sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Tu és a esperança, a madrugada. Eugénio de Andrade


 

XXIX

 

Tu és a esperança, a madrugada.

Nasceste nas tardes de setembro,

quando a luz é perfeita e mais doirada,

e há uma fonte crescendo no silêncio

da boca mais sombria e mais fechada.

 

Para ti criei palavras sem sentido,

inventei brumas, lagos densos,

e deixei no ar braços suspensos

ao encontro da luz que anda contigo.

 

Tu és a esperança onde deponho

meus versos que não podem ser mais nada.

Esperança minha, onde meus olhos bebem,

fundo, como quem bebe a madrugada.

 

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos, 1948 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017



 


Lê atentamente o poema “XXIX" ["Tu és a esperança, a madrugada"], de Eugénio de Andrade, e responde de modo estruturado às perguntas abaixo apresentadas.

 

1. O poema vinca a relação Eu – tu. A primeira estrofe apresenta a caracterização do destinatário das palavras do sujeito poético.

1.1. Explicita o valor metafórico dos dois primeiros versos, integrando-os na caracterização do destinatário.

2. A segunda estrofe refere a relação sujeito poético / destinatário (tu).

2.1. Explicita o poder criador do amor aí expresso poeticamente.

2.2. Interpreta o sentido dos dois últimos versos desta estrofe.

2.3. A terceira estrofe centra-se novamente no “tu”, agora, em relação com a própria criação poética.

2.4. Explica, em que medida, esta estrofe apresenta implicitamente uma conceção da conceção da poesia já desenhada na estrofe anterior.

3. O poema apresenta uma circularidade.

3.1. Demonstre como este aspeto se evidencia no texto e explicite a sua intencionalidade.

 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade, 2021-04-07. Anexo disponível em https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/12o/portugues/35

 

Texto de apoio

(…) se no poema XXIX encontramos um cenário diferente, pois o ser amado apresenta-se novamente como símbolo de vida e esperança, também esta composição deixa perceber que a falta de energia começa a ferir o sujeito lírico. Apesar de o outro continuar a suscitar o deleite do “eu, este encaminha-se para a esterilidade própria do fim do ciclo.

O “tu”, fonte e motivo da sua criação poética, é não só associado à madrugada, ou se quisermos à esperança, mas também às tardes de setembro, com a imanente doçura da luz outonal a caracterizá-lo. Em contraste, o “eu, outrora criador adâmico, é apenas o autor de palavras sem sentido, de brumas” e lagos densos e que se limita a esperar a luz do ser amado. A superioridade do tu não nos surpreende, pois o poeta a ela nos habituara. A transfiguração das personagens ao longo do livro revela-nos um ser amado que se metamorfoseia em elementos invariavelmente conotados com vida e fertilidade, como referimos atrás, ao passo que o sujeito poético ora se apresenta contemplativo e sabedor da sua inferioridade perante o outro, como, em rasgos de criatividade, é capaz de inventar paraísos terrestres para deleite e enaltecimento do ser amado. A vida, luz e frescura inventadas no poema VIII destoam do tom sombrio que a sua criação emana neste poema. Assim, os ribeiros serão substituídos por “lagos densos, a lua por brumas e o corpo, estendido sugestivamente no chão, será agora representado apenas pelos seus braços suspensos. A incapacidade inventiva do sujeito lírico serve para realçar a fonte de toda a esperança que é o outro, mas também nos anuncia o declínio da relação amorosa que se irá sentir particularmente nas composições que se seguem, criando um ambiente que evoca o derradeiro ciclo da vida.

A primeira estrofe, a mais longa, refere-se exclusivamente ao ser amado e o campo semântico aí presente está em sintonia com a imagem de esperança e de amor a ele associada, ao passo que a segunda se centra no “eu e tem como finalidade realçar, por contraste e oposição, as características e superioridade do outro. A última estrofe apresenta-se como a conclusão do que foi dito, estabelecendo, uma vez mais, a desigualdade entre os dois amantes e atribuindo ao outro a origem da vida e da criação poética.

O sentido da visão será o protagonista neste poema e, agora, são os olhos, não as mãos, que possibilitam a ligação dos amantes, união que culmina na imagem final dos dois últimos versos com a associação dos olhos ao ato de beber, confundindo deliberadamente as faculdades dos sentidos, o que empresta ênfase à ideia de comunhão que se pretende transmitir.

Da mesma forma, o sujeito lírico partilha com as aves e as fontes o ato de beber, verbo da predileção do poeta, que culmina a fusão plena do homem na natureza. Este verbo adquire na poesia de Eugénio de Andrade um significado muito especial e intimamente ligado à união dos amantes, como vimos. Esta ideia de que os seres ou coisas bebem algo é bastante usual ao logo do livro. Já no poema III, as fontes bebem a face do ser amado e, nos poemas V e XVI, são as aves que bebem dos seus dedos, como se fossem fontes, ou o “teu grito que pede a não sei que deus o seu destino. Também no poema XIX, as raízes, que seriam tecidas pelas suas mãos, hão de, um dia, beber o corpo do amado, para, no poema XXVIII, ser o sujeito poético quem bebe os horizontes. Beber torna-se, assim, uma forma plena de comunhão, uma fusão intensa entre os seres, uma vontade deliberada de integrar o outro ou apenas aquilo que o evoca. Este ato pressupõe uma identificação total entre os dois termos, entre aquele que bebe e o que sofre a ação, tornando-os um só elemento numa tentativa de união ascética através da união física.

Ana Oliveira, As Mãos e os Frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2010

 

 

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“Tu és a esperança, a madrugada. Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-11. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/tu-es-esperanca-madrugada-eugenio-de.html


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Que fizeste das palavras? (Eugénio de Andrade)

 



Que fizeste das palavras?

Que contas darás tu dessas vogais

de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,

ardendo entre o fulgor

das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando

te perguntarem pelas minúsculas

sementes que te confiaram?

 

Eugénio de Andrade, MATÉRIA SOLAR, 1980 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

Esquema interpretativo do poema “Que fizeste das palavras?”, de Eugénio de Andrade

 



Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade, 2021-04-07. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e535261/portugues-12-ano, inicia ao minuto 07’01’’



 

Análise de “Que fizeste das palavras?”

O poema, de Eugénio de Andrade, baseia-se no recurso intenso à interrogação retórica. Assim, o «eu» começa por questionar um «tu»: “Que fizeste das palavras?” Com esta interrogação retórica, ele reflete sobre o seu ofício de poeta, que é alguém que trabalha com as palavras. Ora, estas são constituídas por vogais e consoantes, resultam da fusão desses dois elementos.

As vogais são «azuis» (sensação visual), cor que simboliza a tranquilidade e a paz (a cor azul relembra, por exemplo, o céu e o mar, que reflete aquele), enquanto as consoantes ardem entre o “fulgor / das laranjas [cor quente] e o sol [símbolo de vida] dos cavalos” (animais que representam a força e a vitalidade). Assim sendo, as palavras possuem um grande potencial e diversidade. Por outro lado, estas metáforas traduzem a relação das palavras com a Natureza.

No terceiro terceto, o «eu» poético associa, metaforicamente, as palavras a “minúsculas sementes” (vv. 8-9), relacionando-as novamente à Natureza. Através desta metáfora (as palavras são sementes), ele sugere que o poeta e uma espécie de semeador, pois fá-las germinar, ou seja, semeia-as e fá-las nascer e crescer, isto é, o poeta constrói o poema como se se tratasse de um ser vivo. Então, isto significa que o poeta é um criador, dá vida (ao poema, à poesia) e tem de ser muito cuidadoso com o seu ofício.

Por outro lado, a poesia constitui uma tarefa de grande responsabilidade e as palavras têm grande potencial, pois são sementes, de onde surge uma planta. O ofício de poeta é um labor, um trabalho, uma construção e uma consciência do que se faz, com o objetivo de traduzir inquietações ou emoções do ser humano.

 

Disponível em: https://portugues-fcr.blogspot.com/2021/10/analise-de-que-fizeste-das-palavras.html, 2021.10.25

 

Matéria Solar (1978-1980)

 

1

Podias ensinar à mão

outra arte,

essa de atravessar o vidro;

podias ensiná-la

a escavar a terra

em que sufocas sílaba a sílaba;

ou então a ser água,

onde de tanto olhá-las

as estrelas caíam.

50

Que fizeste das palavras?

Que contas darás tu dessas vogais

de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,

ardendo entre o fulgor

das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando

te perguntarem pelas minúsculas

sementes que te confiaram?

 

Em cima à esquerda, citámos a primeira poesia desta coleção de Eugénio de Andrade, e a direita a última, ou quinquagésima. A primeira faz-nos lembrar a poesia «Oficio» (da coleção Obscuro Domínio), cujo tema era também «a maldição da palavra poética». Entre estas duas poesias (a primeira e a quinquagésima) o poeta amaldiçoou muitas vezes o seu ofício, mas, apesar disso, a ele sempre voltou por não haver outra solução. Ele «podia ensinar a mão» um qualquer oficio, mas agora é demasiado tarde para tal decisão, pois a velhice já chegou. Daí que, depois destas 49 poesias (que, do ponto de vista do «conteúdo», não trazem de facto nada de novo, senda o seu único ideal a música e o silêncio) o poeta examine minuciosamente a sua consciência: o que dirá as «palavras», as «vogais» e as consoantes» quando o chamarem à ordem?

Nas demais 48 poesias seguem-se todos os arquétipos que caracterizam a poesia de Eugénio de Andrade. Apenas o homem - o poeta se transformou. Ele já não conquista o mundo através do amor (como nas suas primeiras coleções), nem se esgota em esforços para fazer regressar a juventude, custe-lhe o que custar, mas concilia-se sim, de todo, com o seu destino, aceitando a velhice e as suas consequências: «Ser não é fácil... fácil, só a merda...» [epígrafe ao livro Matéria Solar citada do livro Aos inimigos, de Vladimir Holan]. O poeta está bem consciente disso. Porém, apesar disso, não pode deixar de amar, porque, sem amor, ele deixaria de ser poeta. Como para ele o amor é, antes de tudo, o corpo, verifica-se que a velhice não pode amar. Daí as suas «excursões» ao passado, aquele tempo em que ainda podia amar.

 

Níkíca Talan, “O Neotrovadorismo na Poesia de Eugénio de Andrade II”. Studia Romanica et Anglica Zagrabiensia: Revue publiée par les Sections romane, italienne et anglaise de la Faculté des Lettres de l’Université de Zagreb, vol. 40, 1995.

 

 

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“Que fizeste das palavras? (Eugénio de Andrade)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-10. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/que-fizeste-das-palavras-eugenio-de.html


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

As palavras interditas, Eugénio de Andrade



AS PALAVRAS INTERDITAS

 

Os navios existem, e existe o teu rosto

encostado ao rosto dos navios.

Sem nenhum destino flutuam nas cidades,

partem no vento, regressam nos rios.

 

Na areia branca, onde o tempo começa,

uma criança passa de costas para o mar.

Anoitece. Não há dúvida, anoitece.

É preciso partir, é preciso ficar.

 

Os hospitais cobrem-se de cinza.

Ondas de sombra quebram nas esquinas.

Amo-te… E entram pela janela

as primeiras luzes das colinas.

 

As palavras que te envio são interditas

até, meu amor, pelo halo das searas;

se alguma regressasse, nem já reconhecia

o teu nome nas suas curvas claras.

 

Dói-me esta água, este ar que se respira,

dói-me esta solidão de pedra escura,

estas mãos noturnas onde aperto

os meus dias quebrados na cintura.

 

E a noite cresce apaixonadamente.

Nas suas margens nuas, desoladas,

cada homem tem apenas para dar

um horizonte de cidades bombardeadas.

 

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas, 1951 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 



 

Para responder a cada item, selecione a opção correta, de acordo com o sentido do texto.

1. A 1.ª estrofe do texto poético traduz:

a) o contraste entre o que é perene e efémero;

b) a existência de uma linha regular de navegação;

c) a constância das imagens/recordações;

d) a presença fugaz do rosto do objeto amado.

2. “É preciso partir, é preciso ficar.” (v. 8) significa:

a) a cisão do sujeito poético, preso entre a necessidade de se evadir da situação em que se encontra e a sua impotência para o fazer;

b) uma luta interior da voz lírica, que necessita de embarcar num dos navios;

c) o medo do “eu” lírico face à escuridão;

d) a tomada de uma decisão.

3. As imagens luminosas:

a) apresentam-se fragmentadas ao longo do poema, encobertas pela noite que cresce;

b) traduzem-se num sentimento de fragmentação do passado;

c) convocam palavras interditas;

d) emergem quando o sujeito lírico recorda o amor que experimenta pelo amado.

4. Os versos “Dói-me esta água, este ar que se respira,/ dói-me esta solidão de pedra escura,/ estas mãos noturnas (…)” (vv. 17-19) constituem-se como uma:

a) comparação;

b) antítese;

c) enumeração;

d) eufemismo.

 

Chave de correção: 1.d); 2.a); 3.a); 4.c).

(Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa - Ensino Secundário. 1.ª Fase - 2014-03-18. Portugal, Direção-Geral da Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)

 


Esquema interpretativo do poema “As palavras interditas”, de Eugénio de Andrade

 


 

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade, 2021-04-07. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e535261/portugues-12-ano, inicia ao minuto 21’20’’

 

 

Texto de apoio 1

O título do poema é significativo, e não isento de alguma ledice fónica: «Palavras Interditas», «Palavras Inter-Ditas» (proferidas entre duas pessoas). Porquê «interditas»? Diversas reflexões hipotéticas se colocarão ao leitor: a) por serem censuradas, proibidas por alguma instituição? b) porque o eu / emissor não as consegue exprimir, transmitir?; c) O tu / recetor / pessoa amada não recebe a mensagem, ou não a aceita, ou não responde?; d) a mensagem é factualmente emitida, porém, o recetor interpreta-a de forma distorcida?

A impossibilidade de comunicação é, em qualquer caso, o tema do texto. O cenário citadino, infere-se, será o de uma Babilónia de tão diferentes discursos e díspares sensibilidades que a troca entre os habitantes não sucede. Tal assunto será retomado, dois livros depois, na obra Coração do Dia, na primeira estrofe do poema «Um Rio Te Espera».

Uma leitura próxima de «As Palavras Interditas» exclui umas e concretiza outras das pistas enunciadas. Elabora-se, no texto, um esquema comunicativo. Existe um emissor («as palavras que te envio»), uma mensagem, que poderá ser a da terceira estrofe («Amo-te»), um recetor ou ente amado («meu amor»).

A interdição das palavras é resultante, como nota o emissor, da negação da comunicabilidade: «se alguma |palavra| regressasse, nem já reconhecia / o teu nome nas suas curvas claras». A trincheira é, portanto, da responsabilidade do «tu», do outro. Porquê? Três hipóteses: a) o recetor recusa a prova de afeto. Neste caso, o conflito entre o poeta e a pessoa amada poderá ser indício, microcosmos, da situação de guerra que é evocada no poema; b) o recetor não chega a receber a mensagem, talvez por estar ausente na guerra, ou dela ter sido vítima; c) a guerra transtornou tanto o recetor que, sendo já uma pessoa diferente é indiferente, passo o trocadilho, à mensagem do eu poético.

O discurso do conflito é refletido em vários momentos do poema. Enfatiza-se a anti-naturalidade da guerra: a «cinza» dos bombardeamentos humanos opõe-se à «areia branca» natural. Também na segunda quadra se diz: «uma criança passa de costas voltadas para o mar» – uma imagem a mostrar que a guerra é um facto político-social, postura de contradição com a fusão homem / natureza. Aliás, os elementos naturais pré-socráticos estão representados no texto: água («rios», «mar», «água»), ar («vento», «ar»), terra («areia», «colinas», «pedra escura», «margens»). Só o fogo é humano, resultado da máquina bélica («luzes das colinas» – labaredas das cidades flageladas). Mais explícitas são as referências aos soldados deslocadas para a batalha («é preciso partir») ou à angústia dos que permanecem ou caem mortos em terra estranha («é preciso ficar»), dos que regressam feridos («hospitais»), dos bombardeamentos («cobrem-se de cinza»), a devastação («dias quebrados» ou «margens nuas»).

Ainda neste âmbito, é relevante reparar no cenário do poema. Tons escuros cobrem o texto: «cinza», «pedra escura», «noite». O dia cai, ao longo dos versos: «anoitece», «ondas de sombra», «primeiras luzes das colinas», «mãos noturnas», «a noite escura». Tudo a culminar na ágorafobia final, versos belíssimos.

Porém, repare-se na ambivalência poética eugeniana. A liberdade de opção do ser humano – a recordar a Manuel Alegre «Com estas mãos se faz a paz e se faz a guerra» – a árdua escolha ou não escolha dos existencialistas. A guerra morta («Thanatos») ou a paixão («Eros») estão presentes em «As Palavras Interditas». Com efeito, a «pedra escura» tanto pode ser uma lápide tumular, como o genesíaco menir, símbolo megalítico de fertilidade. Ainda nesta linha, o «halo das searas» tanto representará o clarão das explosões do bombardeamento, como se poderá relacionar com crenças pagãs que ligam o trigo à fecundidade. O trigo ou o cabelo loiro eram tidos como resultantes da intervenção de uma cabeça sagrada do deus Sol (Apolo, Adonis, Orfeu, Tammuz), da deusa lua (Ceres) ou da deusa terra (Cardea, Mai, Maya, Mari ou Maria). Por fim, acresce dizer que a própria noite tem, na tradição poética, ínfimo campo de relacionamento: morte, amor: «a noite cresce, apaixonadamente». E é nas suas margens que nos encontramos. Numa riba, o emissor, o eu; noutra, o recetor, o outro, o inferno sartriano. Num lado, o bem; noutro, o mal. Entre ambos, o abismo da escolha, a separação, as pontes queimadas, a indecisão do poeta estadunidense Auden, ao terminar o seu poema «ou nos amamos ou morremos» – ou será «amamo-nos e morremos»?

António Gedeão e Eugénio de Andrade: Viagens pela Urbe Babilónica”, João de Mancelos. Máthesis n.º 5, jan. 1996, pp. 463-7, doi:10.34632/mathesis.1996.3774

 


Texto de apoio 2

A confirmação de que “os navios existem” surge como um contraponto ao sentimento de fragmentação do presente: o “navio” parece ser a única coisa que “existe” e que apresenta inteireza em meio às ruínas de uma cidade que lembra a “terra desolada” do cenário do pós-guerra, em que “hospitais” se cobrem de “cinzas” e “ondas de sombra”. O ar é pesado, a “noite cresce” e encobre certas imagens luminosas que, em sequências fragmentadas, se apresentam ao longo dos versos: “areia branca”, “primeiras luzes das colinas”, “halo das searas”, “curvas claras”. Esses estilhaços de “luz”, portanto, aos poucos se extinguem nas “mãos noturnas” e na “solidão de pedra escura”: “Anoitece. Não há dúvida, anoitece”.

O “navio” é um signo que possui a inteireza de um símbolo ou de uma metáfora14, em meio a outros elementos espedaçados da paisagem, que funcionam como espécies de “alegorias”15, tal como definida por Rosa Maria Martelo. Desse modo, apresentando-se como um veículo de fuga, de exílio, de saída de um país tornado inabitável, o “navio” evoca um espaço de maior inteireza, em que talvez seja possível experimentar uma realidade alternativa à desolação do entorno16. No entanto, está “à deriva”, “sem destino”, levando encostado ao seu o “rosto do amado”, flutuando e “regressando” nos rios, e apresentando-se, portanto, como veículo de separação dos amantes. Desse modo, associado a uma vida clandestina, de fuga, exílio ou mesmo saída para a guerra, o “navio” se distancia da visão idílica geralmente evocada, ou da imagem gloriosa da nação. Nesse vaivém indeterminado do “navio”, entremeio entre o “claro” e o “escuro” frequentemente contrastados no poema17, se posiciona a voz lírica: “É preciso partir, é preciso ficar”.

Uma poesia que se caracteriza pela autovigilância e capacidade de transformação, que pretende afirmar-se contra a ausência, resistir à opressão humana propõe também aqui a procura pelo “verdadeiro rosto humano”. Porém, como demonstra esse poema, divide-se entre a vontade do “sim” e o sentimento de negação que habita os “dias quebrados na cintura” e o “horizonte de cidades bombardeadas”. Ao pronunciar “Amo-te”, “as primeiras luzes da colina” entram pela janela, mas vagueiam sem destino, sem conseguir se consubstanciar em palavra poética, e o “Nome” do amado perde-se nas “curvas claras”.

A distância de toda origem é anunciada na imagem: “Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar”18, cujos constituintes, que formariam uma unidade-arquetípica, se desagregam, mimetizando a profunda dissolução do mundo e do sujeito. O signo “criança” também tem a espessura simbólica de um “navio”, porém, do mesmo modo que este, flutua sem destino, caminha “de costas” para outros referentes, retrocedendo o processo de encontro e realização da imagem poética. O mesmo signo também aparece em outros poemas, como “criança cega / aos tropeções dentro de ti”, “criança adormecida” e “sem nenhuma criança acordada”19.

Por conseguinte, o “navio” a flutuar pela cidade, em alguns poemas, “barco perto, distante, perdido” (1966, p. 102), associa-se, por um lado, à errância urbana e à experiência do não-lugar em As palavras interditas, mas também sugere, por outro, um espaço de resistência, em que é possível navegar, ainda que sem destino. Ora comparado ao corpo do amado que parte, como em “Reconheço o teu corpo [...]/ flutuando sem limites na espessura/ da noite” (1966, p. 123), ora equiparado à palavra poética ou a um “pássaro”, como em “Um pássaro e um navio são a mesma coisa / quando te procuro de rosto cravado na luz” (1966, p. 114), o “navio” faz-se presente em muitos poemas do livro que se demoram sobre o movimento de partida e separação, como sugerem os títulos de certas composições: “Viagem”, “Mar, mar e mar”, “Adeus”; ou os versos “amor de uma viagem noturna”, “A minha morte é este vaguear contigo”, “onda e outra onda e outra / desfaz o seu corpo azul contra o meu corpo”.20 Em poemas como “Adeus”, “Litania” ou “Viagem”, a lenta movimentação de partida é anunciada: por vezes, a voz lírica parece entoar do próprio “navio” que parte, outras vezes da praia onde o sujeito vê o navio seguir rumo.

Os navios sem nenhum destino e a cidade dividida em as palavras interditas (1950-1951), de Eugénio de Andrade”, Joana Araújo. Revista Desassossego 9 – junho/2013

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14 Na definição de Rosa Maria Martelo, o “símbolo” ou a “metáfora”, apesar das diferenças, revelam, ambos, certa “essência” capaz de conter em si mesma a parte e o todo da substância que representa, estabelecendo, por isso, uma relação de unidade com o mundo. Como dissemos anteriormente, em As palavras interditas, o “navio” é recuperado alegoricamente para significar os destinos da nação portuguesa, tendo, desde os descobrimentos, se tornado uma das imagens mais carregadas no imaginário português. No entanto, nesta afirmação, tomamos o sentido de “alegoria” como entendido pelos antigos: figura ornamental, que não se distinguia do símbolo na tradição greco-latina, medieval e renascentista, conforme explica Hansen (HANSEN, 2006, p. 15). Assim, em contraste com os demais elementos da paisagem, o “navio” possui a inteireza do “símbolo” ou da “alegoria” no sentido antigo, ao passo que os demais elementos fragmentados da paisagem são lidos aqui como “alegorias modernas”, conforme explicamos mais adiante no texto. Ou seja, o sentido de “alegoria” que evocamos e que mais se expressa em As palavras interditas é aquele ressignificado por Baudelaire, o qual Walter Benjamin definiu como “destruição do orgânico e extinção da aparência”: fragmentos e ruínas daquilo que outrora salvaguardava o mito. Para evitar confusão, designamos o “navio”, em toda sua inteireza, como “símbolo”.

15 Rosa Maria Martelo discorre sobre a diferença entre o símbolo e a metáfora de um lado, e a alegoria de outro: “Próprio do símbolo, como atesta a etimologia, é o lance simultâneo, o lançar conjuntamente, de que a metáfora guarda, identicamente, a valorização da produtividade que decorre da intersecção de dois reinos diferenciados mas unidos num terceiro; próprio da alegoria é o lance que se faz em vez de, e por conseguinte no reconhecimento de nesse movimento haver sempre uma vertente de perda, uma dimensão que não comparece” (MARTELO, 2007, p. 96). Martelo abraça a “reapreciação” da alegoria (desvalorizada pela tradição crítica desde o Romantismo) por parte de Walter Benjamin e mais tarde por Paul de Man e Craig Owens. Esses autores foram responsáveis por investigar a alegoria não mais como uma figura de linguagem meramente ornamental e estilística, mas como um “formante de uma relação com o mundo e, por conseguinte, também uma condição da apresentação dessa relação” (MARTELO, 2007, p. 89). Nessa perspetiva, o “olhar do alegorista” expressaria a experiência de perda irredimível em relação ao tempo: ao debruçar-se sobre a própria “fissura”, sobre a separação em si mesma, manifestaria a perda e a “distância de sua própria origem”, estabelecendo “a sua linguagem no vazio dessa diferença temporal” (MARTELO, 2007, p. 96). Em As palavras interditas, a alegoria é a figura mais frequentemente empregada na descrição da paisagem urbana, no centro da qual habita o sujeito incompleto e angustiado, à procura de uma unidade reveladora do ser. Por outro lado, o signo central do “navio” mantém a inteireza de um símbolo ou de uma metáfora embora encene, à deriva, a impossibilidade do encontro esperado com outros constituintes imagéticos, permanecendo no centro de uma imagem fragmentada do mundo.

16 Sobre este poema, Eduardo Prado Coelho escreveu: “O navio dentro da cidade parece transmitir uma relação de um lugar de resistência frente à ruína e a opressão: navios que, atravessando o desespero, a ditadura e a morte, permitem a passagem dos passageiros clandestinos que a eles se encostam e das mensagens que eles enviam, palavras interditas – notícias de bloqueio” (COELHO, 1971, p. 74).

17 Contrastes marcados ao longo de todo o poema: “ondas de sombra” X “primeiras luzes das colinas”; “anoitece” X “areias brancas”/ “halo das searas”; “água” X “pedra”; “mãos noturnas” X “dias quebrados na cintura”; partir X ficar; partir X regressar, unidade X ruína; “mar” X “cidade”.

18 A imagem aqui poderia também se referir à recusa da juventude de seguir pelo mar, associada no imaginário português à saída para a guerra ou para as colônias, a serviço da nação.

19 Respetivamente: p. 100, p. 101 e p. 109.  

20 Respetivamente: dos poemas “Litania”, p. 101, “Rosto afogado”, p. 117, e “Mar, mar e mar”, p. 120.

 



 

 

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“As palavras interditas, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-09. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/as-palavras-interditas-eugenio-de.html


terça-feira, 8 de novembro de 2022

Ser poeta, Euclides Cavaco

 

Euclides Cavaco


Ser poeta

 

Ser Poeta

É predicado

Não se estuda nem se aprende

É um dom ao nascer dado

Não se compra nem se vende.

 

Ser poeta

É divagar

Pelo Universo infinito

Na ânsia de desvendar

O seu mistério inaudito

 

Ser poeta

É possuir

Rara sensibilidade

Da voz das coisas ouvir

E dar-lhes vitalidade

 

Ser poeta

É entender

A perene Natureza

E em verso descrever

A sua bruma e beleza.

 

Ser Poeta

É transformar

Duma forma enternecida

As palavras para dar

Mais sentido à própria vida!

 

Ser poeta

É ter talento

De expressar a inspiração

Ousado eu…. Quando tento

Sou apenas pretensão!...

 

Euclides Cavaco, 2007

 

Questionário sobre o poema “Ser poeta”, de Euclides Cavaco.

1. As cinco primeiras estrofes foram sintetizadas em cinco frases. Faça corresponder cada frase à estrofe que sintetiza.

a) Ser poeta é sonhar mais alto.

b) Ser poeta é dar palavras com ternura.

c) Ser poeta é ser especial.

d) Ser poeta é captar o mistério e a beleza das coisas.

e) Ser poeta é dar vida a tudo.

2. Com base nas cinco primeiras estrofes, complete a frase. Deve fazer corresponder uma palavra ou expressão a cada número.

Para se ser poeta, tem de se ter (1)_____, ser-se (2) _____, ter (3) _____, entender a (4) _____ e valorizar as (5) _____.

3. Complete a frase, de modo a explicar o sentido da sexta estrofe.

Nos dois últimos versos, o sujeito poético refere-se à sua (1) _____ de querer ser poeta, mas afirma que é «(2)_____».

 

Chave de correção:

1. a) estrofe 2; b) estrofe 5; c) estrofe 1; d) estrofe 4; e) estrofe 3.

2. Para se ser poeta, tem de se ter (um) dom, ser-se sonhador, ter sensibilidade, entender a Natureza e valorizar as palavras.

3. Nos dois últimos versos, o sujeito poético refere-se à sua ousadia de querer ser poeta, mas afirma que é «apenas pretensão».

 

(Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa - Ensino Secundário. 2.ª Fase - 2013-05-13. Portugal, Direção-Geral da Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)

 

Entrevista a Euclides Cavaco:


Gravado ao vivo no estúdio de FadoTV, em 2010

 


“Ser poeta, Euclides Cavaco”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-08. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/ser-poeta-euclides-cavaco.html



segunda-feira, 7 de novembro de 2022

As pedras falam? (Maria Alberta Menéres)


 

AS PEDRAS

 

As pedras falam? Pois falam

mas não à nossa maneira,

que todas as coisas sabem

uma história que não calam.

 

Debaixo dos nossos pés

ou dentro da nossa mão

o que pensarão de nós?

o que de nós pensarão?

 

As pedras cantam nos lagos

choram no meio da rua

tremem de frio e de medo

quando a noite é fria e escura.

 

Riem nos muros ao sol,

no fundo do mar se esquecem,

umas partem como aves

e nem mais tarde regressam.

 

Brilham quando a chuva cai,

vestem-se de musgo verde

em casa velha ou em fonte

que saiba matar a sede.

 

Foi de duas pedras duras

que a faísca rebentou:

uma germinou em flor

e a outra nos céus voou.

 

As pedras falam? pois falam.

Só as entende quem quer,

que todas as coisas têm

uma coisa para dizer.

 

Maria Alberta Menéres, Conversas com versos, 4.ª ed., ASA, 2009 (1.ª ed. 1968)


***


 «O poema “As pedras” é uma espécie de manifesto poético ou compromisso com o mundo.»

Riscado, L. (2003). “Maria Alberta Menéres: aquém e além do horizonte – imaginação e harmonia dos tempos”. In No branco do sul as cores dos livros: 5.º encontro sobre literatura para crianças e jovens: atas. Escola Superior de Educação. Instituto Politécnico de Beja (org.), (pp. 41-57)



 


Para responderes a cada item, seleciona a opção mais adequada ao conteúdo do poema "As Pedras", de Maria Alberta Menéres.

1. O sujeito poético assume que as pedras falam, mas

a) não contam histórias.

b) têm uma linguagem própria.

c) só na noite fria e escura.

d) nunca respondem às nossas questões.

 

2. As pedras são vistas

a) de acordo com uma perspetiva humana.

b) nas ruas a tremer e a rir.

c) quando a chuva cai.

d) de noite.

 

3. O sentido global do poema remete para a ideia de que

a) as pedras tentam comunicar com os homens.

b) com as pedras se fazem casas.

c) as coisas têm uma existência significativa.

d) os humanos podem comunicar com as pedras.

 

4. A repetição das perguntas

a) reflete o questionamento do sujeito poético acerca da realidade.

b) exige uma resposta concreta das pedras.

c) estabelece a diferença entre os humanos e as pedras.

d) assinala o diálogo entre o sujeito poético e as pedras.

 

Chave de respostas: 1.b; 2.a; 3.c; 4.a.

(Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa - 3.º Ciclo do Ensino Básico. 1.ª Fase - 2015-04-24. Portugal, Direção-Geral da Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)

 

https://issuu.com/selosesc/docs/conversas_com_versos_encarte/4

 


“As pedras falam? (Maria Alberta Menéres)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-07. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/as-pedras-falam-maria-alberta-meneres.html