Maravilha-te, memória!
Lembras o que nunca foi,
E a perda daquela história
Mais que uma perda me dói.
Meus contos de fadas meus —
Rasgaram-lhe a última folha...
Meus cansaços são ateus
Dos deuses da minha escolha...
Mas tu, memória, condizes
Com o que nunca existiu...
Torna-me aos dias felizes
E deixa chorar quem riu.
Fernando Pessoa, 21-8-1930
Fonte: Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando
Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa:
Ática, 1956 (imp. 1990), p. 162.
Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2642
Síntese escrita da análise do poema
“Maravilha-te, memória!”, de Fernando Pessoa ortónimo.
Este
poema tem como temática dominante a nostalgia da infância. A primeira estrofe
reflete uma interpelação à memória, um diálogo com esta, em que o sujeito se
fragmenta, dialogando com a memória e invocando a imaginação. Temos também presente,
ainda na primeira estrofe, um paradoxo, pois é impossível lembrar-se de algo
que nunca aconteceu, o que remete para a nostalgia da infância, onde há uma
memória vaga de algo que até pode nem ter acontecido, mas, devido ao seu
distanciamento temporal, é criada a ideia da sua existência. Vemos muito
presente uma dicotomia entre o passado e o presente, quer na primeira estrofe,
quer ao longo de todo o poema.
A
segunda estrofe apresenta o imaginário infantil, nos versos 5 e 6, ao
referir-se aos “contos de fadas”. Nos versos seguintes, é-nos apresentada uma
metáfora, que tem várias interpretações possíveis; refere-se, como todo o
poema, ao distanciamento entre a infância e o presente, indo buscar desta
maneira um pouco da temática da dor de pensar, no sentido em que o raciocínio
constante tirou-lhe a inconsciência em que vivia na infância, por isso os seus
“cansaços” são “ateus”, são cansaços inúteis, o sujeito poético não tem força
para acreditar em mais e sair desse ciclo de cansaços, os quais não têm solução.
Na
terceira estrofe, começamos com um claro contraste com o que foi dito na
estrofe anterior, sendo usado, mais uma vez, o paradoxo que vimos no segundo
verso. É usado o imperativo, como uma tentativa de voltar aos seus bons dias,
através da memória, da nostalgia da infância já referida anteriormente, e não
pela experiência factual. No último verso, para finalizar, vemos a, tão
presente ao longo do poema, dicotomia entre o presente e o passado, ao usar
tempos verbais que assim o indicam; também vemos aqui uma fragmentação do
sujeito, pois o “quem” a que o sujeito poético se refere pode ser interpretado
como sendo ele mesmo, ligando assim à infância feliz e o distanciamento dessa
altura.
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Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de
Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
CARREIRO, José. “Maravilha-te,
memória!, Fernando Pessoa”. Portugal, Folha de Poesia, 30-10-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/maravilha-te-memoria-fernando-pessoa.html
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