Que
fizeste das palavras?
Que
contas darás tu dessas vogais
de
um azul tão apaziguado?
E
das consoantes, que lhes dirás,
ardendo
entre o fulgor
das
laranjas e o sol dos cavalos?
Que
lhes dirás, quando
te
perguntarem pelas minúsculas
sementes
que te confiaram?
Eugénio
de Andrade, MATÉRIA SOLAR, 1980
(1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
Esquema
interpretativo do poema “Que fizeste das palavras?”, de Eugénio de Andrade
Fonte:
Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 35 de Português – 12.º ano, sobre os poemas "Que
fizeste das palavras?" e "Palavras interditas”, de Eugénio de Andrade,
2021-04-07. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e535261/portugues-12-ano,
inicia ao minuto 07’01’’
Análise de
“Que fizeste das palavras?”
O
poema, de Eugénio de Andrade, baseia-se no recurso intenso à interrogação
retórica. Assim, o «eu» começa por questionar um «tu»: “Que fizeste das
palavras?” Com esta interrogação retórica, ele reflete sobre o seu ofício de
poeta, que é alguém que trabalha com as palavras. Ora, estas são constituídas
por vogais e consoantes, resultam da fusão desses dois elementos.
As
vogais são «azuis» (sensação visual), cor que simboliza a tranquilidade e a paz
(a cor azul relembra, por exemplo, o céu e o mar, que reflete aquele), enquanto
as consoantes ardem entre o “fulgor / das laranjas [cor quente] e o sol [símbolo
de vida] dos cavalos” (animais que representam a força e a vitalidade). Assim
sendo, as palavras possuem um grande potencial e diversidade. Por outro lado,
estas metáforas traduzem a relação das palavras com a Natureza.
No
terceiro terceto, o «eu» poético associa, metaforicamente, as palavras a
“minúsculas sementes” (vv. 8-9), relacionando-as novamente à Natureza. Através
desta metáfora (as palavras são sementes), ele sugere que o poeta e uma espécie
de semeador, pois fá-las germinar, ou seja, semeia-as e fá-las nascer e
crescer, isto é, o poeta constrói o poema como se se tratasse de um ser vivo.
Então, isto significa que o poeta é um criador, dá vida (ao poema, à poesia) e
tem de ser muito cuidadoso com o seu ofício.
Por
outro lado, a poesia constitui uma tarefa de grande responsabilidade e as
palavras têm grande potencial, pois são sementes, de onde surge uma planta. O
ofício de poeta é um labor, um trabalho, uma construção e uma consciência do
que se faz, com o objetivo de traduzir inquietações ou emoções do ser humano.
Disponível em: https://portugues-fcr.blogspot.com/2021/10/analise-de-que-fizeste-das-palavras.html, 2021.10.25
Matéria Solar
(1978-1980)
1 Podias ensinar à mão outra arte, essa de atravessar o vidro; podias ensiná-la a escavar a terra em que sufocas sílaba a sílaba; ou então a ser água, onde de tanto olhá-las as estrelas caíam. |
50 Que
fizeste das palavras? Que
contas darás tu dessas vogais de
um azul tão apaziguado? E
das consoantes, que lhes dirás, ardendo
entre o fulgor das
laranjas e o sol dos cavalos? Que
lhes dirás, quando te
perguntarem pelas minúsculas sementes
que te confiaram? |
Em cima à esquerda,
citámos a primeira poesia desta coleção de Eugénio de Andrade, e a direita a
última, ou quinquagésima. A primeira faz-nos lembrar a poesia «Oficio» (da coleção
Obscuro Domínio), cujo tema era também «a maldição da palavra poética».
Entre estas duas poesias (a primeira e a quinquagésima) o poeta amaldiçoou muitas
vezes o seu ofício, mas, apesar disso, a ele sempre voltou por não haver outra solução.
Ele «podia ensinar a mão» um qualquer oficio, mas agora é demasiado tarde para
tal decisão, pois a velhice já chegou. Daí que, depois destas 49 poesias (que,
do ponto de vista do «conteúdo», não trazem de facto nada de novo, senda o seu
único ideal a música e o silêncio) o poeta examine minuciosamente
a sua consciência: o que dirá as «palavras», as «vogais» e as consoantes»
quando o chamarem à ordem?
Nas demais 48 poesias
seguem-se todos os arquétipos que caracterizam a poesia de Eugénio de Andrade.
Apenas o homem - o poeta se transformou. Ele já não conquista o mundo através
do amor (como nas suas primeiras coleções), nem se esgota em esforços para
fazer regressar a juventude, custe-lhe o que custar, mas concilia-se sim, de
todo, com o seu destino, aceitando a velhice e as suas consequências: «Ser não
é fácil... fácil, só a merda...» [epígrafe ao livro Matéria Solar citada do
livro Aos inimigos, de Vladimir Holan]. O poeta está bem
consciente disso. Porém, apesar disso, não pode deixar de amar, porque, sem
amor, ele deixaria de ser poeta. Como para ele o amor é, antes de tudo, o corpo,
verifica-se que a velhice não pode amar. Daí as suas «excursões» ao passado,
aquele tempo em que ainda podia amar.
Níkíca Talan, “O Neotrovadorismo na Poesia de Eugénio de
Andrade II”. Studia
Romanica et Anglica Zagrabiensia: Revue publiée par les Sections romane,
italienne et anglaise de la Faculté des Lettres de l’Université de Zagreb, vol.
40, 1995.
Poderá também gostar de:
“Que
fizeste das palavras? (Eugénio de Andrade)”, José Carreiro. Folha de Poesia,
2022-11-10. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/que-fizeste-das-palavras-eugenio-de.html
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