ESTAMOS
VIVOS E JÁ NÃO TEMOS TEMPO
1. Foi
uma excelente ideia ir buscar ao texto complementar de atualização que Robert
Bréchon escreveu para a história da literatura portuguesa de Georges Le Gentil
(Editions Michel Chandeigne) uma excelente síntese da poesia de Gastão Cruz e
colocá-la nas badanas do seu último livro, "Pedras Negras". Porque as
inevitavelmente breves linhas que Bréchon consagra a cada autor são sempre
muito mais do que um alinhavar apressado de qualificações. E porque no caso de
Gastão Cruz elas apontam em meia dúzia de palavras o essencial. Dizem o
seguinte: "Um lirismo crítico em que a inteligência, a cultura (nomeadamente
de língua inglesa) e a consciência da linguagem velam na orla da obscura
floresta que o poema é. Na sua obra as paisagens são verdadeiramente estados de
alma. E poder-se-ia dizer, retomando as suas próprias metáforas, que a poesia é
ao mesmo tempo o fogo que o devora e a água que extingue este incêndio da
alma".
No caso de "Pedras Negras", livro
publicado pela Relógio d'Agua no final de 95, estamos diante de um texto que
confirma e reforça todas as observações de Bréchon - só que a intensidade e a
coerência deste livro são aqui levadas a um extremo que nunca tinha sido
atingido por este autor. Sabemos que Gastão Cruz é um nome ligado à dinâmica
criada em torno da revista "Poesia 61", de que foi ao mesmo tempo
animador e teorizador. Sabemos ainda como os anos 60 foram os derradeiros de um
processo que definiu o avanço da modernidade, e que consistia em fazer emergir
em cada geração um pico de radicalidade simultaneamente polémica e afirmativa
polarizada em torno de uma teoria e de uma revista ou de uma coleção. "Poesia
61" apareceu assim como a manifestação de uma elevada e mesmo exaltada
consciência da densidade textual do poema, apoiada numa leitura muito atenta
dos clássicos (de Camões a Sá de Miranda, da lírica medieval a Blake, de Dante
a Camilo Pessanha), e que recusava as explosões discursivas para valorizar a
emoção implosiva: o poema rebentava para dentro e disseminava os estilhaços da
sua catástrofe num reduto extremamente concentrado de palavras. Atitude de
recusa às facilidades de uma exausta hemorragia surrealista, mesmo quando em
Luiza Neto Jorge o surrealismo reaparecia sob outras formas mais violentas.
Atitude que, por outro lado, sufocava o sujeito lírico numa cápsula de
linguagem, o que poderia talvez encontrar metáforas e referências de primeira
qualidade na evolução teórica e criativa de Carlos de Oliveira. De qualquer
modo, é entre esta atenção à materialidade da escrita e a distração deambulatória
e voluntariamente fragmentada da grande poesia dos anos 70 que se colocam os
parâmetros de toda a literatura dos nossos dias.
2. Tem
razão Bréchon quando nos diz que "na sua obra as paisagens são verdadeiros
estados de alma", desde que não se deduza daqui que estamos perante uma
atitude de espiritualização do real. As paisagens são estados de alma porque elas
reenviam para uma visibilidade evaporada - é mais por defeito do que por afirmação.
E os estados de alma são paisagens porque há neles um acentuado índice de
impessoalidade (ou melhor, de uma subjetividade impessoal, de rosto velado e
mãos errantes). E isto que nos situa no inconfundível registo da poesia de
Gastão Cruz: uma oscilação entre uma escassez de apoio referencial e um excesso
de espessura do lado do objetual. Donde, o poema não se fecha em si próprio,
longe disso, mas remete para qualquer coisa que nos aparece como "uma matéria
negra" (para utilizar a excelente expressão de um interessante livro de
teoria literária de Manuel Frias Martins). Ou, se quisermos, nos termos de
Bréchon, para “a orla obscura da floresta". Se neste último livro nos
sentimos tão intimamente afetados, é porque nunca esta obscuridade foi tão obscura.
Saliento ainda outro ponto. Por manifesta
influência camoniana, Gastão Cruz, foi sempre um poeta sensível às
reversibilidades dialéticas: citando de novo Bréchon, a poesia é ao mesmo tempo
o fogo que destrói e a água que extingue o fogo. Mas
este processo recorta-se contra um fundo indialetizável. O que define o livro "Pedras
Negras" é o facto de que o indialetizável cresce, o deserto cresce,
o não-tempo cresce, a morte avança sobre os lugares da vida. Há uma luta entre "o
líquido frio indivisível" e “os veios do visível divisível". Assim se
lê no belíssimo poema "No mar": "Queremos ouvir-te respirar, / mundo
mudado, os que no mar excêntrico / soltam braços, lembrados de que / o ar
/ não os pode salvar. Mas é idêntico / ao ar o mar sem / centro,
figura // que fulgura fora do teu / corpo de mármore, lavrado / pelo tempo, mundo
a / que
não pertencem os náufragos / amados e um dia perdidos
/ nesse líquido frio / indivisível. Se pudessem ouvir // o
teu sopro, seriam / devolvidos aos veios do visível / divisível? As estrelas de
/ sombra desfazendo / um céu sem falhas deixariam / cair
sobre eles / de novo a sua cinza." Sublinhe-se: se a respiração pudesse
porventura salvar os náufragos, as estrelas da sombra acabariam por vencer:
sobre eles cairia de novo a implacável cinza.
E porquê? Porque o domínio da "mão
escura" é hoje simultaneamente do lado da vida e do lado da morte. Que a morte
seja cada vez mais morte, isso apenas significa que a intensidade do negro é
infinita (a pintura de Soulages não diz outra coisa): "Sem formas
igualmente está a casa / o que a torna infinita". Mas que a vida seja cada
vez mais algo que se inclina para o lado da morte, isso quer dizer que o
indialetizável aumenta na medida em que o tempo se retira do próprio tempo: "É
outra vez setembro. A tarde / rege o dia / O presente regressa Chove de // leve
na areia fria / Os meses não começam Estamos sempre / encerrados no corpo que
nos resta // O passado escurece / Os meses não regressam / Estamos vivos e já não
temos tempo."
Pedras negras? Sim, aquelas que
atravessam o tempo: "Manishutsu rei de Akhad fez narrar / que os seus
barcos cruzaram / o mar inferior / e depois de vencidos trinta e dois / reis extraiu
dos montes pedras negras // Atravessou o mar para buscar / a pedra onde a
mensagem perdurasse / Mil quinhentas e dezanove casas / de escrita no obelisco
estão gravadas / Mais de quatro mil anos já passaram". Donde, as pedras
negras atravessam o tempo. O desejo louco que move este livro é que as pedras
atravessem o tempo e o não-tempo, o dialetizável e o indialetizável – que sejam
negras para isso, para poderem passar. Assim: "Tu, // guia, que dormiste o
derradeiro / sono do fogo ouvindo no abismo / o sopro da serpente e me guardaste
/ desse vento que se move / o mar do pensamento, / busca, pedi, do mar profundo
a porta // que na selva da luz se oculta, cava / na parede do / dia a realidade
Para / fora do sonho me guiaste / Das palavras passadas descuidado / cego do
anjo que o gelado rio // como serpente outra serpente guarda / as suas asas
como escada usaste / para subir à cúpula fechada / Na clausura do tempo abriste
um / arco e saímos por / ele a ver de novo os astros"
Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras & Sons do jornal Público. Sábado, 1 de junho de 1996.
“Pedras Negras, de
Gastão Cruz – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 28-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/gastao-cruz-por-eduardo-prado-coelho.html
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