quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Poema à mãe, Eugénio de Andrade


 

POEMA À MÃE

 

No mais fundo de ti,

eu sei que traí, mãe.

 

Tudo porque já não sou

o menino adormecido

no fundo dos teus olhos.

 

Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais.

 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

 

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura.

 

Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos.

 

Mas tu esqueceste muita coisa;

esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!

 

Olha — queres ouvir-me? —

às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;

 

ainda oiço a tua voz:

Era uma vez uma princesa

no meio de um laranjal…

 

Mas — tu sabes — a noite é enorme,

e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.

 

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas.

 

Boa noite. Eu vou com as aves.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 



 

Linhas de leitura do “Poema à mãe”, de Eugénio de Andrade

O poeta sente-se dividido entre a necessidade vital de cortar o cordão umbilical que prendia a criança à esfera protetora da mãe e a pena de ter de o fazer.

Por isso, o seu discurso é meigo, persuasivo, justificativo, e não um grito impetuoso de adolescente que rompe abruptamente com as amarras da servidão.

O fantasma da traição filial persegue o sujeito, que se debate com a dificuldade de se desembaraçar do abraço superprotetor e narcísico de quem devia conceber a maternidade como uma dádiva ao mundo e não como a posse egoísta de um objeto. Daqui a consciência da relação filial como um amor infeliz (v.11), em face da incompreensão do natural crescimento. As queixas, ainda que duras (v. 10), acerca dessa incompreensão, expressas através de imagens visuais do retrato adormecido (v. 4) e da perda das rosas brancas no retrato da moldura (vv. 12-13), são compensadas pela reiteração de fidelidade filial, apesar das mudanças verificadas; «às vezes ainda sou o menino / que adormeceu nos teus olhos; // ainda aperto contra o coração / rosas tão brancas / como as que tens na moldura.» (vv. 23-27)

As rosas brancas da inocência, se bem que perdidas, ainda são nostalgicamente recordadas, juntamente com os sinais auditivos da voz materna, associada à memória do conto popular: «ainda oiço a tua voz: Era uma vez, uma princesa».

E, apesar do impulso natural de crescer e da sedução dos novos «leitos onde o frio não se demora» (v. 7) apesar da imensidade da noite, a emancipação adolescente é negativamente conotada com a exploração dos olhos pelas aves (v. 34).

Por isso, ao sair da moldura (v. 33) do quadro infantil, ao deixar as rosas (v. 37) da inocência, ao partir com as aves (v. 38), o sujeito guarda no seu interior a voz materna como símbolo da persistência de um passado. 

(Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 122-123)

 ***

Note que a diferença fundamental é a atividade passada do Eu/Tu em confronto com a fixidez (confinada ao espaço da «moldura») do presente.

Note o conservar do passado «dentro de mim» (v. 36), ou seja, a transformação dada apenas como exterior («todo o meu corpo cresceu» (v. 32)). Assim se justificará a presença dessa mãe irremediavelmente perdida, mas mantida presente, como a chama de Vesta1, em toda a obra de Eugénio de Andrade.

(In Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 76)

__________

Vesta – brilhante e pura como a chama que a simboliza, é a mais bela das divindades romanas. Para os Latinos personifica a Terra e o Fogo; mas os Romanos conservaram-lhe apenas a segunda atribuição, reduzindo-a, todavia, ao lume exclusivamente familiar e dos templos. (in Mitologia Geral I, Mª Lamas, Ed. Estampa, 1991, p. 362)

 

 

Maria dos Anjos Fontinhas
(mãe de Eugénio de Andrade)

 

Texto de apoio

O trabalho contínuo de transubstanciação que a poesia eugeniana realiza da própria sensação de perda do instante − frequentemente agregada à dor da separação da mãe − revela-se em imagens fugidias e evanescentes como essa (bem como os “sonhos tresmalhados” do poema), ou como, por exemplo, as “pedras” lançadas ao horizonte em “Abril”, poema imediatamente posterior a “Os amantes sem dinheiro”, no qual novamente encontramos uma criança em meio às primeiras descobertas:

Abril

Brinca a manhã feliz e descuidada,

como só a manhã pode brincar,

nas curvas longas desta estrada

onde os ciganos passam a cantar.

Abril anda à solta nos pinhais

coroado de rosas e de cio,

e num salto brusco, sem deixar sinais,

rasga o céu azul num assobio.

Surge uma criança de olhos vegetais,

carregados de espanto e de alegria,

e atira pedras às curvas mais distantes

– onde a voz dos ciganos se perdia.

(ANDRADE, 1966, p. 66)

Embora o cenário seja de infância e de êxtase paradisíaco, em que a própria manhã de “Abril” brinca junto à criança, enleada aos elementos da paisagem “no cio”, há o contraponto da fugacidade do tempo. A estrada impõe a movimentação do espaço e nela “ciganos” passam a cantar, cujas vozes já se perdem na “curva”. “Ciganos”, sem morada permanente, são passageiros como as “aves” e, no poema, produzem música que se confunde com imagem, já que o menino lança pedras ao espaço como se pudesse, literalmente, enxergar o som subindo aos ares. Música e imagem são novamente distinguidas como unidades essenciais da poesia e, desintegradas aqui, operam, assim como a “ave” no poema anterior, um retorno à enformação básica da palavra poética, permitindo que o leitor tenha acesso à emoção pura, à intuição, a uma dada excitação espiritual ou perceção sensorial que estão na base de qualquer formação simbólica.127

Desse modo, o poema poderia sugerir a visão do menino-poeta diante da descoberta de sua vocação, que atira pedras à música-imagem, como se pudesse tocá-la, e vislumbra um horizonte em ascensão, desmanchando a plenitude de “abril à solta nos pinhais”.

Dentre todas essas imagens fluidas e recorrentes, a “ave”, sendo o elemento nuclear nesse livro, encaminha, assim como o “fruto” no volume anterior, a uma visão da conceção poética eugeniana. Se considerarmos a themata da arte poética tal como listada por Lubomir Dolezel128, a “ave” oferece uma reflexão bastante vasta sobre os domínios e alcances da linguagem poética, além de apontar para o problema da criatividade, já que ela frequentemente se associa à mãe, figura identificada, desde o prefácio, como principal motivação do poético nesse segundo livro da coletânea.129

No quarto poema do livro, “Canção para minha mãe”, em que a figura materna é diretamente nomeada, encontramos novamente a imagem de um pássaro, porém ligado agora a uma cena de outono e esterilidade − ainda que a criança apareça juntando os cabelos destrançados da mãe, triste a cantar. Dos braços dessa mulher escorriam “frutos maduros de outono” e “águas mortas de abandono”: “Era o tempo das gaivotas / mas o mar tinha secado”, e depois: “Gaivotas não as havia / e o mar tinha secado.” (1966, p. 67).130

O ambiente de esterilidade e ceticismo também está presente em “Apenas um rumor”, poema 20, em que a “palavra” é equiparada ao “rumor” de um bando de “gaivotas”:

Apenas um rumor

... E no teu rosto aberto sobre o mar

cada palavra era apenas o rumor

de um bando de gaivotas a passar.

(ANDRADE, 1966, p. 88)

A expressão adverbial “apenas” denota a fragilidade e talvez a impermanência do canto e do instante pleno. Esse poemeto assemelha-se aos versos do poema 19, intitulado “Outro poema para o meu amor doente”: “Outono − pássaro de melancolia/ num céu sem cor que não promete nada” (1966, p. 87), em que o “céu”, como o “mar” do poema acima, afigura-se como espaço de abertura, mas que, desta vez, não encontra o fluir expansivo da “ave”.

Em “Canção breve”, encontramos uma referência indireta aos “gestos” do poema “Os amantes sem dinheiro”, agora inseridos no contexto de um amor triste e antigo, que poderia muito bem incluir a relação materna:

Tudo me prende à terra onde me dei

[...]

Tudo me prende do mesmo triste amor

que há em saber que a vida pouco dura,

e nela ponho a esperança ou o calor

de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria,

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia.

(ANDRADE, 1966, p. 71)

“Amor a escorrer melancolia” lembra a imagem da mulher triste de “Canção para minha mãe”, de cujos cabelos, braços e pernas também escorriam, como vimos, elementos melancólicos, como “frutos de outono” e “águas mortas de abandono”. Os “dedos com restos de ternura” e o “triste amor que há em saber que a vida pouco dura” trazem à cena a imagem do pássaro a nascer dos dedos dos amantes e a sensação de passagem e transformação que o poema “Os amantes sem dinheiro” suscita, de modo que, tanto naquele quanto neste poema, a figura materna permanece como elemento fulcral, mesmo quando não nomeada.

Do mesmo modo, “Elegia”, poema 13, parece se dirigir à mãe e às lembranças desse amor doído, já que estabelece diálogo direto com “Poema à mãe”, 15 do livro:

[...]

Ainda sabemos cantar.

Só a nossa voz é que mudou:

somos agora mais lentos,

mais amargos,

e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha

de um corpo a latejar de plenitude.

Tu quebraste-lhe o ritmo

ao partires um a um

os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:

setembro traz ainda

um fruto em cada mão.

Mas os homens, as aves e os ventos

já não bebem em ti a direção.

(ANDRADE, 1966, p. 77)

Novamente há alusões aos “gestos”, porém aqui acompanhados de ceticismo e melancolia. As “aves” reaparecem, assim como os “ventos” e os “frutos” do poema de abertura do livro (“Conselho”), entretanto, já deslocados do antigo e prometido furor poético, apontando agora para os desgastes dos mecanismos outrora associados à plenitude na infância e à relação materna: “Os homens, as aves e os ventos/ já não bebem em ti a direção”.

O primeiro verso do trecho selecionado acima também poderia sugerir relações com a mãe do poema, frequentemente associada à “primeira música” que tanto motiva a gênese de sua poesia. Contudo, as condições favoráveis à poesia agora são descritas em termos de cansaço e esgotamento. Há uma mudança de direção dos mecanismos de inspiração. A “mãe” não provê mais o “fruto”, embora ele ainda esteja presente em “cada mão”. Há uma certa “quebra de ritmo” e quebra dos “ramos da juventude” que oferecem agora ao eu lírico uma reflexão dolorida sobre os efeitos da velhice, do esquecimento, da distância natural entre mãe e filho.

Em “Poema à mãe”, 15 do livro, as queixas sobre a relação viciada entre mãe e filho são explícitas: o sujeito lamenta o esquecimento por parte de ambos, em que talvez haja se perdido o conhecimento do “verdadeiro ser” que os dois experimentaram intensamente durante o período pleno de descobertas e encantos. Esse conhecimento profundo e rico já não cabe mais na imagem rígida e intacta de um “retrato”.

menino que “ama as rosas brancas”, signo de pureza que remete à inocência da infância131. Ele ainda ouve a “voz”, o cantar da mãe, mas o presente é distinto e requer novos gestos. O sujeito então se despede e, em um ato de transfiguração de signos do passado, ou de rasura do “retrato”, permuta “as rosas brancas” por “aves”. Eis dois signos que se associam tanto à relação materna, como vimos, quanto ao cantar poético132, sempre vinculado à questão da memória neste livro.133

A memória é referida por meio de um paradoxo: de um lado é representada por retratos, recordações rígidas e imóveis que mal interferem no presente; e de outro por certas imagens “móveis” do passado, como as “aves” a se desprenderem dos gestos, capazes de evocar certa lembrança do poético, da vivência da totalidade dos elementos, da movimentação da palavra, cuja natureza metamórfica atualiza a experiência e supera a corrosão do tempo, apreendendo a multiplicidade da vida. Assim, por meio de um signo concreto como “aves”, a poesia eugeniana sugere o abstrato material da memória em suspensão, capaz de ser mobilizado pelo fazer poético. Nesse espaço silencioso e confuso “voam” imagens e sons primitivos que segredam os primeiros milagres. No impreciso ponto de encontro entre o presente e o passado acham-se as aves suspensas de outrora, vigiando a promessa de um dia se realizarem.

Ao despedir-se da mãe e dizer que segue “com as aves”, o eu lírico toma a determinação de sair da “moldura” do retrato para transfigurar-se em canto. Afirma a sua vocação de poeta e opta pelo caminho incerto e instável das “aves”, porém de imensurável libertação.

Por conseguinte, na imagem que a mãe tem do filho já não cabe o erotismo de “leitos onde o frio não se demora”, tanto quanto a perda da juventude da mãe se tornou insuportável ao filho (como o verso “tu quebraste [...] os ramos todos da tua juventude” do poema anterior também sugere). Contudo, tal esquecimento (tanto da mãe que esquece que o filho cresceu quanto do filho que também esquece que ela envelheceu) é superado pelo canto: “Queres ouvir-me? / Às vezes ainda sou o retrato [...] / ainda aperto contra o coração rosas tão brancas [...] / ainda oiço a tua voz. / Não me esqueci de nada mãe”.

O eu lírico simbolicamente mata a mãe, deixando-lhe as “rosas brancas”, como em um ritual fúnebre, mas somente para poder rememorar e recriar tudo de novo no espaço do poema. Na permuta das “rosas brancas” por “aves”, o canto atualiza a rica experiência do passado, mobilizando a memória, que oferece resistência à implacabilidade do tempo quando vivida de maneira a atuar sobre o presente. Assim, o canto pretende reconfigurar o passado e atribuir-lhe novos sentidos pertencentes à vida adulta, de modo a manter-lhe a potência criadora.

Em Eugénio de Andrade, as representações da memória confundem-se com as representações da palavra poética, o que evidencia a conexão profunda entre o processo de rememoração e o fazer poético. A palavra depende da plenitude vivida pelo sujeito, que, motivado pelo amor e pela entrega, colhe os registros de um presente absoluto. A memória preserva os instantes ontológicos − pois é a memória que constitui o ser − , e o germe da palavra nasce para o poeta: levanta voo como aves, penetra os espaços, assim como a “luz”, “o rumor”, “o canto dos ciganos” sumindo ao longe. Das imagens revisitadas pelo sujeito poético depreendem-se elementos fugazes, que partem do momento registrado para penetrar em uma espécie de hiato que a memória produz na relação entre o passado e o presente.

É a consciência do próprio ato poético que estabelece a união ontológica entre os tempos de outrora e os tempos recentes, para que o sujeito instaure o sentido de sua própria existência. A confeção da poesia é feita a partir dessas correspondências estabelecidas pelo sujeito poético, que, ao atuar sobre as memórias, resgata esses elementos transitórios como elos entre o passado e o presente, e reconstitui, em seu cantar, a unidade perdida, experimentada na infância.

Desse modo, a palavra poética marca essa ausência, ao mesmo tempo que refaz o passado paradisíaco: preenche e produz ausência, sempre. Eugénio de Andrade firma a sua vocação de poeta ao reconstituir-se como sujeito liberto da mãe e ao tomar consciência do próprio ato do fazer poético, o qual demanda mobilização da memória e atuação sobre ela. É para esse novo espaço de consciência que segue o poeta em perpétua busca de sua própria sentença: “Boa noite. Eu vou com as aves!”. 

Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012

  

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Poema à mãe, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-16. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/poema-mae-eugenio-de-andrade.html



terça-feira, 15 de novembro de 2022

É todo um mundo confuso, Eugénio de Andrade

 


 

É todo um mundo confuso, de penetração difícil, tanto mais difícil quanto mais pretendo pô-lo claro, transparente. Não sei se houve primeiro lágrimas ou o som do harmónio. Em todo o caso lembro-me de duas casas — uma na Eira, outra no Adro. Sei que as lágrimas e as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio na casa do Adro.

Minha mãe disse-me que eu nasci na casa do Adro, e só um pouco mais tarde, quando a família a abandonou de todo, nos mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas pequenas, térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho viverem. Ainda há poucos anos vi essas casitas onde eu e a mãe começámos a ser um do outro, e pareceram-me incrivelmente pequenas, mais pequenas mesmo que certas salas de brinquedos que os meninos ricos têm na cidade.

Em frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que nessas arcas arrumam os pobres tudo o que têm: a roupa do corpo, a roupa da cama, o milho para moer, o pão e a faca embrulhados num pano de linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que sai da arca ao abrir — é um cheiro forte, são, de frutos naturais que a terra dá.

Ora um dia, quando me aproximei da arca — sabe-se lá se para dar a entender a minha mãe que queria pão — estava lá em cima uma coisa que eu nunca tinha visto. Em bicos de pés, deitei-lhe a mão e puxei. Então o que sucedeu foi maravilhoso: de dentro saiu um som bonito, mais bonito ainda do que a voz de minha mãe, que certamente eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse ouvido ainda minha mãe cantar. A mãe era nesse tempo uma mulher triste.

Da casa da Eira só me lembro do quartito que dava para a cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem minha mãe às vezes me deixava a guardar. Foi nesse quarto que a mãe me ensinou a rezar:

Senhora Sant’Ana,

Tapai-me cum véu,

que eu sou pequenino,

levai-me prò Céu.

Mas eu gostava mais de me meter com a velhota do que das orações:

— Ó Ti Ana! Ti Ana!

Faça-me um favor!

Que é? — perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:

— Empreste-me a pele

pra fazer um tambor!

Mas isso foi bastante depois. Antes das orações e das brincadeiras com a Ti Ana, lembro-me das lágrimas. Nunca mais voltei a chorar assim.

Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. — Ó mãe, mãe… — Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só a porta fechada. — Ó mãe, mãe… — E a casa deserta. Pelas frinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma manhã de sol quente, talvez de julho, talvez de agosto. Devia haver medas de palha na eira em frente. Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de angústia. — Ó mãe, mãe… — E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas pequeninas, estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me pela cara. — Ó mãe, mãe… — O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito abertos, vendo através das frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras. — Ó mãe, mãe…

E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, pois a essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.

 

Eugénio de Andrade, prefácio a Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 

LINHAS DE LEITURA

—A importância deste texto vem do registo de elementos de uma memória arcaica, presente nos versos do livro que precede e na globalidade da obra de Eugénio de Andrade.

Note nele:

—a presença da mãe como ligada à Terra e ao natural;

—a origem na infância, e na perca do contacto exclusivo com a mãe, da alternância entre prazer e des­prazer, alegria e lágrimas;

— as cantilenas religiosas e as rimas populares que continuam o ritmo embalador desta primeira infância de conchego maternal, e que vão manter-se no começo do poetar adulto (cf. «Canção»);

— a casa sentida como lugar de euforia enquanto permite a fusão com a mãe (cf. estado pré-natal), e de angústia quando a mãe está ausente e inacessível;

—o grito infantil que ninguém ouve e o consequente encerrar do Eu no interior da casa, metáfora do próprio corpo. Note que a desolação exterior (entrevista pelas frinchas da porta) se transfere para o interior; isto leva a que a «paisagem» exterior (cf. «Paisagem»), de extrema contenção, se reflicta no interior, fechado, reprimido – condicionando uma atitude futura, muito marcada na obra de E. de A., de olhos «rasos de água», lágrimas contidas, horizontes não nascidos mas «à beira de» nascer, à espera, na espera.

 

(Paula Morão, Poemas de Eugénio de Andrade. Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, pp. 72-73)

 

 

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“É todo um mundo confuso, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-15. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/e-todo-um-mundo-confuso-eugenio-de.html



segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Retrato: No teu rosto começa a madrugada. (Eugénio de Andrade)



RETRATO

 

No teu rosto começa a madrugada.

Luz abrindo,

de rosa em rosa,

transparente e molhada.

 

Melodia

distante mas segura;

irrompendo da terra,

quente, redonda, madura.

 

Mar imenso,

praia deserta, horizontal e calma.

Sabor agreste.

Rosto da minha alma.

 

Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª ed.)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

Linhas de leitura do poema “Retrato”, de Eugénio de Andrade

Note que o poema diz o «rosto», mas se chama «Retrato», marcando assim a mediação entre o tempo em que se vive e o tempo em que se escreve.

É a fixação do rosto na moldura, o retrato, portanto, que torna o passado irremediavelmente perdido.

O «rosto» é metaforicamente representado nos elementos, numa harmonia cósmica de «luz», «melodia», «mar», «praia», «sabor», ou seja, um somatório complexo ligado aos elementos água e terra, a uma paisagem arcaica, infantil, ao «elemental», como diz Oscar Lopes.

O «rosto» é ainda o começo da «madrugada», predecessor do dia, plenitude a atingir. O «teu rosto» é, pois, o «rosto da minha alma», é, afinal, o retrato do próprio Eu – o que implica um não distinguir do Eu e do Tu

Eugénio de Andrade é um poeta apolíneo, da luz, da claridade e da transparência, em que o límpido apelo dos sentidos deixa perceber essa celebração dos momentos de plenitude, por efémeros que possam ser.

Em todo poema, observa-se o campo semântico da transparência, quer nas imagens da "madrugada", de "luz", de "transparente" ou no "mar imenso", quer na "melodia" e em toda a sua franqueza.

Note-se a aproximação do rosto do ser amado» que se abre de "rosa em rosa" ao estímulo que vem da terra "cálida e madura", e se torna "mar imenso" a indicar essa transparência e a inspirar a possível fecundidade, mas sobretudo a vida natural.

Recorde-se que a água é um referente eufórico na poesia de Eugénio de Andrade. Associa-se à imagem materna, pura e acolhedora, sugerindo o líquido amniótico que alimenta e mantém o feto seguro.

«Luz», «melodia», «mar» e «praia» são metáforas do corpo que cresce e se desenvolve; a «melodia» é dita explicitamente «irrompendo da terra», ou seja, como tendo origem na terra-mãe, «quente, redonda», como o ventre da mãe prestes a dar à luz («madura»).

Observe-se ainda, o rosto como "sabor agreste" insinuando o fruto, vindo da Natureza. Percorre todo o poema uma verdadeira metáfora da relação amorosa onde a sensualidade se revela diáfana, provocando um privilegiado momento eufórico.

 

(Adaptado de: Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 75; Português A e B: acesso ao ensino superior 2000, Vasco Moreira, Hilário Pimenta. Porto, Porto Editora, 2000. Coleção: Acesso ao ensino superior: preparação para a prova de exame nacional - 12º ano)

  

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“Retrato: No teu rosto começa a madrugada. (Eugénio de Andrade)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-14. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/retrato-no-teu-rosto-comeca-madrugada.html



domingo, 13 de novembro de 2022

Metamorfoses da palavra, Eugénio de Andrade


 

METAMORFOSES DA PALAVRA

 

A palavra nasceu:

nos lábios cintila.

 

Carícia ou aroma,

mal pousa nos dedos.

 

De ramo em ramo voa,

na luz se derrama.

 

A morte não existe:

tudo é canto ou chama.

 

Eugénio de Andrade, Até amanhã, 1956 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 

Linhas de leitura do poema “Metamorfoses da palavra”, de Eugénio de Andrade

O poeta, em quatro dísticos alternadamente hexassílabos e pentassílabos, canta o nascimento cintilante da palavra como um acontecimento primordial, genesíaco (1º dístico).

O seu carácter delicado e sensível está bem patente no 2.º dístico, que aparenta com a sinestesia metafórica do tato («Carícia», «mal poisa os dedos») ou do olfato («aroma»).

E enquanto o 3.º dístico assinala a sua marca dinâmica, transformacional, a partir das metáforas do pássaro que «De ramo em ramo voa» e do líquido que «na luz de derrama», o último contorna o grande obstáculo da morte, cuja existência eufemisticamente nega, em face da sedução poética do canto e da chama.

Poeta da esperança e da metamorfose construtiva, Eugénio de Andrade reanima a nossa coragem de viver, na essencialidade e na pureza do Belo.

 

António Moniz, Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Ed. Presença, 1997, pp. 131

 

*** 

Texto de apoio

No quadro da poética eugeniana, a “chama” é essencialmente criadora, embora não deixe também de recuperar a vasta memória das contradições cósmicas do “fogo”. Como temos visto desde o primeiro livro de Poemas, a “luz”, máxima transubstanciação do fogo, aproxima-se do poder genesíaco da palavra. Figura o excesso de realidade e é metáfora da transformação de toda expressão poética. Em Até amanhã, há uma verdadeira cosmogonia da luz: desde seu elemento mais primitivo até a energia transubstanciada nas diversas manifestações de claridade. Em todas as suas etapas, a luz participa no trabalho de abertura da linguagem. Em diversos momentos, como no sexto e no décimo terceiro poemas do livro, que transcrevemos abaixo, compõe-se uma verdadeira “poética do fogo”.

Breve, fugidia, a palavra eugeniana nasce do corpo, dos “lábios”, dos “dedos”, para esvaecer-se em “fogo”, “chama” ou “luz que se derrama”, traçando novo movimento de ascese, a recuperar, de certa maneira, a vivência do absoluto – ainda que revertida para uma perspetiva imanentista. Assim, desde sua primeira manifestação, a palavra é luminosa e se expande gradualmente, envolvendo os sentidos, como o tato (“carícia”), o paladar (“lábios”), o olfato (“aroma”) e a visão (“cintilar”), em comunhão com os elementos. No cume, o “canto” final da palavra ao infinito é descrito em termos de “chama”: fusão metafísica do instante ampliado, linguagem absoluta, ascensão do ser: “Parece que um tempo cósmico vem aqui ampliar o tempo subalterno, esse tempo que encadeia e não produz. O poema eleva-se a um nível de acontecimento do universo para conhecer o instante de um clarão” (BACHELARD, 1990, p. 57).

 

Joana Araujo, “Com palavras amo”: um estudo das imagens em poemas de Eugénio de Andrade. São Paulo, DLCV/USP, 2012

 

 

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“Metamorfoses da palavra, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-13. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/metamorfoses-da-palavra-eugenio-de.html


sábado, 12 de novembro de 2022

As palavras, Eugénio de Andrade

 


 

 

 

 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

15

 

 

 

 

 

20

AS PALAVRAS

 

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.

 

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.

 

Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.

 

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

 

Eugénio de Andrade, Coração do dia, 1958 (1.ª ed.)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 
"As palavras", de Eugénio de Andrade. Produções Fictícias, 2005


I - Linhas de leitura do poema “As palavras”, de Eugénio de Andrade:

O sujeito poético propõe, a partir de um jogo metafórico e metalinguístico, uma reflexão sobre o valor polissémico das palavras. Este poema reflete, portanto, sobre o seu próprio processo de construção, sobre as possibilidades criadoras da palavra.

 

1.ª estrofe

«São como um cristal, / as palavras.» – nesta frase existe um hipérbato e a razão dessa inversão está na ênfase posta no primeiro membro da comparação, que tem o valor de um verso; nela assenta a expectativa criada pelo primeiro verso.

Quatro imagens visuais organizadas numa combinação antitética sugerem a primeira tentativa definitória das palavras:

um cristal

 

- luz (brilho das palavras = sentidos)

- reflexo (da realidade)

- qualidade (valor das palavras)

- transparência (as palavras devem transmitir a verdade, pureza interior, inocência)

- múltiplas faces (os vários sentidos das palavras, que podem ser abordadas de vários ângulos)

 

um punhal

 

- agressividade

- crueldade

- morte

- sofrimento

um incêndio

 

- destruição

- violência impetuosa

- purificação

orvalho

 

- suavidade, delicadeza sensorial

- esperança

- acalmia

 

O sentido da oposição positividade vs. negatividade tem a ver com as próprias contradições que as palavras contêm. Quer dizer, as palavras são ambíguas, assumem valores diversificados, consoante a intencionalidade dos falantes.

 

2.ª estrofe

«Secretas vêm, cheias de memória.» – as palavras são condensadoras de um saber antigo: atravessam os tempos, recebem novos significados, evoluem, carregam os segredos da história dos homens e acompanham os seres falantes como instrumento indispensável de comunicação.

 

«Inseguras navegam: / barcos ou beijos, / as águas estremecem» – Que relação se pode estabelecer entre palavras e barcos e palavras e beijos?

entre palavras e barcos pode-se estabelecer estabelece-se a relação de viagem (insegurança, quer das palavras, quer dos barcos; as palavras agitam as pessoas; os barcos as águas);

entre palavras e beijos pode-se estabelecer a relação de amor (ninguém fica indiferente às palavras nem as pessoas aos beijos).

 

A 2ª estrofe assenta em duas imagens («barcos» e «beijos»), numa associação metonímica (elementos interatuantes) com «águas». A intimidade do passado («secretas», «cheias de memória»), ao ser revelada («vêm», «navegam»), introduz insegurança («Inseguras»), medo («as águas estremecem»). A oposição, tecida na 1ª estrofe entre inocência e crueldade, é agora ampliada através de efeitos antagónicos: o percurso positivo do passado («secretas», «cheias de memória») versus a insegurança do presente e do futuro («Inseguras navegam», «as águas estremecem»).

 

3.ª estrofe

Os versos 11, 12 e 13 são formados apenas por adjetivos dando destaque às qualidades. Na sequência de «Inseguras navegam», o poeta caracteriza-as como:

- desamparadas = ao alcance de todos,

- inocentes = de per si não contêm qualquer mal, este advém do uso e do abuso,

- leves = sem a carga conotativa que alcançam no texto.

 

Assim, caracterizadas, em gradação decrescente, com uma tripla adjetivação («Desamparadas, inocentes, / leves»), as palavras surgem, na 3ª estrofe, novamente marcadas pela ambiguidade, através do paradoxo simbólico diurno/noturno: «Tecidas são de luz / e são a noite». Note-se que as palavras – e consequentemente o poema – são dadas como «tecidas», formadas pelo imbricar da teia e trama, cruzamento produtivo de elementos de origem diversa, originando a multiplicidade, a riqueza material. As palavras alcançam sentido quando colocadas num texto (Texto, do lat. textu-, «tecido», part. pass. de texâre, «tecer; entrelaçar»), que é um tecido, uma teia, onde se cruzam os vários sentidos.

 

Luz no texto, noite na ausência do texto.

 

Os versos 15 e 16 reforçam a antítese temporal presente / passado («lembram ainda»), já anunciada na 2ª estrofe. A palidez, associada à imagem visual da «noite», opõe-se à evocação simbólica da felicidade antiga: «E mesmo pálidas / verdes paraísos lembram ainda». Podendo ter perdido algum dos seus sentidos, trazem todavia memória e por isso evocam um passado criador.

 

4.ª estrofe

A dupla interrogação retórica da última estrofe constitui uma forte interpelação ao destinatário do poema: «Quem as escuta? Quem / as recolhe?» São os leitores que vão abrir as conchas, que são as palavras (cofres cheios de sentidos). A interrogação apela para a releitura das palavras.

 

Mas não satisfeito com a recorrente caracterização das palavras, ao longo das estrofes anteriores, o sujeito sublinha, numa constância de sentido, a sua ambiguidade ética e pragmática: «assim, /cruéis, desfeitas, / nas suas conchas puras?»

 

Tal como a vida humana, as palavras são boas e más, alegres e tristes, belas e feias: estimulam e desmotivam, são portadoras de amor e ódio, de paz e guerra, de felicidade e infelicidade.

 

(Bibliografia: Aula Viva Port. B 12º, 1999, p. 448; Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, pp. 125-126, Poemas de E. de A., Paula Morão, Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, p. 89)

 

II – Questionário sobre o poema “As palavras”, de Eugénio de Andrade:

Disponível aqui.

 



 

III - Proposta de escrita de um texto de opinião:

 

«Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca.»

Alexandre O’Neill

 

«São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.»

Eugénio de Andrade

 

Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas e cinquenta palavras, defenda uma perspetiva pessoal sobre o poder das palavras nas relações humanas.

No seu texto:

– explicite, de forma clara e pertinente, o seu ponto de vista, fundamentando-o em dois argumentos, cada um deles ilustrado com um exemplo significativo;

– utilize um discurso valorativo (juízo de valor explícito ou implícito).

 

(Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE, 2018, 1.ª Fase)

 

 

INTERTEXTUALIDADE

 

AS PALAVRAS, por José Saramago

 

«A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.» José Saramago publicou esta crónica dos seus tempos de jornalista no vespertino “A Capital”, em livro lançado, em 1971, sob a chancela da Editorial Arcádia.

 

As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário. E as palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que não se oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.

Fonte: Crónica publicada no livro Deste Mundo e do Outro. Lisboa, Editorial Caminho, 4.ª edição, 1997. Disponível em Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, <https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/as-palavras/746> [consultado em 08-06-2021]

*** 

 

A RAPARIGA QUE ROUBAVA LIVROS, Markus Zusak


ERA UMA VEZ um estranho homem baixo. Ele decidiu três importantes pormenores a respeito da sua vida:

1. Faria a risca do cabelo do lado contrário ao de toda a gente.

2. Deixaria crescer um pequeno bigode estranho.

3. Um dia governaria o mundo.

O jovem vagueou durante algum tempo, a pensar, a planear, e a calcular exatamente como poderia tornar o mundo seu. Depois, um dia, sem mais nem menos, ocorreu-lhe: o plano perfeito. Vira uma mãe a passear com o filho. A dada altura, ela repreendera o garoto até que, finalmente, ele começou a chorar. Daí a alguns minutos, ela falou-lhe docemente, e então ele acalmou e até sorriu.

O jovem correu para a mulher e abraçou-a. – Palavras! – exclamou ele com uma careta sorridente.

– O quê? Mas não obteve resposta. Ele já desaparecera.

Sim, o Führer decidiu que governaria o mundo com palavras.

Plantou-as dia e noite, e tratou-as cuidadosamente.

Viu-os crescer, até que por fim se tinham erguido por toda a Alemanha grandes florestas de palavras… Era uma nação de pensamentos cultivados.

As pessoas que trepavam às árvores chamavam-se sacudidores de palavras.

OS MELHORES sacudidores de palavras eram os que compreendiam o verdadeiro poder das palavras.

Eram esses que conseguiam trepar mais alto. Um desses sacudidores de palavras era uma rapariga pequena e franzina. Era conhecida como o melhor sacudidor de palavras da sua região porque sabia como uma pessoa pode ficar impotente SEM palavras. Um dia, contudo, conheceu um homem que era desprezado pela pátria dela, embora tivesse nascido lá. Tornaram-se bons amigos, e quando o homem adoeceu, a sacudidora de palavras permitiu que uma única lágrima caísse na cara dele. A lágrima era feita de amizade – uma simples palavra – e secou e transformou-se numa semente, e da próxima vez que a rapariga esteve na floresta plantou essa semente no meio das outras árvores. Regava-a todos os dias.

A árvore crescia todos os dias, mais depressa do que tudo o resto, até se tornar na árvore mais alta da floresta. Toda a gente foi vê-la. Todos sussurravam a respeito dela, e esperavam… pelo Führer.

Furioso, ele ordenou imediatamente o abate da árvore. Foi então que a sacudidora de palavras abriu caminho por entre a multidão. Tombou de joelhos.

– Por favor – exclamou ela –, não podem cortá-la.


"O caderno de desenho escondido" in A rapariga que roubava livrosMarkus Zusak.  Lisboa: Presença, 2018 (texto com supressões) 

 

     Proposta de comentário :

Comenta os últimos dois parágrafos do excerto, seguindo os seguintes tópicos de aplicação, organizados segundo o nível de profundidade de leitura:

Nível 1 - Síntese objetiva do conteúdo dos últimos dois parágrafos do texto.

Nível 2 - Interpretação do conteúdo.

Nível 3 - Relação do conteúdo com o contexto histórico.

Nível 4 - Opinião acerca do conteúdo.

 

Sugestão de resposta:

No final do texto, a sacudidora de palavras tenta impedir que o Führer faça cair a árvore mais alta da floresta, que nasceu da amizade entre ela e um rapaz.

Esta atitude de resistência por parte da rapariga contra a opressão do Führer reforça a importância das palavras, pois a árvore das palavras simboliza a liberdade.

Historicamente, a atitude da menina representa, durante a Segunda Guerra Mundial, a oposição ao regime nazi.

Concluo, assim, que esta história pretende transmitir uma lição de vida para que atualmente tenhamos a coragem de lutar pela liberdade, resistindo aos regimes totalitários e antidemocráticos.


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“As palavras, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-12. https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/as-palavras-eugenio-de-andrade.html