terça-feira, 15 de novembro de 2022

É todo um mundo confuso, Eugénio de Andrade

 


 

É todo um mundo confuso, de penetração difícil, tanto mais difícil quanto mais pretendo pô-lo claro, transparente. Não sei se houve primeiro lágrimas ou o som do harmónio. Em todo o caso lembro-me de duas casas — uma na Eira, outra no Adro. Sei que as lágrimas e as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio na casa do Adro.

Minha mãe disse-me que eu nasci na casa do Adro, e só um pouco mais tarde, quando a família a abandonou de todo, nos mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas pequenas, térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho viverem. Ainda há poucos anos vi essas casitas onde eu e a mãe começámos a ser um do outro, e pareceram-me incrivelmente pequenas, mais pequenas mesmo que certas salas de brinquedos que os meninos ricos têm na cidade.

Em frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que nessas arcas arrumam os pobres tudo o que têm: a roupa do corpo, a roupa da cama, o milho para moer, o pão e a faca embrulhados num pano de linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que sai da arca ao abrir — é um cheiro forte, são, de frutos naturais que a terra dá.

Ora um dia, quando me aproximei da arca — sabe-se lá se para dar a entender a minha mãe que queria pão — estava lá em cima uma coisa que eu nunca tinha visto. Em bicos de pés, deitei-lhe a mão e puxei. Então o que sucedeu foi maravilhoso: de dentro saiu um som bonito, mais bonito ainda do que a voz de minha mãe, que certamente eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse ouvido ainda minha mãe cantar. A mãe era nesse tempo uma mulher triste.

Da casa da Eira só me lembro do quartito que dava para a cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem minha mãe às vezes me deixava a guardar. Foi nesse quarto que a mãe me ensinou a rezar:

Senhora Sant’Ana,

Tapai-me cum véu,

que eu sou pequenino,

levai-me prò Céu.

Mas eu gostava mais de me meter com a velhota do que das orações:

— Ó Ti Ana! Ti Ana!

Faça-me um favor!

Que é? — perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:

— Empreste-me a pele

pra fazer um tambor!

Mas isso foi bastante depois. Antes das orações e das brincadeiras com a Ti Ana, lembro-me das lágrimas. Nunca mais voltei a chorar assim.

Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. — Ó mãe, mãe… — Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só a porta fechada. — Ó mãe, mãe… — E a casa deserta. Pelas frinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma manhã de sol quente, talvez de julho, talvez de agosto. Devia haver medas de palha na eira em frente. Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de angústia. — Ó mãe, mãe… — E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas pequeninas, estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me pela cara. — Ó mãe, mãe… — O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito abertos, vendo através das frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras. — Ó mãe, mãe…

E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, pois a essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.

 

Eugénio de Andrade, prefácio a Os amantes sem dinheiro, 1950 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017

 

 

LINHAS DE LEITURA

—A importância deste texto vem do registo de elementos de uma memória arcaica, presente nos versos do livro que precede e na globalidade da obra de Eugénio de Andrade.

Note nele:

—a presença da mãe como ligada à Terra e ao natural;

—a origem na infância, e na perca do contacto exclusivo com a mãe, da alternância entre prazer e des­prazer, alegria e lágrimas;

— as cantilenas religiosas e as rimas populares que continuam o ritmo embalador desta primeira infância de conchego maternal, e que vão manter-se no começo do poetar adulto (cf. «Canção»);

— a casa sentida como lugar de euforia enquanto permite a fusão com a mãe (cf. estado pré-natal), e de angústia quando a mãe está ausente e inacessível;

—o grito infantil que ninguém ouve e o consequente encerrar do Eu no interior da casa, metáfora do próprio corpo. Note que a desolação exterior (entrevista pelas frinchas da porta) se transfere para o interior; isto leva a que a «paisagem» exterior (cf. «Paisagem»), de extrema contenção, se reflicta no interior, fechado, reprimido – condicionando uma atitude futura, muito marcada na obra de E. de A., de olhos «rasos de água», lágrimas contidas, horizontes não nascidos mas «à beira de» nascer, à espera, na espera.

 

(Paula Morão, Poemas de Eugénio de Andrade. Seara Nova / Ed. Comunicação, 1981, pp. 72-73)

 

 

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“É todo um mundo confuso, Eugénio de Andrade”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-15. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/e-todo-um-mundo-confuso-eugenio-de.html



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