Eu velida1 nom dormia
lelia doura2
e meu amigo venia
edoi3 lelia doura.
5 Nom dormia e cuidava
lelia doura
e meu amigo chegava
edoi lelia doura.
O meu amigo venia
10
lelia doura
e d'amor tam bem dizia
edoi lelia doura.
O meu amigo chegava
lelia doura
15 e d'amor tam bem cantava
edoi lelia doura.
Muito desejei, amigo,
lelia doura
que vos tevesse comigo
20
edoi lelia doura.
Muito desejei, amado,
lelia doura
que vos tevess'a meu lado
edoi lelia doura.
25 Leli, leli, par Deus, leli4
lelia doura
bem sei eu que[m] nom diz leli
edoi lelia doura.
Bem sei eu que[m] nom diz leli
30
lelia doura
demo x'é5 quem nom diz
leli
edoi lelia doura.
Pedro Anes Solaz / Pedr’Eanes
Solaz
(trovador ou jogral
medieval)
AUTOR:
Trovador ativo em
meados do século XIII, muito provavelmente natural da região de Pontevedra,
Galiza, onde, em Meis, se situava o mosteiro de Nogueira, referido numa das suas composições1. No verdade, o seu apelido, ao
contrário do que pensava D. Carolina Michaëlis (que o explicava como alcunha e
supunha Pedro Anes jogral)2, deverá ter origem num topónimo
atestado na Galiza, indicando a sua eventual pertença a uma família da pequena
nobreza da região, estatuto social talvez mais conforme com a colocação das
suas composições nos cancioneiros (numa zona de autores nobres). De resto, Ron
Fernández3 localizou um indivíduo com o mesmo
apelido, um João Solaz, na documentação de Lugo (atestado em 1304). À exceção
destes dados indiretos, não possuímos, no entanto, qualquer outro dado que nos
permita traçar a biografia mínima do trovador.
Referências
1 Oliveira,
António Resende de (2001), O trovador galego-português e o seu mundo,
Lisboa, Editorial Notícias, p. 200.
2 Vasconcelos, Carolina
Michaëlis de (1990), Cancioneiro da Ajuda, vol. II, Lisboa,
Imprensa nacional - Casa da Moeda (reimpressão da edição de Halle, 1904), p.
450.
3 Ron Fernández, Xavier
(2005), “Carolina Michaelis e os trobadores representados no Cancioneiro da
Ajuda”, in Carolina Michaelis e o Cancioneira da Ajuda hoxe,
Santiago de Compostela, Xunta de Galicia.
Fonte:
Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA.
[Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?pv=sim&cdaut=118>.
PRESENÇA DA CANTIGA NOS
CANCIONEIROS: CBN 829, CV 415
Cancioneiro da Biblioteca Nacional – manuscrito B 829 |
Cancioneiro da Vaticana – manuscrito V 415 |
LÉXICO:
1. velida - bela, formosa.
2. Na interpretação recente de Rip Cohen e Federico
Corriente ("Lelia Doura revisited", in La Corónica:
a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, 2002, vol.
31, n.º 1.), a expressão árabe significará "é a minha vez" ("a
noite roda" ou "é longa" eram anteriores propostas de tradução).
Nota de Rip
Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition.
Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 2, 4, etc.: lelia
doura pode ser lido como líya
ddáwra “a mim a vez (= é a minha vez)” em árabe
andaluz. líya,
um alomorfe de li ‘a mim,’
‘para mim’, é foneticamente /leia/, e lelia pode
ser ou um erro por leiia ou,
mais plausivelmente, uma transcrição de líya (cinco
vezes em Martin Giinzo devemos pronunciar Cecilia
como /sesia/ em rima, sendo todas as rimas
perfeitas). Ed oi é
romance ibérico arcaico < et hodie com
vocalização do -t- intervocálico
no interior da expressão. Assim ed oi /
MUDANÇA DE CÓDIGO / líya ddáwra =
“E hoje / MUDANÇA DE CÓDIGO / é a minha vez” – um verso bilingue, como ocorre
em tantas kharajat.»
3. "e hoje", ainda segundo Cohen e
Corriente, que entendem o termo não como árabe, mas como uma expressão em
antiga língua romance, proveniente do Latim "et hodie" – já na
anterior interpretação de Brian Dutton("Lelia doura,
edoy lelia doura, na arabic refrain in a thirteenth-century galician poem?",
in Bulletin of Hispanic Studies, 1964, XLI), tratar-se-ia de um termo árabe,
cujo sentido seria "esmoreço".
4. Nota
de Rip Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition.
Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 25, 27, 29, 31: leli
pode ser lido em árabe andaluz como layli,
o substantivo layl ‘noite’
com sufixo pronominal da primeira pessoa (cf. Dutton 1964, mas o nome é
colectivo, não o nomen unitatis,
que seria laylati).
ya layli é uma expressão
comum que significa qualquer coisa como “que noite eu tive”. O primeiro elemento
pode ser omitido por razões métricas ou para exprimir emoção intensa.»
5. Equivalente ao atual "diabos levem".
NOTA GERAL:
Durante
muito tempo esta notável cantiga de amigo de Pedro Anes Solaz não encontrou uma
explicação cabal, dada a estranheza do seu duplo refrão, que era entendido como
puramente onomatopaico (ou seja, como um mero conjunto de sons exclamativos). A
sugestão de Brian Dutton (19641)
e Firmino Crespo (19672),
de que se trataria, na verdade, de um refrão em língua árabe, significando
"e a noite roda" ou "a noite é longa" (o que se enquadraria
bastante bem na voz da donzela que não consegue dormir), veio trazer mais
alguma luz à composição. Já mais recentemente, Rip Choen e Federico Corriente3 interpretaram
de forma diferente os versos do refrão, propondo a tradução "é a minha
vez" (v. 2), "e hoje é a minha vez" (v. 4) e ainda, quanto
a leli (v. 25), a exclamação "A minha noite!".
Por explicar fica esta utilização da língua árabe no refrão, caso único em toda
a poesia galego-portuguesa. Este facto, juntamente com as alterações algo
bruscas no paralelismo (nas estrofes 5 e 6, e nas estrofes finais), alterações que
parecem introduzir inesperados desvios de sentido na voz da donzela, continuam
a dificultar uma interpretação cabal da cantiga. Lamento? Canto de júbilo?
Original sátira indireta? (nesta última interpretação, o trovador poderia
aludir aqui aos amores proibidos entre uma donzela e um muçulmano, talvez um
músico, dentre os que sabemos terem estado ao serviço dos soberanos
peninsulares). Seja como for, sublinhe-se o facto de estarmos perante uma
cantiga de amigo que, sem nada perder do seu notável lirismo, é, na sua
originalidade, de difícil classificação.
Referências
1 Dutton,
Brian (1964), "Lelia doura, edoy lelia doura, na arabic refrain in a
thirteenth-century galician poem?", in Bulletin of Hispanic
Studies, XLI.
2 Crespo, Firmino (1967),
"Lelia Doura ou o estranho refrão de uma cantiga trovadoresca",
in Colóquio, 42, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
3 Cohen, Rip e Corriente,
Federico (2002), "Lelia Doura revisited", in La
Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures,
vol. 31, nº 1.
VERSÕES
MUSICAIS:
Originais:
Desconhecidas
Contrafactum:
Versão de José Augusto Alegria
Composição/Recriação
moderna:
Cantar d’amigo (Cantares: op.
28, nº 4-2)
Versão de Cláudio Carneyro
Versões de Amancio Prada
Versão de X. Paz Antón, Uxía
Versão de José Mário Branco
Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel
Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa:
Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível
em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?ling=por&cdcant=838>.
Poderá também gostar de:
Edição
crítica da cantiga medieval “Eu velida nom dormia”, disponível em https://www.universocantigas.gal/cantigas/eu-velida-non-dormia, Coruña, Facultade de
Filoloxía, © 2022
“Pedro
Eanes Solaz”, verbete de http://xacopedia.com/Pedro_Eanes_Solaz. Copyright 2015 © Bolanda.
Poesia trovadoresca galego-portuguesa: síntese
didática
Sedução e drama nos cantares de amigo.
INTERTEXTUALIDADE:
- O tema da insónia na literatura - e em particular o canto da solidão noturna - é também desenvolvido pelo jogral galego Juião Bolseiro em cantigas como “Da noite d' eire poderam fazer”, “Aquestas noites tam longas que Deus fez em grave dia” e “Sem meu amigo manh'eu senlheira”.
- O verso “edoi lelia doura” serve de título à
Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada
por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).
CARREIRO, José. “Eu
velida nom dormia, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha
de Poesia, 22-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/eu-velida-nom-dormia-pedro-anes-solaz.html