

Ist’é que são uns trabalhos!

P’í afora, nos atalhos,

A gente alagase todo.

 

20

Inda mal loze o biraco,

E toca a mundar a ǐeito,

C’o pão de milho no saco.

Isto faz dar o cavaco,

Mins é mundar, e cum geito.

 

25

Cando não, mê pai dá fé

De qu’a gente é calaceiro:

— Anda, Pedro, pũita pé,

Qu’o carneiro mocho inté

Já s’aluvanta prumeiro.

 

30

Maria, eh moça, que fazes?

Nã desapegas do qŭente.

Vê lá que pão é que trazes;

Toma tino, qu’os rapazes

São todos três de bum dente.

 

35

E agora, bota sintido,

Nã fiques comā ǐsmalmada,

Que já te tens devertido:

Quésêsse milho iscolhido

E essa bezerra tratada.

 

40

A gente torna de brebe

E qué ver já tuǐdo pronto.

O cordeiro alvo da neve,

Não há ninguêm que lo leve,

Anda por í comā tonto.

 

45

E ò meidia, eh ř’paria,

Anda cá, nã sei se m’oives:

Quésũa bũa papia

De farinha alva e macia

Pǎ vê se singana as coives.

 

50

Tês irmãos hoj’ vêm mais cedo,

Qu’é pǒ via da toirada.

Deixálos ir ò fòlguedo!

Vai se qués, nã teinas medo,

Que ficas bem arrumada.

 

55

Mins toma tento na bola,

Nã vaias fazê toliça;

Qu’ê já sei qu’o mesteiscola,

Qu’é filho do batesola,

ǐanos que te derriça.

 

60

Mins se topars algum moço

Da tua abetuaduira,

Nã le vires o piscoço:

Ruim cão que vê um osso

E nã lo passa à fressuira.

 

65

Qu’ò dispois, cando ele vinher

Tê comio pà licença,

Tê pai, c’o bem que te quer,

Vai dezer que sim, mulher,

Pâ cunsolar a criença.

 

70

Cásim vocês! Tamêm eu

Que ’stou aqui me casei.

E o pão alvo que Dês deu,

Apresantado no céu

Seja sempre, à bũa lei!

 

75

E adês! A Virze te impare

E te dê sorte, Maria.

E sejas o sol e o ar

Do moço que te luvar

Para a sua cumpanhia.

 


Vitorino Nemésio

Arco da Traição de Coimbra, 10VII1922

(Versos qu’o pai que foi p’ó trabalho fez à sua filha. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura/Direção Regional dos Assuntos Culturais (edição facsimilada, não comercial, do manuscrito original), 1979.

 


Na sua aparente singeleza, estes Versos dão conta de um jovem escritor que, em pleno processo de adaptação a um novo meio geográfico e cultural, tenta reconstituir poeticamente algumas realidades culturais, mas também sociais e económicas, da sua ilha natal – e que, sobretudo, procura registar pela escrita a fonética, o léxico e o ritmo da linguagem popular que lhe serviu de leito de aprendizagem da vida. Por isso realçarei alguns aspetos específicos do trabalho de representação – ou de alusão –, pela escrita, de alguns traços do falar terceirense, bem como de algumas peculiaridades socioeconómicas da ilha Terceira no primeiro quartel do século XX.

 

O jovem Nemésio tenta reproduzir neste poeminha (tal como viria a fazer, por exemplo, no conto Quatro prisões debaixo de armas, no romance Mau Tempo no Canal ou nos poemas de Festa Redonda), alguns traços fonéticos e fonológicos caraterísticos do falar da Ilha Terceira, que procurou reproduzir por meio do alfabeto convencional, recorrendo no entanto, quando as limitações do alfabeto não permitiam os efeitos desejados, a alguns sinais diacríticos do alfabeto fonético internacional. Tendo em conta que, mesmo assim, tais representações poderão constituir dificuldades para um leitor não familiarizado com o dialeto da Terceira, forneço aqui as descodificações e explicações necessárias para uma leitura tanto quanto possível correta do texto.

 

Foram respeitadas as grafias utilizadas no testemunho de base do poema; porém, sempre que foram detetadas, muito pontualmente, soluções do autor que não obedecem aos critérios por ele aplicados para idênticas situações, procedi à sua correção de acordo com a forma mais adequada presente no texto. As palavras que não constituem representações fonéticas específicas foram transcritas de acordo com a ortografia atual (teem > têm, veem (de vir) > vêm, êle > ele, ó (contração) > ò).

 

Símbolos gráficos utilizados pelo poeta para representar sons específicos:

 

ǎ, â, ā

Formas alternativas para a vogal oral médiabaixa semiaberta central [α] resultante de reduções ou de contrações como pra > pa [pα], como a > coma [ko’mα].

 

ĕ

Aproximante com valor da semivogal [j]: têmosĕa [‘temozjα] (por têmola].

 

ê

Vogal fechada [e] resultante de monotongação e também de apócope de [r]: ê, Dês, mê, fazê, tê, tê (por eu, Deus, meu, fazer, teu, ter).

 

ǐ

Semivogal [j], resultante de ditongação ou de resolução de hiato: tuǐdo, a ǐeito, há ǐanos (por tudo, a eito, há anos).

 

ǒ

Vogal [o], resultante de reduções como por > po [‘po].

 

ř

Consoante fricativa pósdorsouvular [r]: ř’paria [rpα’riα] (por rapariga).

 

ŭ

Aproximante com valor da semivogal [w]: quente [kwtə]

 

 

Principais fenómenos fonéticos representados:

 

Apócope do [r]: fazer > fazê, ver > vê, ter > tê, por > pǒ, querse > quése

 

Despalatalização das consoantes dorsopalatais [ɲ] e [ʎ]: tenhas > teinas, lhe > le, lho > lo

 

Ditongação da vogal [u] em posição tónica: tudo > tuǐdo, fressura > fressuǐra, tudo > tuǐdo, abetuadura > abetuaduǐra.

 

Ditongação da vogal tónica por influência (metafonia) de uma átona anterior: do quente > do qŭente, a eito > a ǐeito, há anos > há ǐanos (o diacrítico em <ŭ> e <ǐ> representa, respetivamente, as semivogais [w] e [j]).

 

Elevação da vogal [e] para [i]: escolhido > iscolhido, pescoço > piscoço, despois > dispois, sentido > sintido, engana > ingana, casem > casim

Elevação da vogal nasal [õ] para [ũ]: Consolar > cunsolar, bom > bum, mondar > mundar, companhia > cumpanhia, põete > pũite

 

Eliminação de hiato (por epêntese de consoante ou de semivogal ou por nasalização da primeira vogal): vier > vinher, não o > nã lo, a eito > a ǐeito, lua > lũa, boa > bũa

 

Monotongação: Deus > Dês, eu > ê, não > nã, teu > tê, quando > cando, adeus > adês, virgem > virze, meu > mê

 

Produção como [oj] do ditongo [ow]: coives, oives (do verbo ouvir)

 

Recuo das vogais anteriores para posteriores: alevanta > aluvanta, primeiro > prumeiro, levar > luvar

 

Síncope de [g] em posição intervocálica: comigo > comio, rapariga > ř’paria

 

Sonorização da consoante fricativa labiodental surda [v] para a aproximante bilabial [β]: breve > brebe (este fenómeno acontece também, por exemplo, em vassoura > bassoura, varrer > barrer).

 

 

Formas lexicais e vocabulário específicos:

 

Bandeiras do bodo [v. 16] Estandartes simbólicos usados nas cerimónias em honra do Espírito Santo.

 

Batesola [v. 58] Sapateiro remendão.

 

Bodo [v. 16] Distribuição gratuita de pão e vinho pelos Imperadores dos Sétimo e Oitavo Domingos do Pentecostes, no âmbito do culto do Espírito Santo. Sendo estes, na cultura popular tradicional dos Açores, as festividades mais importantes do ano, para as quais as pessoas vestem as suas melhores roupas, a expressão «roupa do bodo» referese à melhor roupa que se tem.

 

Brebe [v. 40] breve.

 

Bũa [v. 8] boa.

 

Cando não [v. 25] quando não.

 

Carneiro mocho [v. 28] Carneiro sem cornos, de nascença ou porque lhos cortaram.

 

Cásim vocês! [v. 70] casem vocês.

 

Cobrando [v. 13] quebrando.

 

Comio [v. 66] comigo.

 

Da tua abetuaduira [v. 61] da tua abotoadura. Que seja digno de ti.

 

De bum dente [v. 34] de bom dente. De bom gosto, que gosta de coisas (neste caso, de raparigas) boas.

 

Fazê toliça [v. 56] fazer toliça (por tolice, disparates)

 

Gretase [v. 5] gretamse. Ficar com gretas (feridas) nos pés.

 

Incarrilhase [v. 2] encarrilhase. Ficar enregelado por causa do frio.

 

Ingana as coives [v. 49] engana as couves. Qualquer alimento que se use para tornar mais saboroso o caldo de couves, uma das bases alimentares nos meios rurais pobres e remediados.

 

Inha mãe! [v. 1] minha mãe (aférese). A forma mais frequente é nha mãe.

 

Ismalmada [v. 36] esmalmada. Ficar desalmado, sem ação.

 

Istǐradas [v. 4] estradas. A forma mais correta seria istrǐadas, com ditongação da vogal tónica aberta por influência da vogal átona anterior (um fenómeno de metafonia, muito caraterístico da Terceira), aqui o [i] inicial que por sua vez resulta da elevação do [e] protético. Nemésio utilizou a semivogal <ǐ> para desfazer o grupo consonântico [tr].

 

Loze o biraco [v. 20] luz o buraco. A luz do amanhecer que entra pelo buraco da fechadura, ou por qualquer outra abertura da casa, sinal de que está na hora de sair da cama.

 

Lũa [v. 5] lua.

 

Mins [v. 13, 24, 55, 60] mas.

 

Mundar a ǐeito [v. 21] mondar a eito. Trabalhar sem parar.

 

Nã lo passa [v. 64] não o passa

 

Nã teinas [v. 53] não tenhas.

 

Nũa [v. 7] numa.

 

P’í afora [v. 18] por aí afora.

 

Pà licença [v. 66] pà (de para a > prà) licença. Para pedir a mão da noiva ao pai.

 

Pão alvo [v. 72] Pão de farinha de trigo peneirada (e daí alva), para o distinguir do de farinha não peneirada (escura). Ter pão alvo em casa era sinal de serse remediado.

 

Papia [v. 47] [pα’piα] Espécie de biscoito, de forma redonda e achatada, feita à base de farinha e açúcar e com sementes de funcho.

 

Pisca [v. 12] um quase nada.

 

Pǒ via [v. 51] por via. Por causa.

 

Pũita pé [v. 27] põete a pé.

 

Qu’ó dispois [v. 65] porque ao depois.

 

Que te derriça [v. 59] Que está interessado em ti (namoro).

 

Ř’paria [v. 45] rapariga. Notese a síncope do [g] intervocálico, muito frequente (como também em amiga > amia).

 

Roverno (Estradas do) [v. 4] governo (Estradas do). Estradas nacionais. Forma atualmente não usada na Terceira, deverá têlo sido nos tempos de infância do poeta.

 

Ruim cão que vê um osso e nã lo passa à fressuǐra [vv. 6364] Mal faz quem não aproveita bem aquilo que de bom tem pela frente.

 

iscorreita [v. 9] sã e escorreita. Que nasceu saudável e sem defeitos. A sequência <sã e es> é reduzida ao ditongo nasal [ãj].

 

Sarrado [v. 11] cerrado. Parcela de terreno agrícola, cercado por muros, caraterístico da paisagem açoriana. Assimilação da vogal átona [e] à tónica [a].

 

Te impare [v. 75] te ampare.

 

Têmosĕa [v. 6] têmola.

 

Trabalhos [v. 17] Preocupações, dificuldades, sofrimento.

 

Vaia [v.13] vá. Primeira pessoa do presente do conjuntivo do verbo ir.

 

Virze [v. 79] Virgem.

 

* * *

 

De facto, neste poema, e como definiria Nemésio, a linguagem é alusão: o que aqui interessa não é o documentário etnográfico, nem tão pouco o pitoresco interpretado pelo poeta a partir da vivência nos meios rurais remediados. O que interessa é a inventariação, poeticamente produtiva, de traços distintivos de cariz linguístico, socioeconómico e sociocultural que o poeta utiliza como meio de comunicação: é a procura de formas linguísticas através das quais, depois de reavaliadas como linguagem, o poeta representa a sua própria realidade – e essa realidade tinha muito de imaginação. Era a isso que se referia Wittgenstein, na frase mais atrás citada e que vale sempre a pena recordar: «é óbvio que um mundo imaginado, por muito diferente que seja do real, tem que ter algo – uma forma – em comum com o real».

Naturalmente.

 

Excerto de “Vitorino Nemésio – Linguagem – Alusão”, Luiz Fagundes Duarte. Os palácios da memória: ensaios de crítica textual. Imprensa da Universidade de Coimbra, junho 2019, pp. 339-348.

Publicação original em: «Nemésio – linguagem – alusão». In Hoisel, Evelina; Ribeiro, Maria de Fátima (2007) (orgs.). Viagens. Vitorino Nemésio e Inteletuais Portugueses no Brasil. Salvador: Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, pp. 215-223.




CARREIRO, José. “Versos qu’o pai que foi p’o trabalho fez a sua filha, Vitorino Nemésio”. Portugal, Folha de Poesia, 31-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/versos-quo-pai-que-foi-po-trabalho-fez.html



sábado, 30 de outubro de 2021

Maravilha-te, memória!, Fernando Pessoa


Maravilha-te, memória!

Lembras o que nunca foi,

E a perda daquela história

Mais que uma perda me dói.

 

Meus contos de fadas meus —

Rasgaram-lhe a última folha...

Meus cansaços são ateus

Dos deuses da minha escolha...

 

Mas tu, memória, condizes

Com o que nunca existiu...

Torna-me aos dias felizes

E deixa chorar quem riu.

 

Fernando Pessoa, 21-8-1930

 

Fonte: Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990), p. 162.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2642

 



 


Síntese escrita da análise do poema “Maravilha-te, memória!”, de Fernando Pessoa ortónimo.

Este poema tem como temática dominante a nostalgia da infância. A primeira estrofe reflete uma interpelação à memória, um diálogo com esta, em que o sujeito se fragmenta, dialogando com a memória e invocando a imaginação. Temos também presente, ainda na primeira estrofe, um paradoxo, pois é impossível lembrar-se de algo que nunca aconteceu, o que remete para a nostalgia da infância, onde há uma memória vaga de algo que até pode nem ter acontecido, mas, devido ao seu distanciamento temporal, é criada a ideia da sua existência. Vemos muito presente uma dicotomia entre o passado e o presente, quer na primeira estrofe, quer ao longo de todo o poema.

A segunda estrofe apresenta o imaginário infantil, nos versos 5 e 6, ao referir-se aos “contos de fadas”. Nos versos seguintes, é-nos apresentada uma metáfora, que tem várias interpretações possíveis; refere-se, como todo o poema, ao distanciamento entre a infância e o presente, indo buscar desta maneira um pouco da temática da dor de pensar, no sentido em que o raciocínio constante tirou-lhe a inconsciência em que vivia na infância, por isso os seus “cansaços” são “ateus”, são cansaços inúteis, o sujeito poético não tem força para acreditar em mais e sair desse ciclo de cansaços, os quais não têm solução.

Na terceira estrofe, começamos com um claro contraste com o que foi dito na estrofe anterior, sendo usado, mais uma vez, o paradoxo que vimos no segundo verso. É usado o imperativo, como uma tentativa de voltar aos seus bons dias, através da memória, da nostalgia da infância já referida anteriormente, e não pela experiência factual. No último verso, para finalizar, vemos a, tão presente ao longo do poema, dicotomia entre o presente e o passado, ao usar tempos verbais que assim o indicam; também vemos aqui uma fragmentação do sujeito, pois o “quem” a que o sujeito poético se refere pode ser interpretado como sendo ele mesmo, ligando assim à infância feliz e o distanciamento dessa altura.

 

Alunos Daniela Mendes, Adriana Gonçalves, Norberto Ferreira e Bernardo Martins do 12.º ano de escolaridade, na Escola Secundária de Albufeira, Ano letivo 2017-2018



 

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CARREIRO, José. “Maravilha-te, memória!, Fernando Pessoa”. Portugal, Folha de Poesia, 30-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/maravilha-te-memoria-fernando-pessoa.html