PÁTRIA
Por um país de pedra e
vento duro
Por um país de luz
perfeita e clara
Pelo negro da terra e
pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio
e de paciência
Que a miséria longamente
desenhou
Rente aos ossos com toda
a exatidão
Dum longo relatório
irrecusável
E pelos rostos iguais ao
sol e ao vento
E pela limpidez das tão
amadas
Palavras sempre ditas com
paixão
Pela cor e pelo peso das
palavras
Pelo concreto silêncio
limpo das palavras
Donde se erguem as coisas
nomeadas
Pela nudez das palavras
deslumbradas
— Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu
centro
Me dói a lua me soluça o
mar
E o exílio se inscreve em
pleno tempo
Sophia
de Mello Breyner Andresen
LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964,
Lisboa, Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais
Editora • 4.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa,
Moraes Editores • 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista,
2003, Lisboa, Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial
Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio
de Gustavo Rubim.
O poema “Pátria” constrói-se
pela anáfora da preposição “por”, indicando em razão de que a voz poética
canta. Em seu canto, essa voz exprime aquilo que deseja para sua nação, ao
mesmo tempo em que indica o que dói nela ao observar sua realidade. Na primeira
estrofe, temos um país de pedra e de vento duro, mas a dureza da pedra e do vento
não significa aqui uma metáfora para a ocupação do país pelo medo e pela injustiça.
Diferentemente da realidade, a voz
poética expressa, na primeira estrofe, seu desejo de ter um país duro somente
em seu aspeto natural: as pedras que formam os montes, que calçam as ruas e o
vento que se impõe por sua força. Essa ideia se fortalece nos dois versos
seguintes: o canto é pela luz perfeita, e não a luz cinza da noite ocupada. O
muro é branco, é claro e limpo. Na descrição do país que deseja a voz poética,
temos elementos importantes da poesia andreseniana: a presença do real e a
busca pela limpidez e clareza no mundo. Temos também nesse trecho a descrição
do espaço físico e da arquitetura de Portugal: o vento, a iluminação e a terra
são traços da geografia do país, enquanto a pedra e os muros brancos
relacionam-se ao aspeto arquitetónico.
A estrofe seguinte traz a recorrente
metonímia do rosto para referir-se ao povo, novamente moldado pela dureza da
miséria e da paciência de esperar por mudanças em sua vida. Assim como em “Esta
Gente”, é por esse povo de rosto desenhado pela pobreza que a voz poética canta
sua pátria. Mas, como em “Regresso”, esse povo também tem seu rosto claro,
voltado para o sol e para o vento, como indica o único verso da terceira
estrofe. De certa forma, é uma antítese: o povo é marcado pela miséria, porém
tem seu rosto voltado para o sol. É essa oposição que forma a imagem de um povo
ora escravo, ora rei que aparece no poema anterior. Um povo que condensa em si
a força e a coragem, mas a miséria e a pobreza.
Na quarta estrofe, a voz poética inicia
seu canto à pátria por meio de outro elemento fundamental para a constituição
desta: a língua. O patrimônio linguístico é um dos princípios da formação dos
Estados modernos, e, no contexto do Estado Novo português, a linguagem
apresenta um viés importante. Roberto Vecchi, em sua análise do poema, insere-o
como uma glosa da relação moderna entre nação e língua (VECCHI, R., 2002, p.
258). Ele observa que o fazer poético nesse texto se constrói não somente como
um exercício lírico, mas também como um mecanismo de dizer a pátria, uma vez
que a poética é parte da língua e das narrativas do país. O poema é então “Um
exercício poético que se faz explorando o subtil limiar de dizer a pátria pelo
seu não dizer, registrando a surda fricção produzida pelas desconjunções da
nação com suas narrações” (Ibidem).
Por meio das palavras, Sophia Andresen
engrandece a interpretação do poema a partir do deslocamento do “núcleo crítico
do objeto declamado para o problema e sua representação (linguística)” (VECCHI,
R., 2002, p. 259), valendo-se de uma construção que busca permanecer isenta,
inicialmente, de subjetividade. Esse processo tem como base a “qualidade material”
de Sophia para a qual Vecchi chama a atenção, pela nitidez do campo visual trabalhado,
a materialidade concreta com a qual se trabalham os elementos.
A palavra, então, surge no poema com
duas “funções”: em um momento, ela faz parte, juntamente com o ambiente e com o
povo, da construção do imaginário da pátria – que aparece distante, dada a
imagem do exílio que se inscreve nesse tempo, conforme indica o último verso –.
Em outro momento, a linguagem torna real essa pátria distante por meio de sua
força presentificadora. Assim, quando a voz poética fala “E pela limpidez das
tão amadas / Palavras sempre ditas com paixão”, a língua se presentifica, em
toda sua expressão livre e nítida, pois até seu silêncio é limpo. É a palavra
que presentifica essa possibilidade de liberdade, de veemência e de
transparência da língua, uma vez que o contexto apenas reproduz palavras
manchadas pelo poder, pelo controle e pela demagogia.
Ademais, por meio do léxico variado
temos construções que expressam de forma mais objetiva a necessidade do real da
poesia andreseniana. Desde a primeira estrofe, a pátria é nomeada, ou seja, há
construções que se valem dos substantivos que criam as imagens desejadas. A
autora utiliza, além dos adjetivos, construções em que o adjunto adnominal
apresenta uma condição ou explicação sobre substantivo nomeado, como ocorre em
“país de pedra” e “rostos de silêncio e de paciência”. Esse recurso permite às
palavras que aparecem como adjuntos adnominais oferecer ao leitor uma imagem
mais concreta dos elementos formadores da nação.
Em “País de pedra”, por exemplo, há a
imagem da “pedra”, e não somente uma qualidade. O elemento que forma esse
território aparece de forma mais concretizada e mais ativa no poema. No verso
“Pelos rostos de silêncio e de paciência” temos uma estrutura semelhante. Os
adjuntos adnominais “silêncio” e “paciência” não são somente qualidades dos
rostos, mas aspetos formadores do povo. A miséria desenhou silêncio e a
paciência nos rostos, e não rostos pacientes e silenciosos. Nesse sentido, a
presença de um léxico de substantivos nos leva a enxergar objetivamente a
pedra, o silêncio e a paciência como vemos os rostos e espaço físico do país,
formando uma noção concreta da pátria e de seu povo.
No verso “E pelos rostos iguais ao sol
e ao vento”, o uso da comparação também possibilita a presentificação do sol,
além da luminosidade por ele oferecida, e do vento. Se a autora, por exemplo,
adjetivasse os rostos com o adjetivo “ensolarado”, a imagem do astro não seria
tão fortalecida no poema. A partir dessa estratégia de construção, a autora
intensifica a relação entre natureza e humanidade, o que configura uma temática
importante do plano poético andreseniano. Além disso, ao construir o poema por
meio de uma unidade semântica material, a autora relaciona-se com a busca pelo
real que caracteriza sua obra poética.
Após construir sua pátria por meio da
natureza, do povo e da língua, a voz poética insere-se como elemento de
representação da nação. Mas, ao dizer “seu país e seu centro”, a realidade
mostra-se: o tempo é de exílio. A lua lhe dói, assim como o mar nela soluça,
imagens que oferecem nesse trecho a subjetividade da voz poética que se sente
exilada de sua terra. O mar relaciona-se, como vimos, a um importante símbolo
de Portugal, além de ser uma das imagens mais recorrentes da lírica
andreseniana. Ao nomear a sua pátria, a voz poética depara-se com a dor, que a
afasta de sua terra. O canto presentifica a nação e a opõe àqueles que a
ocupam. O canto existe, mas sua presença é conflitante com o real, e isso dói
na voz poética. Ainda assim, seu canto é dito, e sua pátria, de alguma forma,
presentificada.
Nomear a nação em meio a um contexto
sociopolítico conturbado é, de facto, uma função que não se configura como
fácil para Sophia Andresen. Em uma correspondência a Jorge de Sena, datada de
1961, a autora afirma que sente aumentar a presença da raiva nas ruas de
Portugal, pois as pessoas olham os escritores com ódio nas “grossas mãos
fascistas” (ANDRESEN, S.; SENA, J., 2010, p. 51). Além disso, havia o
cerceamento ideológico causado pela censura e pelo controle sistemático dos
meios de comunicação, o que impedia drasticamente o debate político entre a
sociedade e a formação de um senso crítico mais apurado em relação ao que se
vivia.
Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia
de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015
© José Carreiro, 2021 |
“Pátria” tem, excecionalmente
em Andresen, uma estrutura de estrofes bastante variadas: totaliza seis, porém
de tamanhos sem paralelo com seus respetivos 3, 4, 1, 6, 4 e 2 versos cada.
Quanto à métrica, predominam os versos longos entre 10 e 13 sílabas poéticas,
não obstante a penúltima estrofe utilize versos heptassílabos em seu ato de
nomear as coisas pelos seus substantivos concretos. Essa exceção é relevante
porque a estrofe cita as “mesmas vinte palavras” repetidas na poesia de Sophia
Andresen. Chegam quase literalmente às vinte se, às onze da quinta estrofe,
somarmos outras relevantíssimas presentes no correr do poema: “país”, “luz”,
“muro”, “sol”, “palavras” etc. Assim, é um poema em que os substantivos
abstratos não têm grande manifestação, ainda que estejam supostos ou implicados
na potência abstrata, (re)criadora de mundos, dos substantivos concretos.
Os substantivos concretos
testemunham essa capacidade lírica de transformação. Andresen (2015, p. 575) já
dizia em “Poema” que “A frase que de coisa em coisa silabada / Grava no espaço
e no tempo a sua escrita”. Realmente, em “Pátria”, o eu-lírico parece enunciar sílaba
por sílaba os substantivos concretos. A maior separação gráfica da penúltima
estrofe reforça a importância da leitura pausada de cada palavra para
construção de seu efeito de sentido. O travessão que dá início à estrofe e o
vocativo final iniciado por “Ó” trazem o poema para o universo da declamação. O
poema só se realiza no poder de uma ação, portanto: a do falar para que seja,
nomeação que converte poesia em realidade. Toda a arquitetura do poema antecipa
que o enunciar dos substantivos concretos se dá pelo “país”, pelos “rostos” dos
cidadãos, pela “limpidez” das coisas, até pelas “palavras”. Fala-se em nome de
outros, em testemunho deles: “país”, “rostos”, “limpidez” e “palavras”. Por
fim, mesmo falando, o eu lírico sabe que seu projeto lírico está comprometido
na pátria dividida. O exílio se inscreve em sua vivência e deve ser nomeado
também, como cada coisa que foi enunciada antes, para daí se proceder à revisão
do mundo. Ou isso, ou o tempo seguirá sendo de exílio (substantivo concreto para
os que partiram; substantivo abstrato para os que ficaram).
Samuel Pereira, O
testemunho na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aproximações entre
ética e estética. Goiânia, UFG-FL, 2022
Poderá
também gostar de:
“Pátria,
Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-02. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/patria-sophia-andresen.html
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