É
todo um mundo confuso, de penetração difícil, tanto mais difícil quanto mais
pretendo pô-lo claro, transparente. Não sei se houve primeiro lágrimas ou o som
do harmónio. Em todo o caso lembro-me de duas casas — uma na Eira, outra no
Adro. Sei que as lágrimas e as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio
na casa do Adro.
Minha
mãe disse-me que eu nasci na casa do Adro, e só um pouco mais tarde, quando a
família a abandonou de todo, nos mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas
pequenas, térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho viverem.
Ainda há poucos anos vi essas casitas onde eu e a mãe começámos a ser um do
outro, e pareceram-me incrivelmente pequenas, mais pequenas mesmo que certas
salas de brinquedos que os meninos ricos têm na cidade.
Em
frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que nessas arcas arrumam
os pobres tudo o que têm: a roupa do corpo, a roupa da cama, o milho para moer,
o pão e a faca embrulhados num pano de linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que
sai da arca ao abrir — é um cheiro forte, são, de frutos naturais que a terra dá.
Ora
um dia, quando me aproximei da arca — sabe-se lá se para dar a entender a minha
mãe que queria pão — estava lá em cima uma coisa que eu nunca tinha visto. Em
bicos de pés, deitei-lhe a mão e puxei. Então o que sucedeu foi maravilhoso: de
dentro saiu um som bonito, mais bonito ainda do que a voz de minha mãe, que certamente
eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse ouvido ainda minha mãe
cantar. A mãe era nesse tempo uma mulher triste.
Da
casa da Eira só me lembro do quartito que dava para a cozinha. Um tabique
separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem minha mãe às vezes me
deixava a guardar. Foi nesse quarto que a mãe me ensinou a rezar:
Senhora Sant’Ana,
Tapai-me cum véu,
que eu sou pequenino,
levai-me prò Céu.
Mas
eu gostava mais de me meter com a velhota do que das orações:
— Ó
Ti Ana! Ti Ana!
Faça-me
um favor!
Que é?
— perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:
—
Empreste-me a pele
pra
fazer um tambor!
Mas
isso foi bastante depois. Antes das orações e das brincadeiras com a Ti Ana,
lembro-me das lágrimas. Nunca mais voltei a chorar assim.
Certa
manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. — Ó mãe, mãe… — Mas a mãe não
vinha. Não havia mãe. Havia só a porta fechada. — Ó mãe, mãe… — E a casa
deserta. Pelas frinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma manhã de
sol quente, talvez de julho, talvez de agosto. Devia haver medas de palha na eira
em frente. Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de angústia. — Ó
mãe, mãe… — E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas pequeninas,
estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me pela cara. —
Ó mãe, mãe… — O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito abertos, vendo
através das frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras. — Ó mãe, mãe…
E
ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, pois a
essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece
estes versos.
Eugénio
de Andrade, prefácio a Os amantes sem dinheiro,
1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
LINHAS DE
LEITURA
—A importância deste texto vem do registo de
elementos de uma memória arcaica, presente nos versos do livro que precede e na
globalidade da obra de Eugénio de Andrade.
Note nele:
—a presença da mãe como ligada à Terra e ao
natural;
—a origem na infância, e na perca do contacto
exclusivo com a mãe, da alternância entre prazer e desprazer, alegria e
lágrimas;
— as cantilenas religiosas e as rimas populares
que continuam o ritmo embalador desta primeira infância de conchego maternal, e
que vão manter-se no começo do poetar adulto (cf. «Canção»);
— a casa sentida como lugar de euforia enquanto
permite a fusão com a mãe (cf. estado pré-natal), e de angústia quando a mãe
está ausente e inacessível;
—o grito infantil que ninguém ouve e o consequente
encerrar do Eu no interior da casa, metáfora do próprio corpo. Note que a
desolação exterior (entrevista pelas frinchas da porta) se transfere para o
interior; isto leva a que a «paisagem» exterior (cf. «Paisagem»), de extrema
contenção, se reflicta no interior, fechado, reprimido – condicionando uma
atitude futura, muito marcada na obra de E. de A., de olhos «rasos de água»,
lágrimas contidas, horizontes não nascidos mas «à beira de» nascer, à espera,
na espera.
(Paula Morão, Poemas de Eugénio
de Andrade. Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, pp. 72-73)
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“A metáfora em Eugénio de Andrade” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Eugénio de Andrade, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 2018-04-23. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-metafora-em-eugenio-de-andrade.html
“É
todo um mundo confuso, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia,
2022-11-15. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/e-todo-um-mundo-confuso-eugenio-de.html
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