quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Procelária, Sophia Andresen

Procelária, Paz Mera, 2013 (adaptado)



 

PROCELÁRIA

 

É vista quando há vento e grande vaga

Ela faz o ninho no rolar da fúria

E voa firme e certa como bala

 

As suas asas empresta à tempestade

Quando os leões do mar rugem nas grutas

Sobre os abismos passa e vai em frente

 

Ela não busca a rocha o cabo o cais

Mas faz da insegurança sua força

E do risco de morrer seu alimento

 

Por isso me parece imagem justa

Para quem vive e canta no mau tempo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço

 

Poema “Procelária”, de Sophia, dito por Pedro Lamares, in Literatura Aqui, IV, 11, 2018-04-03. Disponível em https://www.rtp.pt/play/p4370/e339493/literatura-aqui


 

A tensão entre a espessura do mal e a «imaginária linha»

Quando o sujeito é confrontado com a realidade do mal e com a falta de liberdade, o «inaudito» bate à sua porta, levando-o a pôr em causa o seu mundo habitual e a procurar a reconstrução de um outro mundo (ideal). E, de facto, nos escritos de Sophia encontramos uma tensão permanente entre dois mundos: o mundo circunstancial e histórico, marcado por grandes injustiças, e o mundo intemporal e eterno, recriado pelos versos da poetisa. Aliás, como já vimos no capítulo anterior, «a reconstrução do mundo» é o grande ofício da poetisa, sendo no limite entre estes dois mundos que a poetisa vive e escreve, fazendo da «insegurança a sua força» e do «risco de morrer seu alimento», como nos dá a entender a metáfora da «Procelária», que é uma imagem justa «Para quem vive e canta no mau tempo». […]

Desta forma, podemos concluir que foi o confronto com uma situação de extrema injustiça, de violência e de mentira a que o povo português estava sujeito, por um regime totalitário opressor, que levou Sophia a instaurar na sua poesia «um percurso permanente de quem sempre procura a verdade e a justiça»774, como escreve Helena Langrouva. A procura de rigor, de justiça e de verdade assume-se desta forma, citando novamente Helena Langrouva, como «a espinha dorsal» da obra de Sophia, particularmente patente na antologia Grades. Missão que pode conduzir à própria destruição daquele que luta, bem simbolizada na alegoria da «procelária», que é imagem justa de quem ousa lutar, arriscando-se permanentemente a ser destruído:

Por isso me parece imagem justa

Para quem vive e canta no mau tempo

 

Emanuel Sousa, Poesia e Transcendência: Uma leitura teológica da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, 2010.

 

 

A poesia e a política

Nomear a nação em meio a um contexto sociopolítico conturbado é, de facto, uma função que não se configura como fácil para Sophia Andresen. Em uma correspondência a Jorge de Sena, datada de 1961, a autora afirma que sente aumentar a presença da raiva nas ruas de Portugal, pois as pessoas olham os escritores com ódio nas “grossas mãos fascistas” (ANDRESEN, S.; SENA, J., 2010, p. 51). Além disso, havia o cerceamento ideológico causado pela censura e pelo controle sistemático dos meios de comunicação, o que impedia drasticamente o debate político entre a sociedade e a formação de um senso crítico mais apurado em relação ao que se vivia. Essa limitação ainda era intensificada pela atmosfera de medo e ameaça que predominava no país. É nesse cenário que surge o poema “Procelária”.

Publicado no livro Geografia, de 1967, ele aparece como o primeiro poema da seção homónima. Na antologia Grades, ele é inserido após o ensaio Arte Poética III. O título do poema, o qual, aliás, não volta a ser citado no corpo do texto, refere-se a uma ave comum nas regiões oceânicas. Sua descrição é familiar para aqueles que costumam andar à beira-mar: de porte médio, a ave tem penas acinzentadas, mas o dorso branco e uma cauda alongada, assemelhando-se a um leque. Sua imagem é parte indissociável das paisagens marítimas.

O termo procelária vem do latim procellae, que significa “tempestade no mar”. A palavra aproxima-se de “procela”, a qual, por sua vez, nomeia as intensas tempestades no oceano, com ventos muito fortes e ondas muito grandes, as famosas e temíveis tormentas. As procelárias são assim nomeadas, pois são pássaros que voam na ventania, as quais geralmente antecedem a chuva. O voo delas é bem próximo ao mar, e, como elas têm uma envergadura média, definida por asas compridas e estreitas, conseguem se locomover com facilidade mesmo no mau tempo. Em consequência dessa habilidade de voo e do hábito pelágico304, as procelárias são conhecidas, na cultura popular, como um aviso de tempestades. Para os marinheiros, o pássaro costumava ser sinal de má sorte, justamente porque sua presença alertava-os da chuva iminente.305

Essa descrição do termo, contudo, parece quase dispensável quando iniciamos a leitura do poema, o qual apresenta onze versos divididos em três trípticos e um dístico ao final. Logo na primeira estrofe, a voz poética apresenta a procelária como a ave que vive na instabilidade da natureza: é um animal das ventanias e da grande vaga, ou seja, onda. Não somente vive nesse espaço agitado como também “faz o ninho no rolar da fúria”. O ninho é uma estrutura elaborada para receber os ovos, mas é frágil, feito de pedacinhos de madeira e folhas secas. O ninho da procelária, porém, é feito no “rolar da fúria”, uma imagem antitética. Nesse sentido, temos a imagem do animal unida, ao mesmo tempo, à fragilidade e à força.

De certa forma, a imagem da procelária também indica essa oposição: em um primeiro momento, a ave é uma imagem de calma e de leveza. Mas esse ser aparentemente sereno vive na tensão da ventania e da força do oceano. O seu voo é firme, pois aquele que anda na instabilidade não pode se deixar levar, precisa ser objetivo, certeiro “como uma bala” para conseguir continuar seu caminho.

A segunda estrofe segue o esquema da anterior na aproximação da ave à instabilidade do ambiente em que vive. Novamente, a voz poética aproxima uma imagem de fragilidade comum aos pássaros a um caráter de força e determinação, em um tom antitético. Aqui, enquanto os leões marinhos – cuja imagem é robusta, forte – estão abrigados em grutas, rugindo diante do mau tempo e da violência das águas, a procelária – apesar de uma aparente fragilidade – encara a ventania e empresta à tempestade suas asas. Enfrenta o abismo, vai adiante.

A imagem da procelária é, ao longo do poema, descrita por meio de mais oposições: um pássaro que faz do risco sua sobrevivência e “faz da insegurança a sua força”. Ele vive na instabilidade e torna-se forte exatamente por isso. Não busca abrigo: ao contrário, vive do arriscar-se. Para a voz poética, a procelária é a imagem justa para quem vive e canta no mau tempo. A ave canta, o poeta também. E o poeta do tempo de Sophia Andresen é aquele que “vive e canta no mau tempo”, por isso a procelária parece para a voz poética imagem justa.

Diferentemente dos leões marinhos que se abrigam da tempestade, a voz lírica abandona seu abrigo e o que lhe é conhecido para poder, de fato, sobreviver no mundo e assim, como as procelárias, faz da ventania sua força de vida: “E aprendi a viver em pleno vento” (Poema “Para atravessar contigo o deserto do mundo”. In: ANDRESEN, S., 2011, p. 417). Os leões marinhos podem ser lidos, se recuperarmos o contexto ditatorial, como os políticos, que “rugem”, salvos e seguros em suas grutas, ou seja, expressam-se livremente escondidos pela proteção que o poder político oferece. Assim, em “Procelária”, «A imagem do poeta ou do escritor comprometido regressa aqui de forma veemente, quase épica, contrapondo-se à dupla metáfora que animaliza uma vez mais os políticos, transformando-os em leões do mor que ‘rugem nas grutas’ como verdadeiros leões mamíferos» (MALHEIRO, H., 2008, p. 101).

Os leões do mar podem também ser lidos como aqueles indivíduos coniventes, que refutam a ocupação do medo e da ameaça que ocorre em seu país. No poema “Porque”, publicado originalmente em Mar Novo, de 1958, a voz lírica também traz a oposição, na estrofe final, daqueles que se abrigam do perigo e daqueles que o enfrentam, mostrando que o esquivar é o que torna o indivíduo enfraquecido:

[...]

Porque os outros são os túmulos calados

Onde germina calada podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

[...]

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

 

O momento da tempestade é também, conforme Sophia Andresen explica em entrevista a Maria Arminda Passos, um momento em que a autora tomou consciência da necessidade dos outros, como vimos no início deste capítulo. Na violência da tempestade, a imagem dos pescadores que lutavam por suas vidas e por seu retorno a terra inspirava na autora uma ideia de força e de salvação.

Como ocorre em outro famoso poema selecionado por Sophia Andresen para a antologia Grades, temos em “Procelária” uma ave como elemento central da metáfora criada, aumentando o conjunto de animais que aparece na coletânea. Em “O velho abutre”, como visto anteriormente, o pássaro também aparece em uma possível analogia a Salazar. Nesse poema, a autora cria uma relação metafórica a partir da personificação, ou seja, ela dá ao abutre traços dados ao homem, misturando-os com elementos do animal.

O abutre é sábio (qualidade dada aos homens), alisa suas penas (ação praticada pelo animal), a podridão lhe agrada (o abutre é um animal que se alimenta de carniça e dejetos) – ambivalência de sentidos: a podridão denotativamente agrada ao abutre, pois é dela que ele se alimenta, agradando o abutre metafórico, Salazar, cujos discursos “têm o dom de tornar as almas mais pequenas”. Em “Procelária”, contudo, a construção metafórica mantém-se mais implícita. Apesar de Sophia Andresen elaborá-la, a voz lírica indica a comparação de forma clara apenas no dístico final, quando afirma explicitamente que a imagem da ave é justa para aquele que canta e vive no mau tempo.

Nas três primeiras estrofes, a voz lírica apresenta a condição da procelária, de uma forma quase narrativa. Diferentemente de “O velho abutre”, há somente no quarto verso a personificação da ave, mas o recurso é desenvolvido de forma muito sutil: a ave empresta suas asas à tempestade. Essa imagem é muito visual, dá ao leitor a ideia de movimento – tanto da ventania como da própria ave. O movimento do animal funde-se ao do ambiente. Porém, essa fusão é ambígua: arrisca-se para viver. É essa tensão que oferece para a voz poética a possibilidade de comparação: da mesma forma que, em momentos de tormenta, a maioria das pessoas busca abrigo, há aqueles que fazem do risco, do perigo e do medo o único caminho de sobrevivência e superação.

Podemos pensar nos outros animais que aparecem em Grades. Além do abutre, encontramos, na terceira estrofe no poema “Esta Gente”, mais alguns animais que são metáforas para comportamentos e defeitos ligados a personalidades do contexto político:

[...]

Faz renascer meu gosto

De luta e de combate

Contra o abutre e a cobra

O porco e o milhafre

[...]

A cobra pode ser lida no excerto como imagem da traição e de falsidade, pois é um animal que engana sua presa ao dar o bote. Já o porco, por seu habitat, pode ser relacionado, muitas vezes, à sujeira, à imundície. O milhafre, por sua vez, pode ser ligado à ideia de perspicácia e da corrupção, uma vez que o animal, uma espécie de gavião ou de águia, é uma ave caçadora de voo alto, golpe certeiro, que “rouba” suas presas. Está ligada também ao orgulho e a opressão em razão de aparecer em diversos símbolos imperiais, sendo assim, “a perversão do poder” (CHEVALIER, J., 1986, p. 61.). O tempo que as vozes poéticas desses poemas relatam é, assim, repleto de aspetos que sugerem a ameaça, o controle, a corrupção e a mentira.

Temos, assim, abutres, chacais, porcos, cobras e milhafres que representam aqueles que detêm o poder, e esse discurso opõe-se à presença da procelária na coletânea. O bestiário de animais vistos por seu aspeto mais negativo são inseridos “para denunciar de forma violenta e agressiva a ditadura dos poderosos e a miséria física e moral de um povo recalcado e humilhado” (MALHEIRO, H., 2008, p. 101), como observa Malheiro. Por sua vez, a procelária rompe com esse recurso, sendo a imagem do poeta que denuncia, resiste e ousa cantar um país ocupado pelo medo e pelo terror. Nesse sentido, «a imagem de ‘resistência’ e de ‘combate’ resulta poeticamente perfeita neste alegorismo prosopopeico... [...] A estrutura metafórica que expressa a prepotência instigadora das forcas adversas ao sujeito, opostas à liberdade do seu ‘canto’, surge neste poema [...] intimamente ligada a um bestiário imagístico redutível aos traços sémicos da irracionalidade e da violência [...]» (PEREIRA, Luís Ricardo. Inscrição da Terra. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 80, apud MALHEIRO, H., op. cit, p. 101).

Essa característica da procelária – ou seja, de viver nas fúrias das ventanias e na incerteza do mar aberto – é uma qualidade valorizada para a voz poética, sendo a imagem adequada para aquele que canta no mau tempo, porque, assim, como a ave, deve passar sobre os abismos e seguir em frente. Tal valentia é anteriormente marcada pela voz poética: a ave joga-se no vai-e-vem das ondas e do vento ao invés de buscar um lugar seguro para estar: “Ela não busca a rocha o cabo o cais / Mas faz da insegurança a sua força”. Observam-se, nos versos, dois recursos importantes: primeiramente, a enumeração não pontuada, comum aos poemas de Sophia, que dá força e intensidade à ação de não buscar refúgio, levando à valorização desse traço da ave. A repetição, em decorrência da ausência de vírgula, cria para a leitura uma afirmação mais direta e incisiva.

Em seguida, a voz poética intensifica essa impressão por meio da oração adversativa unida pelo “mas”. Diferentemente daqueles que, vendo a tempestade se aproximar, procurariam por proteção, a procelária fortalece-se pela instabilidade e não segurança oferecida pelos ventos e pela tempestade. Por meio da oração coordenada adversativa e da enumeração direta, a voz poética permite uma leitura que reconhece o feitio corajoso da ave, valorizando-o ao relacioná-los àqueles que também tornam-se mais bravios no mau tempo.

A descrição da vivência da ave chama atenção para a concretude da imagem. De fato, a riqueza dos detalhes no desenvolvimento do poema exprime ao leitor uma ideia objetiva da procelária no mar, como uma tela ou um filme. Temos diferentes substantivos concretos que constroem a imagem do pássaro, e, assim como em “Pátria”, eles imprimem aos olhos de quem lê o poema a realidade da procelária. Essa imagem muito concreta da ave que vive no tempo das tormentas nos leva a compreender a comparação criada nos versos finais sem que haja a necessidade de falar mais de quem “vive e canta no mau tempo”.

Assim como a ave necessita das tempestades para viver, o poeta necessita da poesia. Porém, no contexto em que a autora está inserida, o fazer poético é cerceado, diferentemente da procelária. Se para o animal o perigo vem da ventania e do mar, para os escritores vem da ameaça da censura, da PIDE e de um Estado que não lhes oferece a possibilidade de fazer do seu canto parte da sociedade sem que haja pavor e coerção. Por isso cantam em tempos ruins. Para os homens da nação portuguesa, a violência, a opressão e a miséria são riscos às suas vidas, mas eles voltam seus rostos para o dia claro, pois são iguais ao Sol e ao vento, como vimos em “Regresso” e “Pátria”. É desses perigos que os homens tiram força para viver e, assim como o pássaro, fortalecem-se nas condições mais instáveis à sua vivência.

Há ainda o adjetivo “justa” – que qualifica o termo imagem –, o qual pode ser lido de duas maneiras distintas. Temos, inicialmente, a ideia de “adequação”, afinal a procelária, como metáfora do poeta, é uma imagem justa, adequada, para representá-lo. Em um segundo momento, podemos ir além da ideia de justeza e pensar na noção de justiça: a imagem da ave que canta no mau tempo é justa – no sentido de equidade – para aquele que deve cantar em tempos sombrios. O poeta é aquele que está implicado no mundo, e nesse caso no “mau tempo”, e tem a necessidade de cantar essa realidade. É por meio do seu canto que ele busca a justiça em momentos obscuros, assim como a ave busca sua sobrevivência nas tormentas. A necessidade de poesia da qual fala Sophia Andresen em Poesia e Realidade é também essa busca pela justiça. Por isso sua luta não é somente por sua sobrevivência, mas pela verdade, justiça e liberdade de seu país.

Além da antítese fundamental que orienta o poema, ou seja, o ser aparentemente frágil, mas forte na realidade, que consegue, assim, viver no perigo, podemos perceber que, no âmbito da composição do poema e do tema por ele abordado, há também uma oposição. As palavras usadas por Sophia Andresen são, como vimos, claras e objetivas. Os versos são curtos, formados por períodos divididos de forma simples. Há três períodos compostos por subordinação e três períodos compostos por coordenação e somente um período simples. Ainda assim, a linguagem é muito simples, de uma clareza que permite a objetividade do discurso. A pontuação é ausente, o que torna a leitura ainda mais fluida. Toda essa clareza, objetividade e fluidez do poema contrastam com o conteúdo mais tenso da vivência da procelária, criando, assim, uma espécie de antítese entre forma e temática.

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

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304 Pelágico: que vive em alto-mar, só vindo a terra no período da reprodução (diz-se de aves marinhas, como os albatrozes e pardelas). In: Dicionário Eletrônico Houaiss.

305 BEJCEZ, Vladimír; STASTNY, Karel, Enciclopédia das aves: as várias espécies e seus habitats. Florianópolis: Livros e Livros, 2002. CASTRO, Peter; HUBER, Michael E., Biologia Marinha. 8.ª ed. São Paulo: AMGH Editora, 2012.

 


 

Poderá também gostar de:

 

 

 


“Procelária, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-03. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/procelaria-sophia-andresen.html



quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Pátria, Sophia Andresen


 

 

PÁTRIA

 

Por um país de pedra e vento duro

Por um país de luz perfeita e clara

Pelo negro da terra e pelo branco do muro

 

Pelos rostos de silêncio e de paciência

Que a miséria longamente desenhou

Rente aos ossos com toda a exatidão

Dum longo relatório irrecusável

 

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

 

E pela limpidez das tão amadas

Palavras sempre ditas com paixão

Pela cor e pelo peso das palavras

Pelo concreto silêncio limpo das palavras

Donde se erguem as coisas nomeadas

Pela nudez das palavras deslumbradas

 

— Pedra rio vento casa

Pranto dia canto alento

Espaço raiz e água

Ó minha pátria e meu centro

 

Me dói a lua me soluça o mar

E o exílio se inscreve em pleno tempo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores • 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.

 

 

O poema “Pátria” constrói-se pela anáfora da preposição “por”, indicando em razão de que a voz poética canta. Em seu canto, essa voz exprime aquilo que deseja para sua nação, ao mesmo tempo em que indica o que dói nela ao observar sua realidade. Na primeira estrofe, temos um país de pedra e de vento duro, mas a dureza da pedra e do vento não significa aqui uma metáfora para a ocupação do país pelo medo e pela injustiça.

Diferentemente da realidade, a voz poética expressa, na primeira estrofe, seu desejo de ter um país duro somente em seu aspeto natural: as pedras que formam os montes, que calçam as ruas e o vento que se impõe por sua força. Essa ideia se fortalece nos dois versos seguintes: o canto é pela luz perfeita, e não a luz cinza da noite ocupada. O muro é branco, é claro e limpo. Na descrição do país que deseja a voz poética, temos elementos importantes da poesia andreseniana: a presença do real e a busca pela limpidez e clareza no mundo. Temos também nesse trecho a descrição do espaço físico e da arquitetura de Portugal: o vento, a iluminação e a terra são traços da geografia do país, enquanto a pedra e os muros brancos relacionam-se ao aspeto arquitetónico.

A estrofe seguinte traz a recorrente metonímia do rosto para referir-se ao povo, novamente moldado pela dureza da miséria e da paciência de esperar por mudanças em sua vida. Assim como em “Esta Gente”, é por esse povo de rosto desenhado pela pobreza que a voz poética canta sua pátria. Mas, como em “Regresso”, esse povo também tem seu rosto claro, voltado para o sol e para o vento, como indica o único verso da terceira estrofe. De certa forma, é uma antítese: o povo é marcado pela miséria, porém tem seu rosto voltado para o sol. É essa oposição que forma a imagem de um povo ora escravo, ora rei que aparece no poema anterior. Um povo que condensa em si a força e a coragem, mas a miséria e a pobreza.

Na quarta estrofe, a voz poética inicia seu canto à pátria por meio de outro elemento fundamental para a constituição desta: a língua. O patrimônio linguístico é um dos princípios da formação dos Estados modernos, e, no contexto do Estado Novo português, a linguagem apresenta um viés importante. Roberto Vecchi, em sua análise do poema, insere-o como uma glosa da relação moderna entre nação e língua (VECCHI, R., 2002, p. 258). Ele observa que o fazer poético nesse texto se constrói não somente como um exercício lírico, mas também como um mecanismo de dizer a pátria, uma vez que a poética é parte da língua e das narrativas do país. O poema é então “Um exercício poético que se faz explorando o subtil limiar de dizer a pátria pelo seu não dizer, registrando a surda fricção produzida pelas desconjunções da nação com suas narrações” (Ibidem).

Por meio das palavras, Sophia Andresen engrandece a interpretação do poema a partir do deslocamento do “núcleo crítico do objeto declamado para o problema e sua representação (linguística)” (VECCHI, R., 2002, p. 259), valendo-se de uma construção que busca permanecer isenta, inicialmente, de subjetividade. Esse processo tem como base a “qualidade material” de Sophia para a qual Vecchi chama a atenção, pela nitidez do campo visual trabalhado, a materialidade concreta com a qual se trabalham os elementos.

A palavra, então, surge no poema com duas “funções”: em um momento, ela faz parte, juntamente com o ambiente e com o povo, da construção do imaginário da pátria – que aparece distante, dada a imagem do exílio que se inscreve nesse tempo, conforme indica o último verso –. Em outro momento, a linguagem torna real essa pátria distante por meio de sua força presentificadora. Assim, quando a voz poética fala “E pela limpidez das tão amadas / Palavras sempre ditas com paixão”, a língua se presentifica, em toda sua expressão livre e nítida, pois até seu silêncio é limpo. É a palavra que presentifica essa possibilidade de liberdade, de veemência e de transparência da língua, uma vez que o contexto apenas reproduz palavras manchadas pelo poder, pelo controle e pela demagogia.

Ademais, por meio do léxico variado temos construções que expressam de forma mais objetiva a necessidade do real da poesia andreseniana. Desde a primeira estrofe, a pátria é nomeada, ou seja, há construções que se valem dos substantivos que criam as imagens desejadas. A autora utiliza, além dos adjetivos, construções em que o adjunto adnominal apresenta uma condição ou explicação sobre substantivo nomeado, como ocorre em “país de pedra” e “rostos de silêncio e de paciência”. Esse recurso permite às palavras que aparecem como adjuntos adnominais oferecer ao leitor uma imagem mais concreta dos elementos formadores da nação.

Em “País de pedra”, por exemplo, há a imagem da “pedra”, e não somente uma qualidade. O elemento que forma esse território aparece de forma mais concretizada e mais ativa no poema. No verso “Pelos rostos de silêncio e de paciência” temos uma estrutura semelhante. Os adjuntos adnominais “silêncio” e “paciência” não são somente qualidades dos rostos, mas aspetos formadores do povo. A miséria desenhou silêncio e a paciência nos rostos, e não rostos pacientes e silenciosos. Nesse sentido, a presença de um léxico de substantivos nos leva a enxergar objetivamente a pedra, o silêncio e a paciência como vemos os rostos e espaço físico do país, formando uma noção concreta da pátria e de seu povo.

No verso “E pelos rostos iguais ao sol e ao vento”, o uso da comparação também possibilita a presentificação do sol, além da luminosidade por ele oferecida, e do vento. Se a autora, por exemplo, adjetivasse os rostos com o adjetivo “ensolarado”, a imagem do astro não seria tão fortalecida no poema. A partir dessa estratégia de construção, a autora intensifica a relação entre natureza e humanidade, o que configura uma temática importante do plano poético andreseniano. Além disso, ao construir o poema por meio de uma unidade semântica material, a autora relaciona-se com a busca pelo real que caracteriza sua obra poética.

Após construir sua pátria por meio da natureza, do povo e da língua, a voz poética insere-se como elemento de representação da nação. Mas, ao dizer “seu país e seu centro”, a realidade mostra-se: o tempo é de exílio. A lua lhe dói, assim como o mar nela soluça, imagens que oferecem nesse trecho a subjetividade da voz poética que se sente exilada de sua terra. O mar relaciona-se, como vimos, a um importante símbolo de Portugal, além de ser uma das imagens mais recorrentes da lírica andreseniana. Ao nomear a sua pátria, a voz poética depara-se com a dor, que a afasta de sua terra. O canto presentifica a nação e a opõe àqueles que a ocupam. O canto existe, mas sua presença é conflitante com o real, e isso dói na voz poética. Ainda assim, seu canto é dito, e sua pátria, de alguma forma, presentificada.

Nomear a nação em meio a um contexto sociopolítico conturbado é, de facto, uma função que não se configura como fácil para Sophia Andresen. Em uma correspondência a Jorge de Sena, datada de 1961, a autora afirma que sente aumentar a presença da raiva nas ruas de Portugal, pois as pessoas olham os escritores com ódio nas “grossas mãos fascistas” (ANDRESEN, S.; SENA, J., 2010, p. 51). Além disso, havia o cerceamento ideológico causado pela censura e pelo controle sistemático dos meios de comunicação, o que impedia drasticamente o debate político entre a sociedade e a formação de um senso crítico mais apurado em relação ao que se vivia.

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

 

© José Carreiro, 2021


Pátria” tem, excecionalmente em Andresen, uma estrutura de estrofes bastante variadas: totaliza seis, porém de tamanhos sem paralelo com seus respetivos 3, 4, 1, 6, 4 e 2 versos cada. Quanto à métrica, predominam os versos longos entre 10 e 13 sílabas poéticas, não obstante a penúltima estrofe utilize versos heptassílabos em seu ato de nomear as coisas pelos seus substantivos concretos. Essa exceção é relevante porque a estrofe cita as “mesmas vinte palavras” repetidas na poesia de Sophia Andresen. Chegam quase literalmente às vinte se, às onze da quinta estrofe, somarmos outras relevantíssimas presentes no correr do poema: “país”, “luz”, “muro”, “sol”, “palavras” etc. Assim, é um poema em que os substantivos abstratos não têm grande manifestação, ainda que estejam supostos ou implicados na potência abstrata, (re)criadora de mundos, dos substantivos concretos.

Os substantivos concretos testemunham essa capacidade lírica de transformação. Andresen (2015, p. 575) já dizia em “Poema” que “A frase que de coisa em coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua escrita”. Realmente, em “Pátria”, o eu-lírico parece enunciar sílaba por sílaba os substantivos concretos. A maior separação gráfica da penúltima estrofe reforça a importância da leitura pausada de cada palavra para construção de seu efeito de sentido. O travessão que dá início à estrofe e o vocativo final iniciado por “Ó” trazem o poema para o universo da declamação. O poema só se realiza no poder de uma ação, portanto: a do falar para que seja, nomeação que converte poesia em realidade. Toda a arquitetura do poema antecipa que o enunciar dos substantivos concretos se dá pelo “país”, pelos “rostos” dos cidadãos, pela “limpidez” das coisas, até pelas “palavras”. Fala-se em nome de outros, em testemunho deles: “país”, “rostos”, “limpidez” e “palavras”. Por fim, mesmo falando, o eu lírico sabe que seu projeto lírico está comprometido na pátria dividida. O exílio se inscreve em sua vivência e deve ser nomeado também, como cada coisa que foi enunciada antes, para daí se proceder à revisão do mundo. Ou isso, ou o tempo seguirá sendo de exílio (substantivo concreto para os que partiram; substantivo abstrato para os que ficaram).

 

Samuel Pereira, O testemunho na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aproximações entre ética e estética. Goiânia, UFG-FL, 2022

 

 

Poderá também gostar de:

 


“Pátria, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-02. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/patria-sophia-andresen.html


terça-feira, 1 de novembro de 2022

Esta gente, Sophia Andresen

Sophia e Francisco no jardim do Campo Alegre <https://purl.pt/19841/1/1960/1960-3.html>

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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25

ESTA GENTE

 

Esta gente cujo rosto

Às vezes luminoso

E outras vezes tosco

 

Ora me lembra escravos

Ora me lembra reis

 

Faz renascer meu gosto

De luta e de combate

Contra o abutre e a cobra

O porco e o milhafre

 

Pois a gente que tem

O rosto desenhado

Por paciência e fome

É a gente em quem

Um país ocupado

Escreve o seu nome

 

E em frente desta gente

Ignorada e pisada

Como a pedra do chão

E mais do que a pedra

Humilhada e calcada

 

Meu canto se renova

E recomeço a busca

De um país liberto

De uma vida limpa

E de um tempo justo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço

 


Texto de apoio

Sophia Andresen cria em Grades essa união entre sua poesia e sua visão política. Isso ocorre, por exemplo, no poema “Esta Gente”, extraído do livro Geografia, no qual a voz poética relata e se posiciona sobre o alheamento e a manipulação do povo português.

A expressão “esta gente” faz uma referência a um povo, o qual pode ser lido como o povo português em razão do contexto de publicação da coletânea. Esse povo aparece descrito novamente pelo seu rosto, como vimos em “Regresso”, por meio de uma antítese entre os adjetivos luminoso e tosco, algo bruto, rústico. Da antítese, a voz poética parte para um quase paradoxo ao definir o povo ora como escravo, ora como rei.

Ao “escravo”, podemos relacionar a ideia de manipulação e de alienação política dessa gente, tornando-a escrava de um regime que se impõe pela força ideológica e física. É importante ressaltar que as ditaduras modernas “tendem sempre a apresentar-se como expressão legítima dos interesses e das necessidades do povo” (BOBBIO, 1998, p. 374), com o objetivo de manter o controle necessário para a manutenção da ordem e do poder. Assim, “o povo é forçado a manifestar uma completa adesão à orientação política do ditador a fim de que este possa proclamar que sua ação apoia-se na vontade popular” (Ibidem), pois o salazarismo «tentou, também ele, ‘resgatar as almas’ dos portugueses, integrá-los, sob a orientação unívoca de organismos estatais de orientação ideológica, ‘no pensamento moral que dirige a Nação’, ‘educar politicamente o povo português’ num contexto de rigorosa unicidade ideológica e política definida e aplicada pelos aparelhos de propaganda e inculcação do regime e de acordo com o ideário da revolução nacional. Neste contexto, sustenta-se a ideia de que o Estado Novo, à semelhança de outros regimes fascistas ou fascizantes da Europa, alimentou e procurou executar, a partir de órgãos do Estado especialmente criados para o efeito, um projeto totalizante de reeducação dos ‘espíritos’, de criação de um novo tipo de portuguesas e de portugueses regenerados pelo ideário genuinamente nacional de que o regime se considerava portador» (ROSAS, 2001, p. 1032). Desse modo, temos um povo controlado e submisso, por isso a imagem da escravidão.

Essa descrição acontece por meio de orações e construções alternativas, ora assumindo uma característica, ora outra, o que sugere, por um lado, um caráter mais instável dessas pessoas, e, por outro, qualidades opostas que, de certa forma, complementam-se, criando uma população que se caracteriza por suas fraquezas e suas virtudes. Esse caráter mais cindido do povo suscita na voz poética a vontade de lutar e resistir contra um Estado que tira da sua própria gente a liberdade e os direitos de construir sua pátria por meio da participação política.

Essa gente inspira o combate porque é moldada pela luta diária pela sobrevivência, seus rostos são desenhados “por paciência e fome”. Paciência de esperar que as condições de pobreza que Portugal apresentava na época em que se instaurou a ditadura do Estado Novo fosse modificada, como vimos no capítulo 1 deste trabalho. E a fome que talha o rosto desse povo como um escultor molda a madeira, esculpindo os detalhes do sofrimento e da miséria nas curvas da face.

É sobre esse povo que o poder se instaura e se impõe, e a imagem que a voz poética apresenta é novamente o país ocupado, o qual “escreve seu nome” à custa do controle da população. A noção de “escrever”, aqui, pode ser lida como a presentificação da ocupação. Tal ideia aproxima-se à de Sophia Andresen de escrever os poemas que escuta, tornando-os, assim, realidade. Assim como dizer, escrever seu nome é uma maneira de se tornar presente. O país ocupado, então, é real na medida em que escreve seu nome nos rostos, talhando-os pela miséria e pela alienação (palavra “alienação” é usada no trecho com o sentido de alheamento, controle e distanciamento daquilo que lhe é próprio, nesse caso, as liberdades e os direitos do cidadão).

Nesse país ocupado, a gente é “ignorada e pisada”, e essa ocupação lembra uma invasão de tropas estrangeiras que subjuga o povo e viola seus direitos, à maneira de um estado de sítio. A voz poética reifica o povo ao mostrar que o Estado o trata como um objeto, comparando-o a uma pedra, “E mais do que a pedra / Humilhada e calcada”. A coisificação do homem é um mecanismo pelo qual Sophia Andresen pode indicar o quanto a humanidade de seu povo é esmagada pelo Estado Novo, tanto pelo controle ideológico como pelo cerceamento das liberdades individuais. Essa ideia se reforça se considerarmos as condições de pobreza que grande parte da população portuguesa enfrentava.

A última estrofe rompe a denúncia do povo reificado pelo sofrimento e pelo poder do Estado e traz um aspeto positivo de esperança. É pelo povo que o canto da voz poética se renova e a busca pela liberdade da nação se reinicia. É interessante considerarmos esse reinício sob o viés temático do eixo 2, trabalhado anteriormente. Neste, havia poemas de denúncia, de um tempo dividido em que a nação aparecia ocupada e seu povo limitado. No eixo atual, ainda que haja essa denúncia, ela aparece inserida num projeto poético mais amplo do que a denúncia política sobre o contexto de Portugal. Assim, conseguimos observar de uma forma mais clara em “Esta Gente” o projeto poético que contempla o político, e não o político que aparece de forma preponderante.

A liberdade, por exemplo, aparece como um elemento importante na obra de Sophia Andresen, ao lado da clareza e da presença das coisas. A busca pela justiça também une-se à procura pela liberdade. No poema “Esta Gente”, observamos de forma explícita esse aspecto, e não por meio de seus valores opostos, como acontece nos poemas do grupo anterior. A voz poética deseja um “país liberto”, um país que deixe de ser ocupado por homens que não acreditam nesse direito. Salazar, em um discurso feito à imprensa em 1932, afirma que “autoridade e liberdade são dois conceitos incompatíveis... Onde existe uma não pode existir a outra” (SILVA, P., 2013, p. 1928). A voz poética, por sua vez, exibe ao leitor seu projeto: busca da liberdade, da clareza e de um tempo justo.

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015





Questionário sobre o poema “Esta gente”, de Sophia Andresen:

1. O sujeito poético fala de um povo a partir da descrição do rosto.

1.1. Identifique a relação semântica que se estabelece entre as palavras “gente” e “rosto”.

1.2. Refira o recurso expressivo em que assenta essa relação de palavras.

2. Identifique o recurso expressivo comum aos versos 2 e 3, comentando a relação existente entre ambos.

3. Demonstre que entre os versos 2-3 e 4-5 se estabelece um quiasmo e comente a sua expressividade.

4. O caráter mais cindido do povo suscita no sujeito poético primeiro uma manifestação de vontade e depois uma transfiguração criativa e empenhada.

Refira em que estrofes se verifica essa manifestação e transformação, explicitando o seu conteúdo.

5. Decifre o simbolismo do bestiário enumerado nos versos 8 e 9.

6. Caracterize essa “gente” a partir da leitura da quarta e quinta estrofes.

 ***

Sugestões de correção do questionário sobre a leitura do poema “Esta gente”:

1.1. Há uma relação de inclusão que se estabelece entre a palavra “gente” que designa o todo (holónimo) e “rosto” que designa uma parte desse todo (merónimo).

1.2. O recurso expressivo que exprime a parte (“rosto”) pelo todo (“gente”) é a sinédoque (trata-se de um recurso expressivo de natureza metonímica).

2. O recurso expressivo comum aos versos 2 e 3 é a antítese, em que se estabelece uma relação de oposição entre os antónimos “luminoso” e “tosco” que faz destacar uma alternância entre a clareza da luz e o caráter rústico do tosco.

3. Há um paralelo ou uma dupla antítese cujos termos se cruzam, em que “luminoso” está para “reis”, assim como “tosco” está para “escravos”.

«A partir do termo “escravo”, podemos pensar na ideia de manipulação e alienação política desse povo, o qual se torna escravo de um governo autoritário que se impõe física e ideologicamente. […]

O outro lado da alternância sugere que essas pessoas são como “reis”, o que pode ser lido no viés das virtudes dessa gente descrita. A “realeza” dessas pessoas pode, aliás, indicar que eles são quem, de facto, devem ter o poder, devem ser os governantes, em oposição à centralização de poder pelo Estado.»

Portanto, na condição de escravos essa “gente” afigura-se com um rosto “tosco” do qual só se libertando e sendo senhora de si mesma poderá revelar-se luminosa.

4. «O caráter mais cindido do povo suscita na voz poética, como mostra o início da terceira estrofe, a vontade de lutar e resistir contra um Estado que tira da sua própria gente a liberdade e os direitos de construir sua pátria por meio da participação política.»

«É nessa impossibilidade que surge o canto da voz poética e dela retira sua força, expondo ao leitor seus ideais: a busca pela liberdade, pela clareza e por um tempo justo.» Por isso, na última estrofe o sujeito poético afirma que o seu canto se renova.

5. «As referências àqueles que estão no poder são feitas a partir de animais que têm, no imaginário popular, algumas características vistas como pejorativas.

O abutre é um ser que se alimenta de carnes em decomposição e dejetos, ou seja, ele busca a podridão. Ele pode ser lido como uma analogia ao próprio governante Salazar, uma vez que é uma imagem reincidente na obra andreseniana. No poema “O Velho Abutre”, publicado em Livro Sexto, já temos uma relação metafórica entre essa ave e o ditador: “O velho abutre é sábio e alisa suas penas / A podridão lhe agrada e seus discursos / Têm o dom de tornar as almas mais pequenas” (Andresen 2011, 439). Assim, a autora retoma tal figura no presente poema, mostrando que o povo a instiga a lutar e a combater o abutre, isto é, o próprio Salazar.

A cobra simboliza a traição no imaginário popular, pelo seu caráter venenoso. Assim, por extensão de sentido, esse animal representa as pessoas que são falsas, que estão à espreita “para dar o bote”.

O porco também suscita a ideia da sujeira, dada a situação como ele é comumente criado.

E, por último, surge o milhafre, uma ave da família do gavião e da águia que representa a astúcia, a perspicácia, por ser um pássaro que vive no alto calculando maneiras de “roubar” sua caça. O caráter de caçador astucioso relaciona-se negativamente àqueles ligados à corrupção, que estão sempre a raciocinar meios e modos de obter o que desejam, como se caçassem sua presa.» 

6. «A voz poética, então, relata a condição desse povo: à mercê de governantes ligados à imundície, à ameaça e à podridão. Essa gente, além disso, tem “O rosto desenhado / Por paciência e fome”. […]

É pela fome e pela paciência que o país, o qual é “ocupado”, “escreve seu nome”. A noção de “país ocupado” aparece também em outros poemas mais políticos de Sophia de Mello Breyner e fazem clara referência àqueles que governam em situação de autoritarismo, que tomam o poder para si, controlando o povo e cerceando-lhe a liberdade e a vida digna. É sobre justamente essa gente que a ditadura se consolida, se torna real – por isso a ideia de escrever o nome. Pela escrita, a voz poética faz uma alusão à presentificação do poder e da ocupação desse governo. O “país ocupado”, então, é real na medida em que escreve seu nome nos rostos, talhando-os pela miséria e pela alienação.

A penúltima estrofe reforça a condição em que essa gente vive, “Ignorada e pisada / Como a pedra do chão”. A comparação entre o povo e a pedra mostra o processo de reificação dessa gente, tratada como objeto, privada de direitos básicos e controlada ideologicamente. A “coisificação” do povo indica de forma mais intensa o modo como essa população é tratada, sendo “humilhada e calcada” – termo esse que significa literalmente aquilo em que se pisou com força, que se comprimiu Nesse verso, os dois particípios, na condição de adjetivos, mostram uma situação abstrata de sentimento (a humilhação) e uma ação concreta (ser pisado com força), o que sugere esse caráter ambivalente do povo, visto ora como gente, ora como coisa.» 

Adaptado de: “Poema-resistência: a denúncia e o combate às mazelas sociais na poesia de Carlos de Oliveira e Sophia de Mello Breyner Andresen”, Nathália Macri Nahas. EOLLES Identités et Cultures n.º 9, 2018

   

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“Esta gente, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-01. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/esta-gente-sophia-andresen.html